sexta-feira, 4 de abril de 2008

O efeito Maquiavel

O Príncipe, este 'breviário prático do déspota' fascinou reis e imperadores resolutos, os derrubadores de regimes legais ou constitucionais. Cromwell obteve sua cópia. Luís XIV, o Rei-Sol, fez dela sua 'leitura noturna predileta'. E Napoleão assegurava que de todos os livros acerca da política, o único digno a ser estudado era o Príncipe. Quanto ao chanceler de ferro - Bismarck - sua falta de escrúpulos, sua política hábil, tortuosa, complexa, tudo indica que adotava Maquiavel
Formulo uma pergunta: após quatro séculos, o que resta de vivo no Príncipe? Podem os conselhos de Maquiavel ser ainda de alguma utilidade para aqueles que dirigem os Estados modernos? Circunscreve-se o valor do sistema político à época em que foi escrito e é, conseqüentemente, limitado e, em parte decrépito? Ou é, ao contrário, universal e atual, mais especialmente atual? Respondo a estas interrogações. Afirmo que a doutrina de Maquiavel vive hoje mais do que há quatro séculos, pois ainda que as formas exteriores de nossa existência tenham mudado consideravelmente, não se operaram modificações profundas, nem no espírito dos indivíduos, nem no dos povos. Mussolini
NA ESTRÉIA DA TRAGÉDIA não logrou seu diretor, tampouco nenhum ator, qualquer fidelidade ou reconhecimento público. Do povo até surgiam trocadilhos. Alguns lhe alcunhavam mal chiavelli, que quer dizer maus pregos; para outros, Maquevill, expressão italiana que daria qualquer coisa como Maquivilão, demojunior ou Mauquiavel. O latim evidencia a injustiça do eterno sucesso:
Tanto Nomini Nullum Par Elogium.(1)
Falecido, de tão popular fez-se adjetivo* e substantivo.** O efeito nuclear ocasionado por Maquiavel é maior do que a bomba de Hiroshima e o vazamento da Usina de Chernobyl, juntos. Aliás, o florentino é o principal responsável por esses dantescos episódios. Para ser mais enfático, sem exagêro, seu dano sobrepuja a união de todas as bombas já disparadas na face da Terra. Praticamente sem exceção, todas foram largadas por respeito aos seus ditames, e desrespeito à humanidade. No âmbito de seu alcance, tal qual o do Reino Unido, o Sol nunca se põe:
No entanto, a fôrça corrosiva do pensamento e do estilo de Maquiavel ultrapassaram, de infinita distância, o objeto do momento. Por ter realçado tão cruamente o problema das relações entre a política e a moral; por ter concluído, em 'uma cisão profunda, uma irremediável separação' (Jacques Maritain) entre elas, O Príncipe atormentou a humanidade durante mais de quatro séculos. E continuará a atormentá-la, senão 'eternamente', como se disse, - ao menos enquanto essa humanidade não tiver analisado inteiramente certa cultura moral, herdada, no que diz respeito ao Ocidente, de alguns Antigos célebres, e, sobretudo, do cristianismo. (2)
Como bem percebeu o aplicado pesquisador, ainda em meados do século recém findo, a radiação do Exterminador do Presente continua cruzando o EspaçoTempo. Até mesmo o sentimento machista pode ser creditado ao “sedutor científico”, Dom Maquiavel:
Pois a fortuna é uma mulher que, para ser mantida em sujeição, tem de ser espancada e maltratada; e vemos que se deixa dominar mais depressa pelos que assim a tratam do que por quantos dela se aproximam de maneira mais tímida. E sempre, como uma mulher, ela favorece os jovens, porque são menos escrupulosos, mais violentos e a dominam com maior audácia. (3)-
Decifra-me, ou te devoro!
Centenas de autores, intelectuais e políticos se debruçaram sobre a pequena e incisiva obra, ao longo dos séculos. Alguns até o compreenderam como um narrador do momento, como se não tivesse influência sobre o mesmo. Não foram escassos os seguidores políticos, científicos ou filosóficos. De cara, veio Francis Bacon (1561-1626). Este também reunia os três talentos, e mais o de corrupto:
Temos uma grande dívida para com Maquiavel e alguns outros, que descreveram o que os homens fazem e o que não deveriam fazer, pois não é possível unir a duplicidade da serpente e a inocência da pomba, quando não se conhecem exatamente todos os recursos da serpente: sua baixeza rasteira, sua flexibilidade pérfida, o ódio que afia o dardo.
Eduard Meyer (Maquiavel e o drama elizabetano) contabiliza quatrocentas referências ao florentino. Por todo o lado fulgurava o catecismo - inclusive por Shakespeare (Henrique VIV, parte III, ato III, cena 2) :
Porque posso matar sorrindo,
E gritar contente aquilo que aflige meu coração,
E umedecer minha face com lágrimas artificiais,
E afeiçoar meu rosto a todas as circunstâncias,
Afogarei mais marinheiros do que a sereia;
Matarei mais basbaques do que o basilisco;
Falarei tão bem quanto o Nestor,
Enganarei mais astutamente do que Ulisses,
E como Sínon, tomarei outra Tróia.
Posso acrescentar cores ao camaleão,
Mudar de formas como Proteu quando me convier,
E dar lições ao mortífero Maquiavel.
