sábado, 18 de abril de 2009

O Carma Ocidental - 4. A religião de Florença


A Pax Benedictina da Idade Média manteve o mundo unido como um Lar Terrestre, pelo menos da maneira como era então entendida. STEINDL-RAST, DAVID, em CAPRA, F. & STEINDL-RAST. , com MATUS, THOMAS, Pertencendo ao univ
Por milênio o ocidente viveu mais ou menos conforme os preceitos éticos de ARISTÓTELES. As aglomerações primavam por respectivas tradições,   direitos consuetudinários
A superioridade do jusnaturalismo medieval sobre o moderno consiste em que ele nunca teve a pretensão de elaborar um sistema completo de prescrições, deduzidas, more geométrico, de uma natureza humana abstrata e definida de forma permanente. Se é verdade que a função constante do direito natural sempre foi impor limites ao poder do Estado, é também verdade que a concepção medieval preenchia essa função atribuindo ao soberano o dever de não transgredir as leis naturais. BOBBIO, NORBERTO, Locke e o Direito Natural: 47
Se a lei real tentasse sobrepujar o direito natural, configurava-se “não uma lei, mas de uma corrupção da lei.” Pelo fim do XIV, contudo, já se apresentava alguém para ensaiar a junção do útil com o agradável. O padre JOÃO DUNS SCOTO lograva convencer: os aspectos emocionais e espirituais alcançados pela religião poderiam servir à praticidade terrena, à matéria. A santa corporação deveria assumir o controle de tudo. Os netos logo descobiram o mapa da mina:
No século XV, a república de Florença, que por duzentos anos gozou de um regime de liberdade individual sob o império da lei, tal como não se tinha conhecimento desde os velhos tempos de Atenas e Roma, caiu sob o domínio da família Medici, que adquiriu, por um apelo demagógico às massas, crescentes poderes despóticos. GUICCIARDINI, FRANCESCO, cit. MAKSOUD, HENRY: 75
Até o Renascimento, o Ocidente praticamente desconhecia Platão. Mas alguns manuscritos gregos, comprados em Constantinopla, mudaram esse cenário. Entre eles, levados a Florença em meados de 1430, estava nada mais nada menos do que a obra completa de Platão. ABRÃO, B.:136
A academia florentina comprometeu, de modo indelével, não só a cidadela, mas a própria civilização ocidental. A incidência avassaladora de seus vis preceitos cruzam os séculos, emulando as manifestações sociais, políticas, jurídicas, econômicas, religiosas e científicas, até o presente. A Renascença vinha para resgatar aquele abandonado costume:

