quarta-feira, 22 de abril de 2009

O Carma Ocidental - 9. A incidência de Galileu


No começo do século XVII, os matemáticos e astrônomos
jesuítas do Collegio Romano eram reconhecidos entre as
mais altas autoridades científicas
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AUGUSTO FORTI


O mundo barroco pode ser descrito também como um grande teatro, onde cada homem deve ocupar o seu lugar. O mais belo dos teatros é o centro do mundo católico romano: a praça de São Pedro em Roma. A literatura, as artes, a filosofia giram em torno de Deus, de suas exigências e da salvação. Os filósofos e os sábios da época, em sua compreensão do mundo, privilegiam o caráter de abstração e de esquematização. Por isso dão a máxima importância à física matemática. Assim o problema do método constitui o problema número 1 de todos os filósofos. Trata-se de descobrir um método universal de conhecimento. E o modelo é o conhecimento matemático (geométrico).
JAPIASSÚ, H., 1997: 81
O infeliz PLATÃO expulsara os poetas de sua República. Letras serviam à fantasia, enquanto “o livro da natureza é dominado pelo rigor matemático, donde seu objetivo precípuo é aquele de aprender a verdade.”
Quiçá por causa disso, por longo período ninguém lhe tomou conhecimento, obscurecido pelo humanismo aristotélico, que lhe corrigiu. Coube a MARCILIO FICINO reimportar a sumidade pelo portão da Turquia:
Até o Renascimento, o Ocidente praticamente desconhecia Platão. Mas alguns manuscritos gregos, comprados em Constantinopla, mudaram esse cenário. Entre eles, levados a Florença em meados de 1430, estava nada mais nada menos do que a obra completa de Platão.
ABRÃO, B.:136
A interpretação religiosa assenta nessa mesma biguidade: una est religio in rituum varietate, proclama Ficino, que, na Teologia Platônica – título revelador – desenvolve o acordo entre o platonismo e o cristianismo. ‘Eis a razão porque, quem quer que leia seriamente as obras de Platão, nelas encontrará, evidentemente, tudo, mas em particular essas duas verdades eternas: o culto reconhecido de um deus conhecido e a divindade das almas, onde reside toda a compreensão das coisas, toda a regra de vida e toda a felicidade. E tanto o mais que, sobre estes problemas, a maneira de pensar de Platão é tal que, de entre outros filósofos, foi a ele que Agostinho escolheu para modelo, como sendo o mais próximo da verdade cristã, afirmando que, com pequenas alterações, os platônicos seriam cristãos.’
A Academia Platônica, fundada por Marsilio Ficino, com consentimento de Cosme de Medici, elabora com efeito uma doutrina destinada a uma larga difusão, por longo tempo benéfica à manutenção da hegemonia cultural florentina, mas da qual os Medici são os primeiros a tirar vantagem concretamente.
LARIVAILLE, P.: 161.
Em 1462 o grato COSME DE MEDICI presenteou MARCINO com uma vila inteira.
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MAQUIAVEL e COPÉRNICO se ensaiaram, mas foi a notícia de GALILEU que acordou a humanidade. Se não estávamos no centro do Universo, haveria uma forte razão, uma lógica. Bastaria entendê-la. De nada serviam os estéreis preceitos aristotélicos. Dessarte GALILEU faturava a “revanche", ao gáudio, e não condenação, como dizem, da grei eclesiástica:
Para Platão, a ordem e a beleza que vemos no Cosmo resulta de uma intervenção racional, intencional e benigna de um divino artesão, um "demiurgo" (gr. δημιουργός), que impôs uma ordem matemática a um caos preexistente e, assim, produziu um Universo divinamente organizado, a partir de um modelo eterno e imutável (Pl. Ti. 26a). A visão platônica da origem do Universo também teve enorme influência na filosofia, especialmente na neoplatônica, no ocultismo e na teologia desde o século -IV até nossos dias.
www.greciantiga.org
"Platão se harmonizava, perfeitamente, com a doutrina cristã, porque tanto nele quanto na Igreja, tudo procede da mesma fonte, a saber, do 'logos' divino."
A partir de Platão, a proclamada supremacia do Estado foi encontrada em suas visões nas quais 'moralidade não era separada da religião e nem a política da moral; e em religião, moralidade e política havia apenas um só legislador e uma única autoridade'.
DALBERG-ACTON, John Edward Emerich, Essays on Freedom and Power (Glencoe, Ill.: Free Press, 1948
O número (sinônimo de harmonia) era considerado (e ainda é!) como essência das coisas. A soma de pares e ímpares, noções opostas (limitado e ilimitado) expressariam as relações de todas as coisas. PITÁGORAS fundou a exitosa escola. Timbrada pitagórica, a linguagem varou todos os séculos, encontrando seu melhor abrigo no Renascimento.
