Mais de dois mil anos já se passaram desde o dia em que Platão ocupava o centro do universo espiritual da Grécia e em que todos os olhares convergiam para a sua Academia, e ainda hoje se continua a definir o caráter da filosofia, seja ela qual for, pela sua relação com aquele filósofo. JAEGER, Werner. Paidéia. A formação do homem grego: 581
Em algum ponto perdido deste universo cujo clarão se estende a inúmeros sistemas solares, houve uma vez um astro sobre o qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o instante da maior mentira e da suprema arrogância da história universal. NIETZSCHE, F.W., it. MATOS, O. A polifonia da razão, 1997: 134
FAÇAMOS uma escala no século XIX. A vela permanece rainha da noite, mas os mortais se acham muito iluminados. A estrutura obedece aos parcos recursos disponíveis; e o molde social ainda se restringe a exército e camponeses, um sobrevivendo do outro. O desenvolvimento da ciência e da técnica em diminuto Espaço-Tempo, entretanto, delineia o novo horizonte: carvão, vapor, máquinas, própria eletricidade, novas ferramentas e eficazes técnicas vem para introduzir impressionante alteração nos hábitos e costumes de toda aquela gente. Chega o futuro; e com ele, as mudanças. Trabalho, consumo, divertimentos, relações pessoais e interesses gerais, cidades, campos, águas, animais, até o ar, plantas, nada mais fica imune..
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Nos trilhos
Tomemos a pista mais cedo, antes da invasão ao Novo Mundo. Os dados científicos e filosóficos se resumem nas basilares hipóteses formuladas pelos arcaicos gregos, e consubstanciados por ensinamentos bíblicos. Os religiosos, tidos os mais aptos e conscientes aglutinadores sociais, orientam povos e estados. A ameaça do diabo põe o povo nos trilhos. Os trabalhos do egípcio CLÁUDIO PTOLOMEU (90-168 D.C.), de SANTO TOMÁS DE AQUINO (1250) e as projeções da Divina Comédia, de DURANTE ALDIGHIERI DE FERRARA (verdadeiro nome de DANTE ALIGUIERI) satisfazem as curiosidades e ordenam aquela gente. O sistema ptolomaico, exposto no Almagesto, vara os séculos, incólume. A Terra é massa inerte e imóvel, localizada no centro do Universo. Tudo lhe gira ao redor:
Ptolomeu partiu do pressuposto de que a Terra era o corpo central e tratou as órbitas dos planetas como ciclos e epiciclos superpostos. Isso lhe permitiu prever eclipses do Sol e da Lua com muita precisão; tanta precisão que, durante 1500 anos, sua doutrina foi considerada a base segura da astronomia.No campo humanista, STO. TOMAS equalizara um sistema de natureza no molde aristotélico somado à ética das proposições bíblicas. Razão e fé possibilitavam o conhecimento necessário, conveniente a simples compreensão, sem o propósito de intervir no curso entendido natural* da vida política e econômica. A base teórico-espiritual Tomista resistia firme, convivendo ao lado de místicos, fadas e bruxas, mágicos ou magos, gurus, druidas, videntes, feiticeiras, curandeiros, alquimistas (Physika é o nome do primeiro trabalho nominado da alquimia. Fê-lo BOLOS DE MENDES , em 250 AC, produto das sugestões de DEMÓCRITO (500 AC), pai da teoria atômica), esotéricos, rosacruzes, os três últimos ávidos ao Graal, o paraíso atingido na Pedra Filosofal:
HEISENBERG, Werner, A parte e o todo: 43
“A partir do século XII, a maioria dos países europeus adotou a alquimia como um estudo por seu próprio direito.” (GILCHRIST, C.: 13 )
Os países eram assim regulados, por essas espécies de direito consuetudinário**, quase que um sistema ético competente para promover e manter a concórdia:
“A Pax Benedictina da Idade Média manteve o mundo unido como um Lar Terrestre, pelo menos da maneira como era então entendida.” (STEINDL-RAST, DAVID, em CAPRA, F. & STEINDL-RAST, D., com MATUS, THOMAS, Pertencendo ao universo – Explorações da fronteiras da ciência e da espiritualidade: 73)
O chamado grande anseio do legislador era atingido sem a interveniência desse arauto:
A superioridade do jusnaturalismo medieval sobre o moderno consiste em que ele nunca teve a pretensão de elaborar um sistema completo de prescrições, deduzidas, more geométrico, de uma natureza humana abstrata e definida de forma permanente. Se é verdade que a função constante do direito natural sempre foi impor limites ao poder do Estado, é também verdade que a concepção medieval preenchia essa função atribuindo ao soberano o dever de não transgredir as leis naturais.Se houvesse a transgressão, se a lei real tentasse sobrepujar o direito natural, configurava-se “não uma lei, mas de uma corrupção da lei.” (PERELMAN, C: : 387)
BOBBIO. NORBERTO, Locke e o Direito Natural: 46
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Útil & agradável
Pelo fim do século XIV, contudo, alguém já se apresentava para ensaiar a junção do útil com o agradável; e o padre JOÃO DUNS SCOTO convencia: os aspectos emocionais e espirituais alcançados pela religião deveriam servir à praticidade terrena, à matéria. A santa corporação assumia o controle de tudo.