A vizinha logo entrou no embalo:
“Em 1641, Richelieu encomenda ao cônego Machon uma Apologia de Maquiavel.” (4)
Em seguida, pela pena de outro coleguinha dotado com as quatro patas, quero dizer, talentos, Maquiavel retornava à Inglaterra:
“Como se comentou recentemente, Hobbes foi a ovelha negra da sociedade inglesa do seu tempo, assim como Maquiavel, no século precedente.” (5)
“Cromwell, Primeiro-ministro de Henrique VIII e primeiro ditador do mundo, reverenciava o Príncipe de Maquiavel como 'quintessência da sabedoria política'.” (6)
A Itália ficou dividida. Francesco Flora (7) se convencia do “bom espírito patriótico” do perú, mas a Igreja, pelo Papa Paulo IV, já em 1559, o incluíra no Index. O Cardeal Arcebispo de Canterbury havia julgado o Príncipe “escrito pela mão do Demônio”. Coincidência ou não, Old Nick pode ser Velho Nicolau. Protestantes igualmente abominavam o autor.
As imediatas críticas foram abundantes, em todos recantos, como em Guillaume de La Perrière, Miroir Politique de 1567, Thomas Elyott, The Governor, 1580, Locke indiretamente, em 1689 e outros que se seguiram.
O compêndio do jurisconsulto protestante Innocent Gentillet, publicado em 1576,
Discursos sobre os Meios de bem Governar
, contra Nicolau Maquiavel Florentino,
terá como complemento, em 1592, o Julgamento de Nicolau Maquiavel, pelo Padre
Jesuíta Antoine Possevin.
(8)
Para Chevallier, "Maquiavel não passava de um cínico." (9)
Ticket para o além
O garboso general Bonaparte, ao conhecer as palavras, ironicamente sentenciou:
“Vê-se que Maquiavel desejava ter seu quinhão. Eu o concedo porque ele me serviu bem.” (10)
Assim é que o Príncipe serviu a repetidas ambições. Os insaciáveis amantes da tirania, da riqueza, da corrupção fizeram do miserável plano, até então insignificante e circunstancial, pobre de espírito e de forma, um tormento que anida arrasa as gentes, a começar pelos próprios executores, de todos os séculos e continentes:
O Príncipe, este 'breviário prático do déspota' fascinou reis e imperadores resolutos, os derrubadores de regimes legais ou constitucionais. Cromwell obteve sua cópia. Luís XIV, o Rei-Sol, fez dela sua 'leitura noturna predileta'. E Napoleão assegurava que de todos os livros acerca da política, o único digno a ser estudado era o Príncipe. Quanto ao chanceler de ferro - Bismarck - sua falta de escrúpulos, sua política hábil, tortuosa, complexa, tudo indica que adotava Maquiavel. (11)
Malgrado o funesto epílogo, napoleões se proliferaram:
“Quanto ao sobrinho, Napoleão III, a quem chama 'o Pequeno', pretende Victor Hugo, na História de um Crime, que, prisioneiro em Ham, preparando-se para a usurpação, 'só lia um livro: O Príncipe'.(12)
H.G. Wells explica:
Quando os príncipes eram eles próprios suficientemente inteligentes, também eram maquiavélicos. Viviam planejando e tramando destruir uns aos outros, roubar os companheiros mais fracos, destruir os rivais, para que, por um breve intervalo, lhes fosse dado o supremo prazer de pisar soberba e orgulhosamente sobre todos. Não tinham nenhuma visão de qualquer plano dos destinos humanos superior ao do pequenino jogo entre eles próprios. (13)
Bertrand Russell (1872-1970) em apenas uma palavra foi o que pode se chamar claro:
O Príncipe é um compêndio dedicado a gangsters”. (14)
Estava coberto de razão:
“Consciente ou inconscientemente o Mein Kampf, de Hitler, deve muito a Maquiavel, Darwin, Marx, Mahan, Mackinder e Freud.” (15)
A obra ainda encontra estupenda ressonância. E de nação em nação, de continente a continente, as trágicas conseqüências vem se multiplicando, gradualmente ampliadas, atingindo o ápice da performance em pleno século vinte, também o começo de seu declínio, após levar de roldão numerosos adeptos, ideólogos, interesseiros, líderes políticos e inocentes povos embarcados neste trem do desatino.
Os discutíveis fins continuaram “legalizando” os criminosos meios, para o doloroso, nem por isto menos veemente protesto, acima de tudo científico, porque pautado na quântica, onde há interação, trazido por Ema Goldmann:
Essa perversão dos valores éticos cedo se cristalizou no lema dominante do Partido Comunista: os fins justificam os meios. Não há maior falácia do que a crença de que objetivos e propósitos são uma coisa e métodos e táticas outra. Essa concepção é uma poderosa ameaça à regeneração social. Toda a experiência humana ensina que métodos e meios não podem ser separados de seu objetivo principal. Os meios empregados acabaram por se tornar, através de hábitos individuais e da prática social, parte e parcela do objetivo final; eles exercem sua influência sobre ele, modificam-no até que objetivos e meios se tornem uma coisa só. Desde o dia de minha chegada na Rússia eu senti isso, a princípio vagamente, depois com uma clareza cada vez maior. Os grandes e elevados objetivos da Revolução tornaram-se tão enevoados e obscurecidos pelos métodos utilizados pelo poder político para atingi-los, que é difícil distinguir entre os meios temporários e o propósito final. Psicológica e sociologicamente, os meios irão necessáriamente influenciar e alterar os fins. Toda a história do homem é uma prova contínua da máxima de que retirar conceitos éticos dos métodos utilizados significa mergulhar nas profundezas da desmoralização total. É aí que reside a verdadeira tragédia da filosofia bolchevique tal como foi aplicada à Revolução Russa. Que esta lição não tenha sido em vão.
