quarta-feira, 29 de abril de 2009

O carma ocidental - 16. A subversão da democracia

Legislo tendo em vista o que é melhor para todo o Estado; coloco justamente os interesses do indivíduo num nível inferior de valor.
PLATÃO, A República; cit. POPPER, K.: 123.
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Mais de dois mil anos já se passaram desde o dia em que Platão ocupava o centro do universo espiritual da Grécia e em que todos os olhares convergiam para a sua Academia, e ainda hoje se continua a definir o caráter da filosofia, seja ela qual for, pela sua relação com aquele filósofo.
JAEGER, Werner. Paidéia. A formação do homem grego
: 581

A INGLATERRA gerou ao mundo a luz de LOCKE:
O escrito de Descartes se difundiu amplamente no continente, em particular na França e nos Países Baixos, mas não teve o mesmo sucesso na Inglaterra. A filosofia experimental tal como ali se desenvolveu impedia uma aceitação fácil de qualquer sistema dedutivo, e o sistema de Descartes foi considerado tão gerador de dissensões, quanto o sistema extremamente materialista de Thomas Hobbes.
HENRY: 71
.Foi igualmente pela recusa do dualismo cartesiano, e pela defesa da observação e da análise contra o espírito sistemático, que Locke se impôs como 'mestre da sabedoria' aos filósofos franceses do século XVIII.
CHÂTELET: 228
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A FRANÇA preferiu cortá-la, com ROUSSEAU:
"Portanto, ninguém deve se tranquilizar pensando que os bárbaros ainda estão longe de nós, porque, se há povos que deixam arrancarem-lhes das mãos a luz, outros há que a apagam, eles próprios, sob seus pés." (TOCQUEVILLE, 2000: 54)
MIGUEL REALE (1998: 161) vê no genebrino “o Descartes da política.”
ROUSSEAU era mesmo coerente com o pensamento do pretensioso patrício:
"Este pensador peculiar - embora freqüentemente considerado irracionalista ou romântico - também se apoiou no pensamento cartesiano e dele dependeu fundamentalmente." (HAYEK, 1995: 74)
SARTRE (1978: 114) também identificou o liame:
É assim que o cartesianismo, no século, XVIII, aparece sob dois aspectos indissolúveis e complementares: de um lado, como Idéia da Razão, como método analítico, inspira Holbach, Helvetius, Diderot, o próprio Rousseau; é ele que encontramos na fonte dos panfletos anti-religiosos assim como na origem do materialismo mecanicista.
RUSSELL (2001: 283) compreendeu:
"Afinal, o rígido determinismo da explicação cartesiana do mundo material, tanto físico como biológico, contribuiu muito para promover o materialismo dos séculos XVIII e XIX, em especial quando associado à física de Newton."
Esta teoria imagina uma espécie de espectador imparcial que, por dispor de todas as informações, seria capaz de determinar, por um balanço de perdas e ganhos, qual a regra de maior utilidade - total ou média - para o maior número. É claro que o utilitarismo pode servir para justificar - em nome da justiça e por uma espécie de ardil do 'bem-estar geral' - qualquer sistema de opressão geral.
RAWLS, JOHN, cit. LACOSTE, JEAN, A filosofia no século XX:139.
Para o sabujo ENGELS (p. 19), “o materialismo transferiu-se da Inglaterra para a França onde se encontrou com uma segunda escola materialista de filósofos, que havia surgido do cartesianismo e com a qual se refundiu.”
Com o sarcasmo que lhe é peculiar, NIETZSCHE (Além do Bem e do Mal: 45) alertou:
Os niveladores... rapazes bonzinhos e desajeitados... mas que são cativos e ridiculamente superficiais, sobretudo em sua tendência básica de ver, nas formas da velha sociedade até agora existente, a causa de toda a miséria e falência humana... O que eles gostariam de perseguir com todas as suas foras é a universal felicidade do rebanho em pasto verde, com segurança, ausência de perigo, bem-estar e facilidade para todos; suas doutrinas e cantigas mais lembradas são 'igualdade de direitos' e 'compaixão pelos que sofrem' - e o sofrimento mesmo é visto por eles como algo que se deve abolir.
ROUSSEAU
oferece à mostra o tamanho da mordida que sofreu da mosca da ciência exata, da física, do número, quando dispõe sobre a fôrça necessária para mover as coisas e quando reduz a diversidade, homogeneidade e universalidade de cada ente, de cada pessoa, a simples objeto manipulável. Para HAYEK (1995: 74) “a substituição por Rousseau, Hegel e seus seguidores da palavra 'opinião' pelo termo 'vontade' foi provavelmente a inovação terminológica mais fatídica na história do pensamento político.
A democracia fala de um governo comandado pelo povo e sujeito às suas leis; na realidade, entretanto, os regimes democráticos são dominados por elites que planejam maneiras de moldar e dobrar a lei a seu favor.
PIPES, R.:251
MACKSOUD (p. 39) analisa o truque:
"Esta substituição teve fundamento no cartesianismo de Rousseau e foi o produto de um racionalismo construtivista que imaginava que todas as leis foram inventadas como expressões de vontade para um dado fim."
De fato assim são:
