quinta-feira, 3 de abril de 2008

O fim do Cinquecento

Num máximo de atividades, LEONARDO DA VINCI (1452-1519) ensinava que a Terra girava sobre si mesma, um espanto. Seu arguto senso lhe valia a aperfeiçoar desde técnicas artísticas a incursões pelo campo da anatomia. Soube compor projetos bélicos, de avançada concepção para a época - uma besta gigante, protótipos de tanques - práticas curiosamente dissociadas de sua sensibilidade, mas que refletiam o dilema daquela sofrida gente. Os príncipes, patrocinadores das artes, também cobiçavam a eficácia militar; valorizavam e mesmo incentivavam ciência e técnica.
Uma cidade portuária do Santo Império, Gênova, viu nascer indelével comandante naval - Cristóvão Colombo. Amparado no milenar mapa de Ptolomeu, partiu ele para encetar a memorável travessia. Requisitara, não sem grandes controvérsias, dezenas de testemunhas... com destino à China!
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Mapas geográficos eram elaborados quase que por meros palpites, expressos por alguns rabiscos. O primeiro globo (fabricado início de 1492), não aguardou a espetacular descoberta. Mostrava-se Europa e Ásia separados por aproximadamente quatro mil quilômetros de mar. (1)
Navegantes partiram à solução asiática usando o contorno sul, África. Camões retratava “Os Lusíadas”. Palmieri exultava:
“Graças a Deus, foi-nos permitido nascer nesta nova era, tão cheia de esperanças e promessas, que já comemora a maior coleção de almas nobremente dotadas que o mundo viu nos últimos mil anos”. (2)
Lamentavelmente foi também o início da grande coleção de poderosas almas mesquinhas, covardes e criminosas:
No século XV, a república de Florença, que por duzentos anos gozou de um regime de liberdade individual sob o império da lei, tal como não se tinha conhecimento desde os velhos tempos de Atenas e Roma, caiu sob o domínio da família Medici, que adquiriu, por um apelo demagógico às massas, crescentes poderes despóticos. (3)
A quebra do monopólio
Enquanto se descobriam os novos mundos, Roma se via abandonada à própria sorte.
Vários ícones transformavam a religião ditada pela Igreja Católica numa diversidade sem precedentes. As novas adequações tiveram impacto instantâneo, juntando-se teses científico-revolucionárias e protestantismos religiosos. Lutero ou Ulrico Zuinglio na Germania, a monarquia inglesa através de Henrique VIII, Calvino na região dos Países Baixos todos com o Papado, e de um modo praticamente simultâneo.
Tudo ajudava a cortar os cordões da manipulação. Os povos ansiavam a libertação do centralismo político e econômico. Aos reinos de todos os cantos era atraente o desligamento com a cara imposição eclesiástica, ainda mais agora, quando Copérnico provara se tratar de uma falácia o dogma antropocêntrico.
Ninguém se prestava a imaginar, contudo, para onde poderia ir o barco, após levantada a âncora que o argolava ao espiritualismo ministrado pelos sacerdotes, tampouco o destino dos órfãos.
A insegurança tomou conta de toda a gente.
As viagens ultramarinas alargavam as fronteiras dos patrocinadores, e abalavam o monopólio comercial italiano. Os privilégios de controle e uso da rota Oriente/Ocidente diminuíam de importância. Manifestações artísticas e científicas ajudavam a quebrar os tabus religiosos. A revelação bíblica, trazida pelo clero, já não perfazia o único caminho. A reconexão, a religação (religio) com Deus já não era exclusividade papal. Selvagens e estranhos civilizados, com suas tradições e suas culturas, variadas cores de pele, formas de convivência e riqueza abundante conseguiam tudo isso sem vinculação cristã. Fosse na África, no México, Perú, China, Japão, ou Conchinchina, navegadores, conquistadores e missionários se depararam com culturas antigas e respeitáveis, pacíficas e harmônicas, embora ignorantes de ensinamentos bíblicos e do correspondente sistema de privilégios e castigos:
“Na virada do século XV para o XVI, o vasto Oceano perdeu seus mistérios, uniu mundos, acelerou e intensificou o intercâmbio de povos distantes.” (4)
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Cidades & rivalidades
Sobressaiam-se três aglomerações, além de Roma: Veneza, “a mais bela sala da Europa”, na posterior apreciação de Bonaparte; Milão, e nossa Florença, ao norte de Roma, mas não muito.