(My Further Disillusionmet with Russia, 1924, cit. Woodcock, p. 14)-
No Brasil
O poder de Estado, que parecia planar bem acima da sociedade, era todavia, ele próprio, o maior escândalo desta sociedade e, ao mesmo tempo, o foco de todas as corrupções.
Comuna de Paris, 1871
O Príncipe do Cadê Tche saiu dos pampas com a cartilha:
“Ainda com Maquiavel, defino outro traço da mentalidade política do Presidente Getúlio: o desejo de ser temido, sem deixar de ser amado.” (16)
“Getúlio era um fiel discípulo do secretário florentino, daquele que Gioberti considera o 'Galileu da política' e Emil Ludwig chama de 'instrutor dos ditadores'.” (17)
Octávio de Faria exultava em seu Machiavel e o Brasil:
Paremos um momento e detenhamo-nos ante a figura de um homem que Maquiavel parece ter previsto e que teria saudado, Mussolini, indivíduo de exceção que o Brasil precisava ter produzido para si ou ter a possibilidade de criar, de modo a poder dirigir-se amanhã para rumos menos negros. Mussolini é em traços gerais o homem com quem Maquiavel sonhou. (18)
Deve ter sonhado também com o macaco tupiniquim:
E sei, por testemunho de Augusto Frederico Schmidt, via Oswaldo Aranha, que Getúlio Vargas leu e teceu comentários à margem de 'Machiavel e o Brasil', encontrando-se, evidentemente, na figura desse chefe carismático idealizado, a imagem, certa ou errada, de Benito Mussolini. (19)
“Seu exasperados inimigos rotularam-no de maquiavélico. Essa denominação era exata; Getúlio também a teria achado lisonjeira. Na morte como na vida os atos de Getúlio foram cuidadosamente calculados para produzir o máximo efeito político”. (20)
Tancredo Neves, também ex-colaborador, tentou arrumar a defesa, mas confirmou a predileção pelo estilo. En passant, o líder das Diretas Já, eleito Presidente da República pelas indiretas, a mim nunca enganou:
Muitas vezes, quando ele tinha que adotar processos que o levassem a ser considerado maquiavélico, era em função da permanência desses objetivos. De maneira que é perfeitamente compreensível que, na luta pelos objetivos maiores, ele tivesse que, muitas vezes, abandonar o amigo de ontem pelo inimigo rancoroso, porque isso era necessário. (21)
Os fins justificaram os meios. Contudo, bem sabemos, o ex-ministro do caudilho também teve um fim melancólico, precoce, abrupto, de acordo com todos os atores que se dispuseram a encetar o roteiro daquele sádico diretor. É que o astuto programou um final melancólico, e se for possível trágico, ao seu astro principal, justamente para gôzo da platéia, a que lhe garante a bilheteria por todos esses séculos. Porque a subida ao poder é fácil diante de qualquer povo atônito, e seu deleite prazeiroso, não percebe o incauto de que modo invariável termina a sarcástica película. Destarte, mesmo que por tabela, ou por imitação barata, na carência de um exemplo mais moderno, continuamos a primar pelo apreço ao modêlo A, o de trinta, na expressão de Florença:
'''LULA QUER PARTE DA MEMÓRIA DE VARGAS.''
Professora da USP analisa influência do modelo populista de Getúlio Vargas no atual governo. A historiadora Maria Lígia Coelho Prado, coordenadora do Seminário Internacional Perón e Vargas, Aproximações e Perspectivas, realizado no início do mês, vê Lula como administrador de uma contradição: busca se apresentar como 'pai dos pobres' e, ao mesmo tempo, atende aos interesses dos banqueiros e grandes empresários. Ela analisa o que há de herança varguista no atual governo. (22)
Não é contradição, senão tentativa de cópia fiel: Getúlio manipulava o PTB aliciando os trabalhadores da cidade; e o PSD, para angariar simpatizantes ruralistas. E o que temos hoje? PT e o PSDB***. A marmelada continua. Nada mudou de lugar, exceto o prosaico "B":
Sim, o país está crescendo. O grande mérito do governo Lula é não ter estragado a política econômica do 'tormentoso' FHC. Ademais, também estamos crescendo muito no campo da corrupção, da incompetência dos companheiros sindicalistas em cargos técnicos, em compra institucionalizada de votos, digo, em programas sociais, em perda de credibilidade das instituições. (23)
Diante do four de bigode, ora de barba, em Belô camuflado, em Sampa careca, e no sul de cara-lavada, por certo a companheirada do Ali Babá da Bobonne ainda presuma que todos continuemos a dormir de touca.

