quarta-feira, 2 de abril de 2008

O pacto

Perdendo a pátria o antigo perde tudo, bens, família, liberdade e religião, pois além dos muros urbanos cada homem passa a ser estrangeiro, sem defesa, exposto à ira dos inimigos e de seus deuses, sem direitos, podendo ser morto ou reduzido a escravidão. Fustel de Coulanges(1)
FAÇAMOS primeiro uma escala na Europa do século XIX. A estrutura obedece aos parcos recursos disponíveis, à luz do fogo; o molde social ainda se restringe a exército e camponeses, um sobrevivendo do outro. O desenvolvimento da ciência e da técnica em diminuto Espaço-Tempo, entretanto, delineia o novo horizonte: carvão, vapor, máquinas, eletricidade, novas ferramentas e eficazes técnicas introduziam impressionante alteração nos hábitos e costumes de toda aquela gente. Chegara o futuro; com ele, as mudanças. Trabalho, consumo, divertimentos, relações pessoais e interesses gerais, cidades, campos, águas, animais, até o ar, plantas, nada permaneceu imune.
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Nos trilhos
Tomemos a pista mais cedo, antes da invasão ao Novo Mundo. Os dados científicos e filosóficos se resumiam nas basilares hipóteses formuladas pelos gregos e pelos ensinamentos bíblicos. Os religiosos, tidos os mais aptos e conscientes aglutinadores sociais, orientavam povos e estados.
A ameaça do diabo punha o povo nos trilhos. Os trabalhos do egípcio Cláudio Ptolomeu (90-168 D.C.), de Santo Tomás de Aquino (1250) e as projeções da Divina Comédia, de Durante Aldighieri de Ferrara (2) satisfaziam as curiosidades e ordenavam aquela gente. O sistema ptolomaico, exposto no Almagesto, varava os séculos. A Terra era uma massa inerte e imóvel, localizada no centro do Universo. Tudo lhe girava ao redor:
Ptolomeu partiu do pressuposto de que a Terra era o corpo central e tratou as órbitas dos planetas como ciclos e epiciclos superpostos. Isso lhe permitiu prever eclipses do Sol e da Lua com muita precisão; tanta precisão que, durante 1500 anos, sua doutrina foi considerada a base segura da astronomia. (3)
Já Sto. Tomas equalizara um sistema de natureza no molde aristotélico somado à ética das proposições bíblicas. Razão e fé possibilitavam o conhecimento necessário, conveniente a simples compreensão, sem o propósito de intervir no curso entendido natural* da vida política e econômica. A base teórico-espiritual Tomista também resistiu por longo tempo, convivendo ao lado de místicos, fadas e bruxas, mágicos ou magos, gurus, druidas, videntes, feiticeiras, curandeiros, alquimistas (4), esotéricos, rosacruzes, os três últimos ávidos ao Graal, o paraíso atingido na Pedra Filosofal:
“A partir do século XII, a maioria dos países europeus adotou a alquimia como um estudo por seu próprio direito.” (5)
Os países eram assim regulados, por essas espécies de direito consuetudinário**, quase que um sistema ético competente para promover e manter a concórdia:
“A Pax Benedictina da Idade Média manteve o mundo unido como um Lar Terrestre, pelo menos da maneira como era então entendida.” (6)
O chamado grande anseio do legislador era atingido sem a interveniência desse arauto:
“A superioridade do jusnaturalismo medieval sobre o moderno consiste em que ele nunca teve a pretensão de elaborar um sistema completo de prescrições, deduzidas, more geométrico, de uma natureza humana abstrata e definida de forma permanente. Se é verdade que a função constante do direito natural sempre foi impor limites ao poder do Estado, é também verdade que a concepção medieval preenchia essa função atribuindo ao soberano o dever de não transgredir as leis naturais.” (7)
Se houvesse a transgressão, se a lei real tentasse sobrepujar o direito natural, configurava-se “não uma lei, mas de uma corrupção da lei.” (8)
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Útil & agradável
Pelo fim do século XIV, contudo, já se apresentava alguém para ensaiar a junção do útil com o agradável; e o padre João Duns Scoto convencia: os aspectos emocionais e espirituais alcançados pela religião deveriam servir à praticidade terrena, à matéria. A santa corporação assumia o controle de tudo.