Outras três, Gênova, Ferrara e Bolonha, quase as acompanhavam.
Aquele súbito desequilíbrio espiritual, então, propiciava combinar arte e genialidade com fatídicos instantes, os quais repetir-se-iam por incontável número de vezes: os estados maiores passavam a absorver os menores. Milão submetera e anexara a planície Lombarda; Veneza, todo o nordeste italiano, inclusive a rica Pádua. Florença, tomava Pisa e absorvia a região da Toscana, para depois ser passada de mão em mão, até ser invadida. A Itália, mais do que nunca desmoralizada e, principalmente dilacerada por suas lutas intestinas, convidava a assaltos de estrangeiros.
Dante, em século anterior, havia repetido as palavras bíblicas:
“Todo reino dividido será desolado.” (5)
Cumpriam-se os prenúncios. Quatro anos antes da viagem de Cabral, Carlos VIII e seus destemidos atravessam os Alpes para invadir a península itálica, desencadeando o processo de decomposição do riquíssimo reino onde morava o Papa. O ex-“jardim do império” se transformava em terra de todos e de ninguém: “batida, espoliada, lacerada, invadida, palmo a palmo disputada.”
Luís Fernando de Aragão e Luís XII puderam repartir o reino de Nápoles, enquanto o imperador Maximiliano montava tropas à conquistar Veneza. Exércitos alemães, suíços, franceses e espanhóis disputavam palmo a palmo o solo italiano. Crimes de Palácio, Igreja corrupta e agressiva, até assassina, e condottieris a devastarem os campos completavam os capítulos da história daquela sofrida gente. Tudo propiciava uma vertiginosa queda daqueles outrora possuidores da “concessão exclusiva sobre as reservas das cadeiras do céu”, donos de incomensuráveis riquezas traduzidas em terras, gado e ouro, produtos auferidos com a infalibilidade apregoada. Em seu lugar, a nova concepção de Estado, despida de apelos espirituais, apta a trucidar sem incidir em pecado:
“Eis a razão da conveniência em instaurar-se uma nova ordem tal que, ao serem estes povos tomados pela descrença, possa-se fazê-los crer à força.” (6)
As cidades renascentistas se defrontavam com bandos fortemente armados. O “turismo” curtia alta estação:
“O assassínio, a pilhagem, as correrias dos mercenários, a descida dos oltramonti, a espionagem e o conluio, as conspirações e as traições formavam-se em elementos do quadro cotidiano da Itália no Cinquento”. (7)
A tradução daquela óbvia realidade condicionava as atitudes governamentais e, por conseqüência, sociais :
As pequenas dimensões dos Estados, suas justaposições, seus perpétuos conflitos e seus afrontamentos, a balança de forças sempre desequilibradas e mutantes, fizeram com que eles estivessem obrigados a se medir uns aos outros, se comparar, imitar seus métodos e tentar mudar as relações de força.” (8)
As atuações governamentais, todavia, principalmente a partir de Florença, acirraram todas porfias. Em 1513, Frá Francesco de Meleto se encarregou do alarme, vaticínio que vara os tempos:
Por todo lado haverá sangue. Haverá sangue nas ruas, sangue nos rios, as pessoas navegarão em ondas de sangue, lagos de sangue, rios de sangue. Dois milhões de demônios serão largados do céu porque mais mal foi cometido nestes últimos dezoito anos do que durante os cinco mil que os precederam. (9)
O primeiro dos cinco séculos de devastações cientificas, ecológicas, políticas, sociais, espirituais e materiais, então, vinha ao mundo com o atraente e sugestivo nome de Renascimento.
A partir daí, o mundo passou a conhecer a matança a granel.
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Notas
1.Viagens de Descobrimento - A Renascença Italiana, p. 113.
2. Palmieri, Matteo, cit. idem, p. 43.

3. Guicciardini, Francesco, cit. Maksoud, Henry, p. 75.
4. Gruzinski, Serge, 1480-1520 A passagem do século, contracapa.
5. Lucas, XI, 17, cit. Alighieri, Dante, Da Monarquia, p. 34.

6. Machiavelli, Nicoló, O Príncipe, De principatibus novis qui armis propriis et virtute acquiruntur, Dos novos principados conquistados mercê das próprias armas ou da virtude, p. 33
7. Oltramonti: Estrangeiros vindos do norte, dos Alpes.; in Maquiavel, Nicolau, O Príncipe, Introdução.

8. Foucault, Michel, Microfísica do Poder, p. 81.
9. Cit. Gruzinski, Serge, p.45



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