sábado, 5 de abril de 2008

A dialética de Maquiavel

Formulo uma pergunta: após quatro séculos, o que resta de vivo no Príncipe? Podem os conselhos de Maquiavel ser ainda de alguma utilidade para aqueles que dirigem os Estados modernos? Circunscreve-se o valor do sistema político à época em que foi escrito e é, conseqüentemente, limitado e, em parte decrépito? Ou é, ao contrário, universal e atual, mais especialmente atual? Respondo a estas interrogações. Afirmo que a doutrina de Maquiavel vive hoje mais do que há quatro séculos, pois ainda que as formas exteriores de nossa existência tenham mudado consideravelmente, não se operaram modificações profundas, nem no espírito dos indivíduos, nem no dos povos. BENITO MUSSOLINI
Tal qual  ao Reino Unido, para os príncipes o Sol nunca se põe:
No entanto, a fôrça corrosiva do pensamento e do estilo de Maquiavel ultrapassaram, de infinita distância, o objeto do momento. Por ter realçado tão cruamente o problema das relações entre a política e a moral; por ter concluído, em 'uma cisão profunda, uma irremediável separação' (Jacques Maritain) entre elas, O Príncipe atormentou a humanidade durante mais de quatro séculos. E continuará a atormentá-la, senão 'eternamente', como se disse, - ao menos enquanto essa humanidade não tiver analisado inteiramente certa cultura moral, herdada, no que diz respeito ao Ocidente, de alguns Antigos célebres, e, sobretudo, do cristianismo. (Chevallier, Jean-Jacques, As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias, p.46/7.
O Príncipe, este 'breviário prático do déspota' fascinou reis e imperadores resolutos, os derrubadores de regimes legais ou constitucionais. Cromwell obteve sua cópia. Luís XIV, o Rei-Sol, fez dela sua 'leitura noturna predileta'. E Napoleão assegurava que de todos os livros acerca da política, o único digno a ser estudado era o Príncipe. Quanto ao chanceler de ferro - Bismarck - sua falta de escrúpulos, sua política hábil, tortuosa, complexa, tudo indica que adotava Maquiavel. (Jorge, Fernando:  90
O velhaco secretário considerava a religião e sobretudo o temor a Deus, essenciais para comandar os exércitos, para estimular a plebe a manter os homens bons, para fazer os reis se envergonharem.’ Escrevia ele também que o culto divino e o temor a Deus eram necessários sobretudo nas repúblicas, em que pese elas sequer existirem: Esta inobservância causara as ruínas das raras experiências republicanas, "porque. Porque onde falta o temor a Deus, convém ou que aquele reino desabe, ou que seja sustentado pelo temor a um príncipe que supra os defeitos da religião." Mas além da realidade enfrentada, que outra fonte poderia abastecer o mais famoso florentino para capacitá-lo a tão perene obra, tão destrutivo cocktail? Exceto a história romana, Maquiavel não cita nada. As opções eram escassas, mas ele não fornece nenhuma. Todavia, se examinarmos o caráter de suas proposituras em confronto com o que já era conhecido, com a moda praticada, e com as crenças em voga podemos supor o fulcro mais contundente pelo qual se valeu o torpe perú para arrumar um cômodo no Palácio.
"Até o Renascimento, o Ocidente praticamente desconhecia Platão. Mas alguns manuscritos gregos, comprados em Constantinopla, mudaram esse cenário. Entre eles, levados a Florença em meados de 1430, estava nada mais nada menos do que a obra completa de Platão." (ABRÃO, B.:136)
 A ética tomista não lhe sensibilizava, obviamente; muito menos Aristóteles. Seu oriente, sem dúvida, foi Platão (428-347 a. C.), ex-secretário do Tirano de Siracusa:
Quer se suceda que governem com a lei ou sem a lei, sobre súditos voluntários ou forçados; quer que purguem o estado, para bem deste, matando ou deportando alguns de seus cidadãos... enquanto procederem de acordo com a ciência e a justiça e preservarem o estado, tornando-o melhor do que era, esta forma de governo pode ser descrita como a única que é certa. (Platão, Estadista, cit. Popper, Karl M., Sociedade Democrática e Seus Inimigos, p. 184.1)
Para a empunhadura do poder, Platão “inventara” a justificativa basilar do coletivismo, a redução do homem a mero número: “Legislo tendo em vista o que é melhor para todo o Estado; coloco justamente os interesses do indivíduo num nível inferior de valor.” (.Idem, p. 123) 
Ao "renascimento" a Itália deveria resgatar o Império de outrora, “unida, armada à própria sobrevivência. Eis a virtú  da dialética platônico-maquiavélica:
Maquiavel considerava que a religião e sobretudo o temor a Deus, era essencial ‘para comandar os exércitos, para estimular a plebe a manter os homens bons, para fazer os reis se envergonharem.’ Escrevia ele também que o culto divino e o temor a Deus são necessários sobretudo nas repúblicas: ‘e como a observância do culto divino é origem da grandeza das repúblicas, também o desprezo daquele é origem da ruína destas. Porque onde falta o temor a Deus, convém ou que aquele reino desabe, ou que seja sustentado pelo temor a um príncipe que supra os defeitos da religião.’