Aprecie:
A fonte de Maquiavel
O papel de Maquiavel
A perene atualidade de Maquiavel
___________
Notas
* Maquiavélico
** Maquiavelismo.
*** Offshore MCA concentrou 50% das propinas para tucanos, diz Suíça
Relatório indica que Alstom pagou comissão de 15% para obter contrato com Eletropaulo. Um único contrato de consultoria teria sido usado para dar cobertura a mais da metade das propinas supostamente pagas, entre outubro de 1998 e abril de 2001, a pessoas ligadas ao governo de São Paulo, então sob o comando do P$DB. Outras offshores, empresas com sede em paraísos fiscais, fecharam contratos da mesma natureza.

1. "Tão grande nome nenhum elogio alcança"; ou, como prefere Chevallier – “Nenhum elogio a altura de tão grande nome.”
2. Chevallier, Jean-Jacques, As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias, p.46/7.

3. Maquiavel, Nicolau, O Príncipe; cit. Downs, Robert Bingham, p. 20.
4. Chevallier, Jean-Jacques, p. 45
5. Bobbio, 1997:165
6. Wells, H. G., História Universal, segundo tomo, Da ascenção e queda do império romano até o renascimento da civilização ocidental, p. 507.
7. Flora, Francisco, Storia Della Letteratura Italiana, cit. Gramsci, Antônio, Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, p. 113
8. Chevallier, Jean-Jacques, p. 44.
9. Cit. Pinto: 66
10.Jorge, Fernando, p. 71.
11. Idem, p. 90.
12. Cit. Chevallier, Jean-Jacques, p. 46.
13. Wells, H. G, p. 507.
14. Cit. Jorge, F., p. 142.
15. Downs, R. B., p. 8.
16.Reale, Miguel, p. 174.
17. Capanema, Gustavo, Dois Traços Getulianos em Maquiavel, Folha de São Paulo, 21/8/1977.

18.P. 88.
19.Sadek, Maria Tereza Aina, Machiavel, machiavéis: a tragédia octaviana (Estudo sobre o pensamento político de Octávio de Faria), p. 186.
20. Skidmore, Thomas E., Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964), p. 57.
21. Cits. Mascarenhas, Eduardo, p. 25.

22. O Estado de São Paulo, em 15/4/2008.
23. Estadão, 7/6/2008 - comentário do leitor.



Nenhum comentário:

Postar um comentário