No século posterior, o conhecimento e a informação, também o embuste e a mistificação se proliferaram como nunca, graças às mãos de GUTEMBERG. Cêrca de mil tipografias em mais de 250 localidades distintas (Viagens de Descobrimento, Time-Life: 113) se encarregaram de arrolar as novas razões:
“De todas as revoluções tecnológicas do milênio, a de maior alcance ocorreu um pouco antes da metade dessa era. Em 1455 Gutemberg escreve a Bíblia.” ( Revista Veja, ano 31/ número 51, Especial do Milênio.)
Na virada ao XVI, duzentos e quatorze livros de matemática saíram publicados (RONAN, COLIN, História Ilustrada da Ciência, Vol. III - Da Renascença a Revolução Científica: 61)
Os TOFFLER (Criando Uma Nova Civilização - A Política da Terceira Onda: 41) mostram o pitoresco:
“Um conselho sem dúvida bem-intencionado, atribuído a Santo Agostinho, advertia os cristãos a manter distância das pessoas que sabiam somar ou subtrair. Era óbvio que haviam firmado um 'pacto com o diabo'.”
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As descobertas
Várias descobertas, de inúmeros matizes, assaltavam simultaneamente as concepções sobre a própria Terra, sobre Deus, sobre o Universo. O homem e a sociedade teriam que sofrer semelhantes revoluções. O “pacto” agora vingava por todo o lado, a substituir os velhos conselhos tomistas, espirituais e bíblicos. O nascente mudava de quadrante. A realidade vinha oferecida pela ciência, meio materialmente calculável, por isso mais certo, acessível, por tudo, real. O Sol não girava sobre a Terra; e a julgar por tanta barbaridade, nem Deus estaria com ela preocupado. A Igreja e seus estandartes, em que pese o esforço de GUTEMBERG perdiam seu principal apelo. E perdendo o status central, fomos relegados a mero coadjuvante universal, a um dos tantos planetas.*** Para o lugar da filosofia, da ética contemplativa e do direito natural, introduziu-se a nova e sedutora metafísica, a custo por demais elevado:
“A natureza toda se transformou em um palco de impulsos e atrações, de dentes e alavancas, de movimentos de partes ou de elementos aos quais eram diretamente aplicadas as fórmulas de movimentos produzidos por bem conhecidas máquinas.” (DEWEY, JOHN: 87)
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QUANDO, então, COPÉRNICO, KEPLER e GALILEU demoliam a presunção geocêntrica, o cientismo turbinado deslocava a filosofia, a poesia, os sentimentos. De sujeito, o ser humano virou objeto. E o homem logo se fez "lobo do homem", especialmente ao obter a chave do galinheiro, isto é, do cofre:
Quanto mais forte a vontade de poder, menor o apreço à liberdade. A negação total do valor da liberdade, a maximinização do domínio - eis ai a idéia de autocracia e o princípio do absolutismo político, que se caracterizam pelo fato de todo o poder do Estado estar concentrado em um único indivíduo, o governante.
