domingo, 3 de fevereiro de 2008

Locke e o farol de Shaftesbury

NO INFERNO LONDRINO (1), a subserviência a Roma passava intolerável. Afinal, Deus e seus embaixadores  apenas olhavam a cidade pegar fogo. Nada adiantava. Passada a tragédia, um ilustre cidadão, de nome Anthony Ashley Cooper (1621-1683), recebeu o título de Lord Shaftsbury. Em seguida foi aclamado Presidente do Conselho de Colonização e Comércio da Royal Society. Por bizarro, mas não por coincidência, na própria terra  de Newton havia repulsa explícita ao mecanicismo cientificista:
Na Grã-Bretanha, contudo, em particular no final do século XVII, a metáfora do relógio foi tratada com muito mais ambivalência do que no continente. O relógio sempre apareceu ali como uma metáfora de arregimentação e compulsão irracional. (Henry: 100)
Shaftesbury (em carta a Thomas Poole, cit. Brett: 109) discordava frontalmente do grande Newton, algo que nem Locke ousou: "Newton era um mero materialista. Em seu sistema o espírito é sempre passivo, espectador ocioso de um mundo externo há motivos para suspeitar que qualquer sistema que se baseie na passividade de espírito deve ser falso como sistema."
Planck e Einstein lavaram-lhe a alma. Eis a peculiar intuição e a alta intensidade do faro científico do “padrinho” de Locke, por Brett:
Shaftesbury se deu conta que as doutrinas de Hobbes solapavam toda a interpretação espiritual do universo e convertiam a moral em simples conveniência. Deu-se conta, também, que estas doutrinas e outras parecidas destruíam os estímulos da arte e as grandes obras artísticas da humanidade. A filosofia de Shaftesbury foi planejada para combater a interpretação mecanicista da realidade, mas sobrepujou a filosofia daqueles em seus esforços para salvar as artes dos efeitos das idéias mecanicistas: aspirou fundar bases não só para a verdade e a bondade, como também para a beleza.
O mundo reverencia John Locke, o que faz bem; raros, contudo, além de britânicos, ouviram falar desse Shaftesbury, lapso histórico e científico, uma injustiça com aquele que, inclusive, trabalhou com menor empirismo do que o cirurgião liberal. A Inglaterra é pródiga na badalação da personalidade, mas o eco parece não varar a tradicional bruma. Sem dúvida, ambos se completaram:
“Devemos os Dois Tratados ao prodigioso conhecimento das questões de Estado adquirido por Locke no curso de seus frequentes diálogos com o primeiro conde de Shaftesbury.” (Locke, 1998: 37)
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A presença da Shaftesbury's Band
Lord tornou-se Chanceler; e Locke, Secretário para a Apresentação de Benefícios, até internacionais, como a Constituição da colônia de Carolina. Foi na passagem pela Exeter House(2) que o Secretário compôs o Ensaio sobre o Entendimento Humano. A iniciação foi acompanhada pelos integrantes daquela Royal Society , abrigo de Oxford, mas também da rival Cambridge, de expurgados de Cromwell, e de avulsos, como Sir William Petty, até então modesto agrimensor irlandês.Por lá aportaram o revolucionário médico Thomas Sydenham e o Alchymistarum Roberto Boyle (3). Os destemidos pesquisadores ofereciam algumas dúvidas quanto à velha teoria grega dos quatro elementos. Henry More participava:
Não só refutei suas [de Descartes e de Hobbes] Razões, como também, partindo de princípios Mecânicos admitidos por toda a gente e confirmados pela Experiência, demonstrei que o Descenso [queda] de uma pedra ou projétil, ou de qualquer outro Corpo pesado semelhante, é enormemente contrário às leis de Mecânica.
Tirante raros newtonianos, a plêiade da Royal Society compunha uma heterogeneidade mutuamente complementar:
O exercício da física deveria ser restrito a homens de mentes mais livres; se os mecanicistas fossem elaborar uma física sozinhos, eles a levariam para suas oficinas e a obrigariam a consistir exclusivamente de molas, pesos e rodas. Schwartz: 44