A sociedade grega e romana se fundou baseada no princípio da subordinação do indivíduo à comunidade, do cidadão ao Estado. Como objetivo supremo, ela colocou a segurança da comunidade acima da segurança do indivíduo. Educados, desde a infância, nesse ideal desinteressado, os cidadãos consagravam suas vidas ao serviço público e estavam dispostos a sacrificá-las pelo bem comum; ou, se recuavam ante o supremo sacrifício, sempre o faziam conscientes da baixeza de seu ato, preferindo sua existência pessoal aos interesses do país.TOYNBEE, Arnold J.:196.
O secretário grego  legara tese, estilo de vida, propósitos e atitudes. 
Quer se suceda que governem com a lei ou sem a lei, sobre súditos voluntários ou forçados; quer que purguem o estado, para bem deste, matando ou deportando alguns de seus cidadãos... enquanto procederem de acordo com a ciência e a justiça e preservarem o estado, tornando-o melhor do que era, esta forma de governo pode ser descrita como a única que é certa. PLATÃO, Estadista, cit. POPPER, KARL M., Sociedade Democrática e Seus Inimigos: 184.
MARCILIO FICINO se encarregou de difundir os sábios preceitos: Era só copiar a lição:
A interpretação religiosa assenta nessa mesma biguidade: una est religio in rituum varietate, proclama Ficino, que, na Teologia Platônica – título revelador – desenvolve o acordo entre o platonismo e o cristianismo. ‘Eis a razão porque, quem quer que leia seriamente as obras de Platão, nelas encontrará, evidentemente, tudo, mas em particular essas duas verdades eternas: o culto reconhecido de um deus conhecido e a divindade das almas, onde reside toda a compreensão das coisas, toda a regra de vida e toda a felicidade. E tanto o mais que, sobre estes problemas, a maneira de pensar de Platão é tal que, de entre outros filósofos, foi a ele que Agostinho escolheu para modelo, como sendo o mais próximo da verdade cristã, afirmando que, com pequenas alterações, os platônicos seriam cristãos.’
Em 1462 o grato COSME DE MEDICI presenteou MARCINO com uma vila inteira. A Itália se quedou capturada:
O mundo barroco pode ser descrito também como um grande teatro, onde cada homem deve ocupar o seu lugar. O mais belo dos teatros é o centro do mundo católico romano: a praça de São Pedro em Roma. A literatura, as artes, a filosofia giram em torno de Deus, de suas exigências e da salvação. Os filósofos e os sábios da época, em sua compreensão do mundo, privilegiam o caráter de abstração e de esquematização. Por isso dão a máxima importância à física matemática. Assim o problema do método constitui o problema número 1 de todos os filósofos. Trata-se de descobrir um método universal de conhecimento. E o modelo é o conhecimento matemático (geométrico).
JAPIASSÙ, H., 1997: 81.
EINSTEIN (cit. GABERDIAN, H. GORDON: 314) pode explicar a simbiose entre o poder político e eclesiástico:
No homem primitivo era o medo, acima de quaisquer outras emoções, que o levava à religião. Esta religião do medo – medo da fome, de animais selvagens, de doenças e da morte – revelava-se através de atos e sacrifícios destinados a obter o amparo e o favor de uma divindade antropomórfica, de cujos desejos e ações dependiam aqueles temerosos sucessos. Como o entendimento do homem primitivo sobre as relações de causa e efeito era pobremente desenvolvido, essa religião do medo criou uma tradição transmitida, de geração a geração, por uma casta especial de sacerdotes que se postara como mediadora entre o povo e as entidades temidas. Essa hegemonia concentrou o poder nas mãos de uma classe privilegiada, que exercia as funções clericais como autoridade secular a fim de assegurar seu poderio. Nesse ínterim se verificava a associação dos governantes políticos à casta clerical, na defesa dos interesses comuns.
Cada ser humano tornou-se menos importante, mesmo a seus próprios olhos, ao ser confrontado com a vasta organização, além de seu controle e, muitas vezes, de sua compreensão. A corporação requer novos níveis de especialização do trabalho, coordenação central, economia de escala e concentração das tomadas de decisão precipitou uma corrida do individualismo para o coletivismo. As tendências renascentistas à glória, à honra, e ao empreendimento individual foram substituídas, com poucas exceções, pela administração coletiva do 'homem de organização' e pela busca do objetivo supremo da era moderna: a eficiência máxima. Enquanto a organização ia ficando cada vez maior, o indivíduo diminuía na mesma proporção:

