sexta-feira, 24 de abril de 2009

O carma ocidental - 11. O peso de Descartes



Se vamos continuar a nos apoiar na ciência para criar e gerenciar organizações, para fazer pesquisa e formular hipóteses sobre desenho organizacional, planejamento, economia (finanças), a natureza humana, e mudanças de processos, então deveríamos pelo menos nos apoiar na ciência de hoje. Deveríamos parar de procurar modelos na ciência do século XVII e começar a explorar o que aprendemos com a ciência do século XX. WHETLEY, M., Leadership and the new science.
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A civilização ocidental vem se enganando há muitos séculos.

A culpa inicial cabe a Descartes. Ele foi o primeiro a negar a sabedoria inconsciente, persuadindo-nos de que só o que era demonstrável, era verdadeiro. Rousseau substituiu-o, imaginando que não havia leis fora das desejadas pelo homem. Finalmente veio Augusto Comte, que instalou de vez a universidade no positivismo, fez as ciências humanas oscilarem para a sociologia e eliminou todo o ensinamento sério da economia SORMAN, GUY, A Solução Liberal: 54
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A cisão cartesiana penetrou fundo na mente humana nos três séculos após Descartes e levará muito tempo para ser substituída por uma atitude realmente diferente diante do problema da realidade. WERNER HEISENBERG
NO TEMPO DE RENÉ DESCARTES (1596- 1650) a presunção geocêntrica já estava sepultada, mas a vela permanecia rainha da noite, e a fé continuava “iluminando” os pobres mortais. Quando a vela caia, e incendiava tudo, nada era culpa de Deus. Ele não tapeia suas criaturas. Isso era coisa daquele “mau gênio”, “manhoso e enganador”, mas investido no papel, diabo caricaturado na Meditação Primeira, meditação deveras primária.
"A região do mundo colhia, pelo menos parcialmente, a herança grega, e a combinara com a visão da natureza e a vocação do homem trazida pela tradição judaico-cristã." (LADRIÈRE, Les enjeux de la racionalitè, 1977)
O nosso Descartes, nascido para descobrir os erros da antiguidade, mas para os substituir pelos seus, levado por esse espírito sistemático que cega os maiores, imaginou ter demonstrado que a alma era o mesmo que o pensamento, como a matéria que, segundo. ele, é a mesma coisa que o espaço; afirmou que pensamos sempre e que a alma chega ao corpo ciente das noções metafísicas, conhece Deus, o espaço, o infinito, tendo todas as ideias abstractas, enfim repleta de conhecimentos que, infelizmente, esquece ao sair do ventre materno.
VOLTAIRE,
«13.ª carta», Cartas Filosóficas,
Deus havia oferecido algumas idéias claras e precisas para encontrarmos a verdade, "desde que nos ativéssemos a elas, e não caíssemos no pecado": “A terra, ou seja, a matéria, é contraposta à verdadeira natureza da alma, quer dizer, ao seu ‘ser boa’. A matéria representa o mal.” "O erro, o Mal entra pelo corpo para transformar o divino Bem da alma," e isso já bem ensinara PLATÃO (cit. KELSEN, 1998: 3). O “Escultor e Pai do Universo” havia colocado tudo aos nossos pés, de modo que “isentou a si próprio de qualquer culpa por futura ruindade.”
Outro exemplo de Ser Positivo é o 'Deus Organizador', em que a divindade (ou divindades) exerce o papel de controlador da oposição primordial entre Ordem e Caos. O Caos representa o Mal, a desordem, e é simbolizado em vários mitos por monstros como serpentes ou dragões, ou simplesmente deuses maléficos que lutam contra outros deuses em batalhas cósmicas relatadas muitas vezes em textos épicos, como no caso do Eubuma elis dos babilônios.
GLEISER, MARCELO, A Dança do Universo Dos Mitos de Criação ao Big-Bang: 31
O racionalismo reconhecia o intento e a capacidade do Grande Arquiteto. Na onda platônica, aproveitando a maré, veio DESCARTES, na carta à Mersenne (15/04/1630):
Mas eu não deixarei de tocar, em minha física, em várias questões metafísicas e particularmente nesta: que as verdades matemáticas, as quais chamais de eternas, foram estabelecidas por Deus e dele dependem inteiramente, assim como todo o resto das criaturas. Não receai, peço-vos, garantir e publicar em toda a parte que Deus é quem estabelece estas leis na natureza, assim como um rei estabelece leis em seu reino.
Tornado em Regras para Direção do Espírito, lá se foi o trem à direção riscada:
Descartes nos diz com toda a clareza, na segunda parte do Discurso do Método, que uma legislação que é obra de um só vale mais do que a que foi elaborada por vários através das transformações da história, pois é mais fácil a um só seguir um plano racional e apartar-se das contingências que constituem os hábitos e os costumes dos habitantes do país.
PERELMAN: 36
O peregrino, ainda que raramente implicado, é, de fato, padrinho do absolutismo. Deu asas a BODIN, e o tal Direito Divino, que desembocou nas loucuras dos luízes, e pelo jeito incluído até o nosso Luizinho. Seu contemporâneo ARMAND JEAN DU PLESSIS, Cardeal de Richelieu, (1585 - 1642) primeiro-ministro de Luís XIII de 1628 a 1642, foi o mais notável arquiteto do absolutismo na França e da liderança francesa na Europa.
Não é um simples acaso que a idéia cartesiana de Deus como legislador do universo se desenvolva somente quarenta anos depois da teoria da soberania de Jean Bodin.” (ZILSEI, E., The sociological roote of science, The American Journal of Sociology)
A má tese, ou a má temática ,a "quantofrenia", conforme SOROKIN, ou a "aritmomania", como aduz GEORGESCU-ROEGENS, coroou o homo faber tal homo mathematicus. O universo-máquina passou a ser um vasto sistema matemático de matéria em movimento, um ‘universo material (onde) tudo funcionaria mecanicamente, segundo as leis matemáticas.’
A concepção do universo que por sua influência alcançou aceitação geral era um mecanismo dirigido por princípios matemáticos, sem cor, perfume, sabor e som. A ciência havia estendido os limites do universo, mas convertido em máquina sem vida, que marchava de acordo com forças capazes de ser formuladas matematicamente, não a expressão poética.
GUSDORF, Georges: 164
SARTRE (1978: 114) bem identificou o liame:
É assim que o cartesianismo, no século, XVIII, aparece sob dois aspectos indissolúveis e complementares: de um lado, como Idéia da Razão, como método analítico, inspira Holbach, Helvetius, Diderot, o próprio Rousseau; é ele que encontramos na fonte dos panfletos anti-religiosos assim como na origem do materialismo mecanicista.
Por tudo MIGUEL REALE (1998: 161) rotula o genebrino: “o Descartes da política.” O rastro do desatino está bem identificado, mas não extinto:
Afinal, o rígido determinismo da explicação cartesiana do mundo material,
tanto físico como biológico, contribuiu muito para promover o materialismo dos séculos XVIII e XIX, em especial quando associado à física de Newton. RUSSELL, BERTRAND
2001: 283