O think-tank partilhava o segredo: obssessivos não deveriam ali ter acesso, especialmente Hobbes (Bobbio, 1997:165):“Como se comentou recentemente, Hobbes foi a ovelha negra da sociedade inglesa do seu tempo, assim como Maquiavel, no século precedente.”
A “ovelha negra” marcou seu protesto com virulência.De More elevava Descartes, e R. Boyle recebeu o ataque, traque intitulado Dialogus physicus sive de natura aeris, de 1662.
Sete anos após, Cambridge organizaria um debate sobre a filosofia experimental, já sob a égide de Newton.
Em 1671, Henry Stubbe (Schwartz: 44) disparou contra o pragmatismo baconiano, o maior associado de Hobbes, apontando seu “desrespeito às antigas jurisdições eclesiásticas e civis, ao antigo governo, bem como aos governadores do reino.”
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A excursão à França
De 1675 a 1679, os luminares se direcionaram à França, precisamente aos círculos intelectuais de Montpellier e Paris. Eis o postal:
Locke e Shaftesbury consideravam o despotismo como um mal francês e, quando escreveu o documento, em 1679, Locke acabava de voltar da França, após estudar o mal francês enquanto sistema político. A filosofia de Shaftesbury foi planejada para combater a interpretação mecanicista da realidade, mas sobrepujou a filosofia daqueles em seus esforços para salvar as artes dos efeitos das idéias mecanicistas: aspirou fundar bases não só para a verdade e a bondade, como também para a beleza.
BRETT: 109-
Sobre a estada  existe uma edição de 1953, de Cambridge, edição John Lough, intitulada Locke’s travels in France (1675-1679) as related in his journals, correspondence, and other papers. Também há o estudo de Gabriel Bonno, Les relations intellectuelles de Locke avec la France, da University of California Press, Berkeley e Los Angeles, 1955. São obras raras a nosotros do terceiro mundo. Todavia, podemos assegurar: a semente que germinou na geração francesa posterior, a de Montesquieu, saiu das mãos, ou melhor, das cabeças de Locke e Shaftesbury.
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;A ebulição londrina
A Inglaterra permanecia em grande agitação política. Shaftesbury, líder da oposição a Carlos II, estivera preso, mas voltara a fazer parte do governo em 1678, desempenhando as funções de Presidente do Conselho Privado. Os serviços de Locke foram novamente requisitados, mas suas relações com o governo daquele monarca não durariam muito tempo; menos ainda, Shaftesbury. Em 1681, acusado de chefiar uma rebelião para depor o soberano, o Lord foi preso, e compelido a trocar a Inglaterra pela Holanda, onde faleceu em 1683. Shaftesbury não presenciou o choro do bebê que ele próprio gerou, com Locke. Apagava-se quiçá o maior farol iluminista, mas não sua luz. A Revolução evoluiu Gloriosa sob todos aspectos, justamente como o benfeitor pleiteara. E a Grã-Bretanha assim se encaminhou à supremacia política, econômica e social, por séculos, bendizer até hoje.
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Na Holanda
Depois do infausto episódio que precipitou a morte do inspirador, Locke foi recebido pelos neerlandeses acompanhado de Christian Huygens. Juntavam-se aos pesquisadores de Amsterdã e Roterdã e vários estrangeiros amantes da liberdade, na maratona de perseguição científica, em rastro desprovido de argumento matemático. Ainda que utilizasse grande dose de empirismo e não menor religiosidade, (modernos filósofos e cientistas como Dewey e Capra não o perdoam), a Locke não cabe o vezo determinista e mecanicista vigorante no continente:
“Assim, o Ensaio de Locke, mais do que oferecer um novo sistema, pretende varrer velhos preconceitos e prejulgamentos.” (Russell, 2001: 307)