Pitágoras apreciava a tal ponto a teologia órfica que dela fez modelo para plasmar a própria filosofia. Em decorrência disso, as sentenças de Pitágoras passam a ser chamadas sacras na medida em que são derivadas dos esquemas órficos.
MIRANDULLA, Pico della, A dignidade do homem: 73
O cosmos seria regido, e portanto entendido, apenas através de relações matemáticas. A coincidência é de fato impressionante. E assim encanta a civilização, especialmente a ocidental:
"Leia sobre Platão, Aristóteles e os matemáticos antigos e descobrirá como suas especulações e descobertas foram transformadas e ampliadas nos métodos e sistemas com que até hoje trabalhamos." (BARZUN, JACQUES, A História, cit. FADIMAN, CLIFTON, org.: 4)
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O vigário polonês COPÉRNICO (cit. CHÂTELET, F: 49) vendeu o primeiro bilhete:
E no meio repousa o Sol. Com efeito, quem poderia no templo esplêndido colocar essa luminária num melhor lugar do que aquele donde pode iluminar tudo ao mesmo tempo? Em verdade, não foi impropriamente que alguns lhe chamaram a pupila do mundo, outros o Espírito, outros ainda o seu reitor.
Tudo era suscetível de explicação, desde que combinado com a explicação mecânica. O velho mote platônico remetia o homem a descobrir a prova pela matemática:
A idéia é originalmente devida a Platão, que, sem dúvida influenciado pelas concepções pitagóricas, foi o primeiro a afirmar que o círculo, cujas partes são todas iguais entre si, é por essa razão a mais perfeita figura geométrica, e, portanto, como os corpos celestes são eles mesmos perfeitos, o único movimento que lhes é possível é o movimento circular uniforme. A tarefa dos astrônomos a partir de então foi construir um modelo matemático que explicasse os dados observacionais da astronomia, e no qual os planetas seriam dotados de movimentos circulares uniformes.
BEN-DOV: 19
O Verbo não teria mais nada a influenciar, ou a mistificar. Ou, por outra, conforme COPÉRNICO, e depois por KEPLER, o Verbo se mostrava, logicamente, pelo número.
"Deus geometriza! A geometria é o próprio Deus!"
KEPLER, JOHANNES, 1571-1630
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O lastro da "razão" é o cálculo. O designativo vem de ratio, latim, significando ratear, contar, dividir, multiplicar. Desse modo, presume-se: quem sabe contar é senhor de razão, mesmo que não tenha nenhuma.

Discorsi e dimonstrazioni matematiche intorno a due nuove scienze attenenti alla meccanica inaugurou, oficialmente, a era mecanicista. Selou-lhe rudimentar aparelho amplificador da visão, pirateado.
O sopro da morte atingiu a teoria aristotélico-ptolomática em 1609. Neste ano Galileu começou a observar o céu à noite, através de um telescópio, que acabara de ser inventado. Ao focalizar o planeta Júpiter, Galileu descobriu que se fazia acompanhar de vários pequenos satélites, ou luas, que giravam a sua volta. Isto implicava que nada precisava necessariamente girar em torno da terra, como Aristóteles e Ptolomeu haviam pensado.
HAWKING, STEPHEN W. : 20
A lógica científico-matemática vinha para o lugar de “lendas” filosóficas e religiosas:
Afirmo que temos no nosso século acontecimentos e observações novas e de tal alcance que não tenho dúvidas de que se Aristóteles vivesse em nossa época, mudaria de opinião.
GALILEI, GALILEU, Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo — ptolemaico & copernicano. Tradução, introdução e notas de Pablo Rubén Mariconda. São Paulo: Discurso Editorial/Fapesp, 2006: 131
O conhecimento anterior fora montada em cima de inconsistentes palavras. Agora, os números traziam mais segurança, tornavam as atividades concretas, mais lógicas e práticas; compõem os elos. A matemática é o cimento das ciências, é a garantia de sua coerência, é a defesa segura contra qualquer tentativa de acolher, “com distorções de palavras”, proposições de várias procedências, incompatíveis entre si.”
Sequer o Inferno, de DANTE  escapou do crivo. (Palestra na Academia Florentina, A Geografia do Inferno de Dante Tratada Matematicamente, 1588; cits. GEYMONET, L., Galileu Galilei: 10),
Tornou-se Galileu o “pai da física matemática”. (cit. idem: 319)
Poderíamos dizer, sem querer ofendê-lo, mas completá-lo, que sua idéia foi a “mãe da pretensão científica”.
Quanto ao homem, estava provado: não estando mais no centro do universo, poderia ser, quanto muito, uma inexpressiva peça de toda a engrenagem do reino solar.