Allons enfant

Na França, desde 1789, ou se era vermelho ou branco, padre ou leigo,burguês ou socialista, reacionário ou progressista. E entre os dois grupos inimigos, as pessoas se estripavam, cortavam-se em pedacinhos, insultavam-se, desprezavam-se. Giles Lapouge
O FRANCÊS 2008  permanece escolhendo, por quem quer ser dominado:
“Paris define embate entre esquerda e direita.” (1).  O hábito de se enredar nas dialéticas é compatível com a paixão do povo francês.Veja galeria de fotos dos protestos na França Governantes assim logram submetê-lo à rapinagem, à tirania:
Essa contradição de idéias reproduziu-se, infelizmente, na realidade dos fatos na França. E, apesar de o povo francês ter-se adiantado mais do que os outros na conquista de seus direitos, ou melhor dito, de suas garantias políticas, nem por isso deixou de permanecer como o povo mais governado, mais dirigido, mais administrado, mais submetido, mais sujeito a imposições e mais explorado de toda a Europa. (2)
O furacão social provocado pela desvirtuada revolução só poderia ser estancado pela força superior que propunham os oportunistas - uma força ainda mais absoluta e muito mais danosa do que a do regime antigo - a moderna ditadura militar maquiavélica, enfeixada pelo mito nacionalista roussoniano. A tão elevados fins, nenhum sacrifício importava. Tão “nobre” ideal fez da morte o banal:
Nenhum de nós pertence a tal ou qual Departamento, pois pertence a França inteira. Pretende-se que há favoráveis a fragmentação da França; façamos que estas idéias absurdas desapareçam, condenando seus autores a pena de morte. A França deve ser um todo indivisível. Exijo pena de morte contra quem gostaria de ver destruída a unidade da França. (3)
Submissão total era imposta à mulher francesa, num condicionamento deplorável:
Uma das que mais lutou pelos direitos da mulher durante a Revolução Francesa foi Olympe de Gouges. Em 1791, dois anos depois da Revolução, portanto, ela publicou uma declaração dos direitos da mulher. É que a 'Declaração dos direitos do homem e do cidadão' não tinha dedicado muito espaço aos direitos naturais das mulheres. Olympe de Gouges reivindicava para as mulheres exatamente os mesmos direitos dos homens. E qual foi o resultado disso? Ela foi decapitada em 1793 e as mulheres proibidas de toda e qualquer atividade política. (4)
O sofrimento feminino também pode ser creditado ao “sedutor científico”, Dom Maquiavel:
Pois a fortuna é uma mulher que, para ser mantida em sujeição, tem de ser espancada e maltratada; e vemos que se deixa dominar mais depressa pelos que assim a tratam do que por quantos dela se aproximam de maneira mais tímida. E sempre, como uma mulher, ela favorece os jovens, porque são menos escrupulosos, mais violentos e a dominam com maior audácia. (5)
Por lá não conheciam outro canto:
Observe-se que, quando Robespierre vem pedir a ditadura, não é sòmente para repelir o estrangeiro ou para combater os grupos de oposição. Ele prefere a ditadura para fazer prevalecerem, pelo terror, seus princípios próprios de moral. (6)-
Alguns envolvidos bem que conseguiam trocar sua presença na praça fatídica pelo “turismo” à Ilha do Diabo, na Guiana. O repórter traz a narrativa:
Alí, a 15 milhas do centro espacial francês, ficam as ilhas Salut, onde funcionou o mais desumano sistema carcerário dos tempos modernos, paradoxalmente praticado pelo povo que se diz amante da fraternidade e praticante dos direitos humanos. Até serem desativadas, em 1943, as três ilhas - Saint Joseph, Royale e a famosa Diable (Diabo) - registraram a morte, por maus tratos, de setenta mil homens, a tal ponto de serem batizadas de 'La Guillotine Seche' (A Guilhotina Sêca) por matar sem sangue. (7)
Na França o poder muda de aspecto, mas não de natureza. Sempre é, e será despótico. A razão apontou Montesquieu, ainda antes do aparecimento da Guillotine: é impossível um governo democrático em país de grande extensão territorial. Os EUA encontraram sua mágica no fracionamento do território em vários pequenos estados, e por lá jamais se houve qualquer tirania. A coesão francesa, entretanto, enseja que abundem regimes de exceção.