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Relativismo
Esse Segundo ensaio sobre o governo civil: um ensaio referente à verdadeira origem, extensão e objetivo do governo civil apresentava uma solução inovadora, genuinamente relativista.
Dos raros precursores da ciência política, praticamente nenhum lhe serviu, com exceção indireta de Spinoza, contemporâneo. Shaftesbury e Locke, como o próprio Spinoza, não se deixaram levar pela onda platônica que assolava o continente, pelo contrário: de muitas maneiras, as idéias de Shaftesbury constituíram uma reação aos chamados Platônicos de Cambridge, entre eles além de Newton, Ralph Cudworth (1617-88) e Henry More (1614-87), todos representantes do tardio neoplatonismo.
Com Newton, nem falar, um ser de personalidade fechada, introspectiva e de temperamento difícil, como sói acontecer com quem tem receio de ser descoberto.
Locke não usou Platão (4), a não ser para lembrar das trinta tiranias de Atenas e Siracusa, as quais “tiveram como conselheiro o próprio Platão”; de Maquiavel, igualmente, não se tomou conhecimento; tampouco ambos se detiveram em Hobbes, exceto para rapidamente contestá-lo. O intento custou menos tempo do que com o reacionário Sir Robert Filmer, autor de Patriarca: uma defesa do poder natural dos reis contra a liberdade inatural do povo. (Quack!) Nos franceses, o par não se deteve. Nem Bousset, ou Bodin, muito menos Descartes sensibilizaram os pioneiros iluministas. O universo daqueles artífices que instruiam o reino francês se fazia totalitarista, mecanicista, determinista.
A dupla quebrou a primeira perna do tripé; as outras deveriam cair na conseqüência, mas o mundo tinha que esperar por mais provas.(5)
No século XX elas vieram, em profusão. Os físicos nucleares seriam seus eleitores:
"Max Born também escreveu, para dizer que não entendia como era possível conciliar um universo totalmente mecanicista com a liberdade da ética individual. Um mundo determinista é, para mim, um mundo muito aborrecido.” (Brian: 374)
Nesse momento no qual um apagão generalizado assola o país, principalmente ético e cultural, mas com fundamento monetarista, não seria de bom alvitre partirmos logo para o futuro, pelo menos ao tempo que precedeu o Iluminismo, sob pena de ficarmos por demais distantes até desse século XVII?
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Notas
1. Refiro-me ao trágico incêndio de 1666.
2- Nome dado à residência de Shaftesbury.
3- “Pai da teoria ondulatória da luz.” (Ben-dov: 90) Como Newton era o superstar, a hipótese de Huygens e a civilização tiveram que esperar nova oportunidade, coisa de dois séculos e quarto. No raiar do vigésimo, a espetacular reabilitação levada a efeito por Max Planck e seus companheiros, entre os quais, Albert Einstein, Max Born e Niels Bohr, fizeram o mundo, finalmente, cair na real.
4- Platão secundou Dionísio I, o Tirano de Siracusa, cujo parente Díon o trouxe à corte por “um amor delirante”. Díon acabou reinando, mas foi assassinado.
5- Na abordagem científico-filosófica do “mais sábio espírito”, não cabia o ordenamento consagrado pelo conterrâneo e contemporâneo Newton, embora este detivesse sua admiração. Desconfiava seu íntimo no entanto, de que boa parte da matemática não passava de um disfarce. Era preferível trilhar uma incerta verdade do que a certeza do equívoco. E assim falou John Locke (Ensaios sobre a lei da natureza, cit. Bobbio, 1997: 138):
a) Enquanto as idéias matemáticas podem ser expressas por meio de sinais sensíveis, imediatamente claros aos nossos sentidos, as idéias morais só podem ser expressas por meio de palavras, que são signos menos estáveis e exigem interpretação;
b) As idéias morais são mais complexas do que as matemáticas, daí a maior incerteza dos nomes com que são designadas e a dificuldade em aceitá-las todas de uma vez.
Pois o principal matemático da civilização, o Professor Doutor Herr Albert Einstein (cit.Monteiro: 51) lhe respalda, como sempre. Preconceitos, pressupostos marcadamente deterministas, absolutistas e calculistas são tão impróprios quanto a utopia, a ilusão, a impossibilidade: “O princípio criador reside na matemática; sua certeza é absoluta, enquanto se trata de matemática abstrata, mas diminui na razão direta de sua concretização.”

Um comentário:

  1. Eu estou lendo o livro de G. Himmelfarb, "Roads to Modernity", e através dele me interessei pela obra de Shaftesbury.

    Mas isso tudo só para descobrir que não há quase nada sobre ele aqui no Brasil.

    Gostei de seu blog. Abraços

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