A faculdade de conhecer o verdadeiro se resumia ao que os braços ou olhos podiam confirmar, mas o acesso e complemento à geometria euclidiana estava plenado. Este é o engano basilar de GALILEU (cit. CAPRA, F. O ponto de mutação: 50) e da produção científica empilhada nos séculos que lhe sucederam - a premissa pintada como conclusão de pensamento, a subversão numérica das letras:
A filosofia está escrita neste grande livro que permanece sempre aberto diante de nossos olhos; mas não podemos entendê-la se não aprendermos primeiro a linguagem e os caracteres em que ela foi escrita. Esta linguagem é a matemática e os caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas.
Os caracteres nasceram deformados pela carga genética:
“Não tenho dificuldades para admitir, identificando o platonismo com matematicismo, o caráter platônico da ciência galileana”. (GEYMONET, L. : 42)
ALEXANDRE KOYRÉ (cit. idem, ibidem) confirma:
“A grande idéia de Koyré, justamente, é que Galileu encarnava a herança do platonismo. Em outras palavras: Galileu acreditava que, graças à matemática, os físicos conseguiriam apreender a estrutura íntima da realidade”.
KOYRÉ identificou o desvio (Considerações Sobre Descartes: 81):
Ocorre que para Aristóteles a geometria era apenas uma ciência abstrata. Por isso, a geometria nunca poderia explicar o real. As suas leis não dominam o mundo físico. O estudo da geometria não precede o da física. Uma ciência do tipo aristotélico não se apoia numa metafísica. Conduz a ela, em vez de partir dela. Uma ciência tipo cartesiana, que postula o valor real do matematismo, que constrói uma física geométrica, não pode dispensar uma metafísica. E tem mesmo que começar por ela. Descartes sabia-o. E Platão, que fora o primeiro a esboçar uma ciência desse tipo, sabia-o igualmente.
O câmbio do paradigma ético de ARISTÓTELES pelo pragmatismo totalitarista de PLATÃO restringiu a ciência e subverteu a democracia:
Trata-se de uma revolução que, além de derrubar a ditadura de Aristóteles, arruína completamente, através da luneta astronômica, o dogma da incorruptibilidade dos corpos celestes. Fica ainda absolutamente rejeitado o axioma identificando o real objetivo à percepção sensível: as qualidades são relativas a nossos sentidos e a matéria é quantitativa.
JAPIASSÚ,
HILTON, A Revolução Científica Moderna: 58
Eis o grande dogma, até maior do que o Sagrado, pelo qual todos somos traídos:
Analisando aspectos da luta que os primeiros cientistas modernos travaram contra o misticismo,o ocultismo e o orientalismo, e como que refazendo o processo de Galileu, o autor procura renovar o significado e o valor daquela Revolução Científica que permanece nas raízes da civilização moderna.
ROSSI, Paolo, A ciência e a filosofia dos modernos: aspectos da revolução científica. - S.Paulo: UNESP, 1992
A ciência ocidental tornou-se matematizada. A linguagem matemática da ciência, que causa tanto desânimo ao leitor de outras áreas, implantou-se como resultado do conflito entre as visões de mundo eclesiástica e leiga e seu propósito era justamente causar o afastamento do público comum.
SCHWARTZ: 18
A sinistra esbanjava exuberância, seletiva à interpretação dos sábios, os reverenciados de Platão:
O radical da palavra grega ‘mathemática’ é mathein, que quer dizer captar, aprender, apanhar. A captação é mathéma (ou mathésis) de que deriva a nossa palavra matemática, designando não uma construção mental, mas uma captação de uma realidade já existente.
É completo sofisma, hábil inversão por dialética. Ouçamos Kant, um dos raros preferidos por Einstein, em Critique de la raison pure, na antecipaçao dos postulados quânticos de Heisenberg e Shöredinger:
"Nós é que introduzimos a ordem e a regularidade nos fenômenos a que chamamos Natureza, e poderíamos encontrá-los nela se eles não tivessem sido originariamente colocados aí por nós ou pela natureza de nosso espírito."
Einstein (L´evolution des idées en physique) completou a profilaxia:
"O cientista nunca dialoga com a natureza pura, mas com um certo estado de relação entre a natureza e a cultura, definível pelo período da história no qual ele vive, sua civilização, os recursos materiais dos quais dispõe."
“Em alguns aspectos importantes, embora de maneira alguma em todos, a Teoria Geral da Relatividade de Einstein está mais próxima da teoria de Aristóteles do que qualquer uma das duas está da de Newton.” (KUHN, T. S., Estrutura das Revoluções Científicas: 253)
O numerário subverteu a sociedade. A ética se tornou dialética; e a política, espoliação.
Nada disso pode mais tempo perdurar.
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