Newton é um mero materialista. Em seu sistema o espírito é sempre passivo, espectador ocioso de um mundo externo... há motivos para suspeitar que qualquer sistema que se baseie na passividade de espírito deve ser falso como sistema. SHAFTESBURY, carta a THOMAS POOLE, cit. BRETT, R. L., La Filosofia de Shaftesbury y la estetica literaria del Siglo XVIII: 109
Foi igualmente pela recusa do dualismo cartesiano, e pela defesa da observação e da análise contra o espírito sistemático, que Locke se impôs como 'mestre da sabedoria' aos filósofos franceses do século XVIII. CHÂTELET: 228

Locke e Shaftesbury consideravam o despotismo como um mal francês e, quando escreveu o documento, em 1679, Locke acabava de voltar da França, após estudar o mal francês enquanto sistema político. A filosofia de Shaftesbury foi planejada para combater a interpretação mecanicista da realidade, mas sobrepujou a filosofia daqueles em seus esforços para salvar as artes dos efeitos das idéias mecanicistas: aspirou fundar bases não só para a verdade e a bondade, como também para a beleza. BRETT: 109
Dessartes os ingleses lograram suplantar aquela tosca arquitetura, e saltaram na frente do futuro. O Reino Unido tomou a dianteira na Revolução Industrial, e conserva sua pujança. E a filha, modernizada, em que pese claudicante, ainda exerce a hegemonia. Qual o segredo da família?
A mãe desistiu da subserviência às autoridades eclesiásticas. Sem respaldo, o Rei ficou nú, e seu poder foi repartido. 1689: o nascimento do Direito
Infelizmente para nosotros, macaquitos brasileños, nos sobrou a douta cultura francesa, radiante na Proclamação da República, e nas instalações das academias.
Ainda que flagrantemente danoso, o carma atinge proporções inimagináveis:
O dualismo cartesiano, ao criar a bifurcação mente-matéria, observador-observado, sujeiro-objeto, moldou o pensamento ocidental, poucos filósofos discordando dele, cujos mais notórios foram Spinoza e Schopenhauer. No século XX essa discordância se acentuou.
GOTTSCHALL: 189
O mesmo se sucede com as questões relativas à mente, ao cérebro e ao corpo, em relação as quais o erro de Descartes continua a prevalecer. Para muitos, as idéias de Descartes são consideradas evidentes por si mesmas, sem necessitar de nenhuma reavaliação.
DAMÁSIO, ANTÔNIO : 113.

A Universidade brasileira nasce no começo deste século sob estas fortíssimas influências: descompromisso elitista das 'Grandes Écoles', o reducionismo profissionalizante pragmático dos 'Land Colleges Americanos', e a departamentalização do saber de Humbolt e Descartes. Nesse ambiente cultural é formada em 1934 a primeira Universidade Brasileira, a Universidade de São Paulo, e, logo em seguida, em 1935, a Universidade do Distrito Federal.
PINOTTI, JOSÉ ARISTEMO, Professor titular e Diretor da Divisão de Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo/Hospital das Clínicas, Ex-Reitor da Unicamp. - A Universidade : do Arcaísmo à Transcendência; Folha de São Paulo, 8/2/2003: 5
Com o perdão do conceituado professor, esse ambiente nada tinha de cultural, mas de ditatorial. Desde 1930 Getúlio esmagava o povo, especialmente os paulistas, dizimados na Revolução Constitucionalista de 1932. E em 1937, o caudilho completou o golpe, editando a famosa Polaca, uma confecçaõ genuinamente platônico-cartesiana.

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