A recém-nascida democracia, o liberalismo político vivido pela Inglaterra já há século e a extraordinária escola fisiocrata de economia, propugnados com tanto sacrifício pelos integrantes da Enciclopédia, viram-se sufocados por aquela que se tornou símbolo às maiores ditaduras contadas pela história mundial. A França, malgrado tanto sacrifício, apenas trocou de “dono”: na cadeira do Rei outrora coroado sentou o Imperador do chapéu atravessado, agora aclamado.-
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Grato a Maquiavel
Maquiavel ensinara:
“Deus não quer fazer tudo, para não tolher o livre arbítrio e aquela parte de glória que nos cabe”. (8)
O garboso general Bonaparte, ao conhecer as palavras, ironicamente sentenciou:
“Vê-se que Maquiavel desejava ter seu quinhão. Eu o concedo porque ele me serviu bem.” (9)
Assim é que o Príncipe serviu a repetidas ambições, desses insaciáveis amantes da tirania, da riqueza, da corrupção. Fizeram do miserável plano, até então insignificante e circunstancial, pobre de espírito e de forma, um tormento que ainida arrasa as gentes, a começar pelos próprios executores, de todos os séculos e continentes. Malgrado o costumeiro funesto epílogo, napoleões se proliferaram:
“Quanto ao sobrinho, Napoleão III, a quem chama 'o Pequeno', pretende Victor Hugo, na História de um Crime, que, prisioneiro em Ham, preparando-se para a usurpação, 'só lia um livro: O Príncipe'.” (11)
H.G. Wells explica:
Quando os príncipes eram eles próprios suficientemente inteligentes, também eram maquiavélicos. Viviam planejando e tramando destruir uns aos outros, roubar os companheiros mais fracos, destruir os rivais, para que, por um breve intervalo, lhes fosse dado o supremo prazer de pisar soberba e orgulhosamente sobre todos. Não tinham nenhuma visão de qualquer plano dos destinos humanos superior ao do pequenino jogo entre eles próprios. (12)
Bertrand Russell (1872-1970) em apenas uma palavra foi o que pode se chamar claro:
O Príncipe é um compêndio dedicado a gangsters.(13)
Eis a razão da cartilha florentina andar tão na moda por aqui.
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Notas
1. Folha de São Paulo,18/3/2001, p. A23.
2. Bastiat, Frèderic, A Lei, p. 63.
3. Danton, Jacques, Discurso na Convenção de 25 de setembro de 1792; Danton, Discours choisis, p. Jouvre et Ditisheim, p. 102; cit. Gusdorf, Georges, As Revoluções da França e da América, p. 59.
4. Gaarder, Jostein, O Mundo de Sofia, p. 341.
5. Maquiavel, Nicolau, O Príncipe; cit. Downs, Robert Bingham, p. 20.
6. Robespierre, cit. Bastiat, F., p. 55.
7. Gomes, Flavio Alcaraz, Diário das ilhas do diabo. - Correio do Povo, 5/11/1995, p. 6.
8. Maquiavel, N. e Bonaparte, N. cits. Jorge, Fernando, p. 134.
9. Idem,p. 71.
10. Idem, p. 90.
11. Napoleão III, cit. Chevallier, Jean-Jacques, As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias, p. 46.
12. Wells, H. G., História Universal, segundo tomo, Da ascenção e queda do império romano até o renascimento da civilização ocidental, p. 507.
13. Russell, Bertrand, cit. Jorge, F., p. 142.


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