KELSEN: H. A Democracia: 181Tudo depende, portanto, de se fazer com que os súditos acreditem que o governo é bom e justo, e de os cidadãos sentirem-se felizes em obedecer às suas ordens - daí todo conjunto de medidas draconianas, aniquiladoras de toda liberdade de pensamento, sugeridas por Platão tanto na República quanto nas Leis, a fim de produzir e conservar nos súditos essa crença.A matemática servia como cimento, segura vedação contra qualquer tentativa de acolher, “com distorções de palavras”, proposições de variadas e incompatíveis procedências, adversárias dos absurdos regimes. O longo eclipse das ciências humanas se iniciou, justamente, na singela premissa:
Idem: 501
A tradição filosófica do Ocidente, em todo caso desde o século XVII, foi profundamente influenciada pelo desenvolvimento da física matemática e das ciências naturais fundamentadas na experiência, na medição, na pesagem e no cálculo. Tudo quanto não era redutível a grandezas quantificáveis foi, por isso mesmo, considerado vago e confuso, alheio ao conhecimento claro e distinto.A “genialidade” maquiavélica vem desse empírico e obsoleto paradigma anexado, conexão de racionalidade mecanicista flagrada por Gusdorf. A própria “razão” provém do cálculo. Seu designativo vem de ratio, latim, significando ratear, contar, dividir, multiplicar:
PERELMAN, CHAÏM, Ética e Direito: 672
Para cumprir com sua responsabilidade universal, o príncipe era obrigado a procurar a medida de seus atos nos efeitos previsíveis que suas ações trouxessem para a comunidade. Assim, a obrigatoriedade de agir impunha também a obrigatoriedade de ser o mais previdente possível. O cálculo racional de todas as possíveis consequências tornou-se o primeiro mandamento da política.A má tese, ou a má temática, a "quantofrenia", conforme Sorokin, ou a "aritmomania", como diz GEORGESCU-ROEGENS, coroou o homo faber tal homo mathematicus. Pela hábil dialética, aquela que faz da sombra realidade, a simples projeção numérica trouxe a perfeição à vista, e o imaginário concretizável. Ela garantia coerência, a certeza, e por ela todos se quedaram pautados.
KOSELLECK, REINHART: 24
Os matemáticos e astrônomos jesuítas do Collegio Romano eram reconhecidos entre as mais altas autoridades científicas. Essa “verdadeira ciência”, lambuzada de preconceitos, se constituia em guia e fim, razão e justificativa. Tudo passou a ser justificado pelos números, e isso já recomendara o grego:
"A matemática pura, mais do que qualquer outra disciplina, tornou-se aquele discurso vivo que Platão considerou a única forma de conhecimento." (FEYRABEND, 1991: 135)
GALILEU tomou a receita para ser o “pai da física matemática.” Por sua conclusão digo, sem querer ofendê-lo, mas completá-lo: ele também foi a “mãe da pretensão científica”.
Todos os cálculos provam-se miseravelmente errados:
O racionalismo priva de energia tudo aquilo que os homens mais amam: o sonho, a fantasia, o vago, a fé, a afirmação gratuita. Acrescentemos que isso é essencialmente inumano: o racionalista persegue seu raciocínio, não se importando em saber se ofende os interesses da família, da amizade, do amor, do Estado, da sociedade, da humanidade. Na realidade, o racionalista é um monstro. A humanidade se afirma nas suas religiões mais vitais atirando-lhes na cara o seu ódio.__________
BENDA, JULIEN, cit. BOBBIO, NORBERTO, Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea: 56.
Notas
*Natural: na definição de Hayek, tudo o que nasce espontaneamente e não é deliberadamente planejado por uma mente. Hayek, Friedrich August von, Os erros do socialismo - Arrogância Fatal, p. 191.
**Direito Consuetudinário: Uma espécie de contrato social, não expresso mas conhecido e respeitado por todos, por consenso e tradição.
*** Planeta quer dizer plano errante.
segunda-feira, 6 de abril de 2009
O socialismo de Locke - 1 - A má temática
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