No século posterior, o conhecimento e a informação, também o embuste e a mistificação se proliferaram como nunca, graças às mãos de Gutemberg. Cêrca de mil tipografias em mais de 250 localidades distintas (9) se encarregaram de arrolar as novas razões:
“De todas as revoluções tecnológicas do milênio, a de maior alcance ocorreu um pouco antes da metade dessa era. Em 1455 Gutemberg escreve a Bíblia.” (10)
Na virada ao XVI, duzentos e quatorze livros de matemática saíram publicados (11). Toffler mostra o pitoresco:
“Um conselho sem dúvida bem-intencionado, atribuído a Santo Agostinho, advertia os cristãos a manter distância das pessoas que sabiam somar ou subtrair. Era óbvio que haviam firmado um 'pacto com o diabo'.” (12).
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As descobertas
Várias descobertas, de inúmeros matizes, assaltavam simultaneamente as concepções sobre a própria Terra, sobre Deus, sobre o Universo. O homem e a sociedade teriam que sofrer semelhantes revoluções. O “pacto” agora vingava por todo o lado, a substituir os velhos conselhos tomistas, espirituais e bíblicos. O nascente mudava de quadrante. A realidade vinha oferecida pela ciência, meio materialmente calculável, por isso mais certo, acessível, por tudo, real. O Sol não girava sobre a Terra; e a julgar por tanta barbaridade, nem Deus estaria com ela preocupado. A Igreja e seus estandartes, em que pese o esforço de Gutemberg, perdiam seu principal apelo. E perdendo o status central, fomos relegados a mero coadjuvante universal, a um dos tantos planetas.***
Para o lugar da filosofia, da ética contemplativa e do direito natural, introduziu-se a nova e sedutora metafísica, a custo por demais elevado:
“A natureza toda se transformou em um palco de impulsos e atrações, de dentes e alavancas, de movimentos de partes ou de elementos aos quais eram diretamente aplicadas as fórmulas de movimentos produzidos por bem conhecidas máquinas.” (13)
Tal cenário só poderia receber atores com péssimos papéis. Se antes haviam tratados para orientação pessoal dos príncipes, todos eram pautados em singelas derivações dos conselhos de amor e obediência à Bíblia, na filosofia tomista. Agora, mister um pouco mais: nem tanta filosofia****, mas e sobretudo, a competência para governar, a arte para o comando sob crivo dessas circunstâncias completamente hostis.
O mundo conheceu César Bórgia, o filho do Papa. Maquiavel o fez de exemplo. E até hoje, encontra seguidores. Não sabem os incautos do trágico fim daquele Príncipe. O sádico florentino bem soube lhe acompanhar. E teceu o tapete, para ser puxado no momento adequado.
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Notas
* Natural: na definição de Hayek, tudo o que nasce espontaneamente e não é deliberadamente planejado por uma mente. Hayek, Friedrich August von, Os erros do socialismo - Arrogância Fatal, p. 191.
** Direito Consuetudinário: Uma espécie de contrato social, não expresso mas conhecido e respeitado por todos, por consenso e tradição.
*** Planeta quer dizer plano errante.
**** O termo filosofia provém da união de Philos & Sophia, significando "Amigo (ou amante) da Sabedoria".
1. Cit. Bastos, Wilson de Lima, Nos Meandros da Política, p. 18.
2. Verdadeiro nome de Dante Alighieri.
3. Heisenberg, Werner, A parte e o todo, pág. 43
4. Physika é o nome do primeiro trabalho nominado da alquimia. Fê-lo Bolos de Mendes, em 250 AC, produto das sugestões de Demócrito (500 AC), pai da teoria atômica; cit. Gilchrist, C. p. 27.
5. Idem, p. 13.
6.David Steindl-Rast, em Capra, F. e Steindl-Rast, D., com Matus, Thomas, Pertencendo ao universo – Explorações da fronteiras da ciência e da espiritualidade, p. 73.
7. Bobbio, Norberto, Locke e o Direito Natural, p. 46/48.
8. Santo Tomás, cit. Perelman, C., p. 387.
9. Viagens de Descobrimento, Time-Life, p. 113.
10. Revista Veja, ano 31/ número 51,
Especial do Milênio.
11. Ronan, Colin A., História Ilustrada da Ciência, Vol. III - Da Renascença a Revolução Científica, p. 61.
12.Santo Agostinho, cit. Toffler, Alvin e Toffler, Heidi, Criando Uma Nova Civilização - A Política da Terceira Onda, p. 41.
13. Dewey, John, p. 87.

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