Com o declínio dos limites à ação do Estado, cujos fundamentos éticos haviam sido encontrados pela tradição jusnaturalista na prioridade axiológica do indivíduo com respeito ao grupo, e na consequente afirmação dos direitos naturais do indivíduo, o Estado foi pouco a pouco se reapropriando do espaço conquistado pela sociedade civil burguesa até absorvê-lo completamente na experiência extrema do Estado total (total exatamente porque não deixa espaço algum fora de si.). BOBBIO, N., Estado, governo, sociedade; por uma teoria geral da política: 25................
Girolamo Savonarola (1452-1498), sacerdote italiano, implantou uma teocracia ditatorial em Florença, modificou a constituição e reformou os costumes, exercendo uma verdadeira tirania sobre o povo e criticando abertamente a lassidão e corrupção do clero e do papado; excomungado, foi preso, condenado à morte e queimado em praça pública. NIETZSCHE, F., Da utilidade e do Inconveniente da História para a vida, nota do tradutor: 93
Exatamente em 1498, um franzino NICOLÓ foi visto secundando SODORINI, o novo poderoso. O crime continuaria abençoado. MAQUIAVEL começou servindo quem lhe enfeitiçara: o Príncipe CÉSAR BÓRGIA, Il Valentino. Três meses testemunhando as aberrações do aloprado foram suficientes para igualmente apresentar suas "razões", não por acaso as mesmas deste "papa". Discurso Sobre a Preparação Militar de Florentina (1506) foi conseqüência da interatividade com o debilóide. O Secretário presenciara um festival de atrocidades naquela corte, e enfatizou a dependência do estado às armas e "à justiça". Sodorini “pagou caro” pelo  mal que não vislumbrou. No lustro, os MEDICI que detinham o mapa da mina bizantina assaltaram Florença. O preso MAQUIAVEL passou torturado com os melhores instrumentos da época, alguns dos quais certamente ajudara a implantar. Atirado na masmorra, jurou lealdade ao novo senhor, até ser solto para ir à velha casa escrever suas agruras. Livre para o mundo, porém longe do Castelo, o Exterminador montou seu cavalo-de-batalha, Il Príncipe, a obra-prima da hipocrisia. Teve o astuto chanceler quatro anos para rememorar a visita que fizera a César Bórgia. No entremeio ganhou tempo ao devaneio.: O opúsculo Mandrágora. satiriza os costumes sociais.
Em 1513, Frá Francesco de Meleto (cit. GRUZINSKI, SERGE: 45) se encarregou do alarme:
Por todo lado haverá sangue. Haverá sangue nas ruas, sangue nos rios, as pessoas navegarão em ondas de sangue, lagos de sangue, rios de sangue. Dois milhões de demônios serão largados do céu porque mais mal foi cometido nestes últimos dezoito anos do que durante os cinco mil que os precederam.
Nem era assim, tanta novidade:“O assassínio, a pilhagem, as correrias dos mercenários, a descida dos oltramonti*, a espionagem e o conluio, as conspirações e as traições formavam-se em elementos do quadro cotidiano da Itália no Cinquento”. ( MAQUIAVEL, NICOLAU, O Príncipe, introdução)
Ao poderoso Lorenzo, em 1516, a receita não poderia ser outra. MAQUIAVEL não tinha dúvidas sobre o que aconselhar. Mais do que estratégia, que poderia ou não ser adotada, ele entendia que suas palavras poderiam bem demonstrar a afeição e lealdade ao novo soberano. Tinha que sensibilizar.De modo algum lhe cabia o calabouço; e estava saturado de São Casciano, a baia da periferia. Suas preocupações revelam seu egoísmo:“Durante quatro longas horas, não sinto aborrecimento algum, esqueço todas as misérias, não mais receio a pobreza, não mais me atemoriza a morte, transporto-me inteiramente a eles.” (CHEVALLIER, JEAN-JACQUES, As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias: 26)
Os trabalhos visavam outra finalidade, a principal: para evitar o aborrecimento, a miséria, a pobreza e a morte, nada mais seguro do que o castelo. Ninguém se batera tanto pela Itália desde os césares. Um subtítulo anuncia a pretensão: Exortação para Tomar a Itália e Libertá-la dos Bárbaros. (MAQUIAVEL, NICOLAU, O Príncipe, cap. XXVIA. KOYRÈ ( p. 11) sustenta:
O imoralismo de Maquiavel é simplesmente lógica. Do ponto de vista em que ele se colocou, a religião e a moral são apenas fatores sociais. São fatos que é necessário saber utilizar, com os quais é preciso contar. E só. Dentro do cálculo político, cumpre levar em conta todos os fatores políticos: que peso pode ter um juízo de valor sobre a soma? De nenhum modo a modificar o resultado.
Qualquer coincidência com a atualidade, evidentemente, não é por acaso:
O homem moderno, no entanto, especialmente nas democracias, considera-a, a política, uma atividade suspeita. Pode-se dizer que desde os tempos de Maquiavel, com sua máxima de que os meios justificam os fins, e do Cardeal Mazarino, que acreditava ser a política um jogo de torpezas, ela passou a ser mal vista, pelo menos mais do que em épocas anteriores.SCHILLING, VOLTAIRE, Apresentação.

A Igreja, que hoje protesta, e com razão, contra a opressão que sofre nas mãos do Estado totalitário, faria bem em lembrar-se de quem primeiro deu ao Estado o mau exemplo da intolerância religiosa ao usar o braço secular para defender, pela força, o que só pode brotar de um ato livre de vontade. A Igreja deve sempre lembrar-se, com vergonha, de que foi o primeiro mestre do Estado totalitário em quase todos os seus aspectos. BRUNNER, EMIL, Gerechtigkeit:Eine Lehre von den Grundgesetzen der Gesellsachaftsordnung (Zurique: Zwingli Verlag, 1943.); cit. KELSEN, H., A Democracia: 210.
Dessartes, o primeiro dos cinco séculos de devastações cientificas, ecológicas, políticas, sociais, espirituais e materiais, então, veio ao mundo com o atraente e sugestivo nome de Renascimento.
A partir de então, o mundo passou a conhecer a corrupção e a matança a granel.
Contemporaneamente o mito vai se identificando com a ideologia política: é que o processo mitológico sempre coloca suas crenças a serviço de uma ideologia. Barthes, coincidindo com este entendimento, afirma que através do mito consegue-se transformar a história em ideologia. WARAT, Luiz Alberto, Mitos e Teorias na Interpretação da Lei: 128
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