O que o Estado tira dos ricos, guarda para si e o que tira dos pobres, também. Seus beneficiários são poucos; uma oligarquia de empresários superprotegidos de qualquer concorrência, que deve sua fortuna a mercados cativos, a barreiras alfandegárias, a licenças outorgadas pelo burocrata a leis que o favorecem; uma oligarquia de políticos clientelistas para quem o Estado cumpre o mesmo papel que a teta da vaca para o bezerro; uma oligarquia sindical ligada a empresas estatais, geralmente monopolizadoras, que lhes concedem ruinosos e leoninos acordos coletivos; e, obviamente, burocratas parasitas crescidos à sombra desse corrupto Estado benfeitor.
MENDOZA, Plinio Apuleyo, MONTANER, Carlos Alberto, LLOSA, Alvaro Vargas: 120
Enfeitando o manto filosófico roussoniano fulgura o bordado da funesta república platônica de HOBBES. Se ROUSSEAU não a tingisse com as cores da soberania popular, poder-se-ia chamá-lo “plagiador”, até por repetir a cátedra de colocar o ser humano como carente de norma de ação mais elevada além de impulsos, apetites e más inclinações. Pobre semelhante.
A sociedade grega e romana se fundou baseada no princípio da subordinação do indivíduo à comunidade, do cidadão ao Estado. Como objetivo supremo, ela colocou a segurança da comunidade acima da segurança do indivíduo. Educados, desde a infância, nesse ideal desinteressado, os cidadãos consagravam suas vidas ao serviço público e estavam dispostos a sacrificá-las pelo bem comum; ou, se recuavam ante o supremo sacrifício, sempre o faziam conscientes da baixeza de seu ato, preferindo sua existência pessoal aos interesses do país.
TOYNBEE: 196
Desde o início assemelhado a MAQUIAVEL, e especialmente a THOMAS HOBBES, o franco-suíço veio com sua vida pautada pelo desastre. As patologias lhe foram equivalentes:
“Rousseau alude expressamente ao medo da morte que, como em Hobbes, domina o homem. À natureza, diz, compele o homem usar todos os meios à disposição para escapar da morte.” 1
Tal qual o pai do Leviathan, já no nascimento J.-J. convivera com a morte – também sua mãe era sacrificada. Adulto, o órfão só fracassou. Ao pregar sublimes reformas educacionais, abandonava os filhos num asilo de enjeitados.
Quando James Boswell visitou Rousseau que mais do que qualquer outro francês do seu tempo influenciou a opinião pública contra a propriedade, seu anfitrião lhe disse: ‘Senhor, eu não tenho a menor simpatia pelo mundo. Vivo aqui num mundo de fantasia, e não posso tolerar o mundo como ele é. A humanidade me repugna'.
Boswell on the Grand Tour: Germany and Switzerland, 1764, cit. PIPES, R.: 62
Ainda assim, o viandante se punha a querer tudo ordenar; e o que foi pior, muito pior, convecendo:
"Para Rousseau, como para outros edificadores da Cidade Ideal do Racionalismo desarvorado, o legislador é responsável por tudo. É um deus ex-machina. Algo que será como Napoleão, que pretendeu representar o novo César e o novo Augusto do cesarismo imperial francês." (PENNA, 1997: 366)
Obtivemos o produto correspondente:
O racionalismo priva de energia tudo aquilo que os homens mais amam: o sonho, a fantasia, o vago, a fé, a afirmação gratuita. Acrescentemos que isso é essencialmente inumano: o racionalista persegue seu raciocínio, não se importando em saber se ofende os interesses da família, da amizade, do amor, do Estado, da sociedade, da humanidade. Na realidade, o racionalista é um monstro. A humanidade se afirma nas suas religiões mais vitais atirando-lhes na cara o seu ódio.
BENDA, JULIEN, cit. BOBBIO, NORBERTO, Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea: 56.
Muitos espreitaram a chance do colossal mal-entendido:
A Constituição Francesa de 1791 proclamou uma série de direitos, ao passo ‘que nunca houve um período registrado nos anais da humanidade em que cada um desses direitos tivesse sido tão pouco assegurado - pode-se quase dizer completamente inexistente - como no ápice da Revolução Francesa.’
LEONI: 85
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Contemporaneamente o mito vai se identificando com a ideologia política: é que o processo mitológico sempre coloca suas crenças a serviço de uma ideologia. Barthes, coincidindo com este entendimento, afirma que através do mito consegue-se transformar a história em ideologia.
WARAT, Luiz Alberto, Mitos e Teorias na Interpretação da Lei: 128
“O homem no estado natural de Rousseau se tornou, no século XIX, o ‘povo’ de Mazzini e o ‘proletariado’ de Marx. “ (ROSSELI: 118)
A ética dominante na História da Humanidade foi uma variante da doutrina altruísta-coletivista, que subordinava o indivíduo a alguma autoridade superior, mística ou social. Conseqüentemente, a maioria dos sistemas políticos era uma variante da mesma tirania estatista, diferindo apenas em grau, não em princípio básico, limitada apenas pelos acidentes da tradição, do caos, da disputa sangrenta e colapso periódico.
RAND, A.: 118.
Enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do Estado - e, portanto, com o objetivo de limitar o poder - os direitos sociais exigem, para sua realização prática, precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado.
BOBBIO, NORBERTO, A Era dos Direitos:
72

O Estado comprovou ser um gastador insaciável, um desperdiçador incomparável. Na verdade, no século XX, ele revelou-se o mais assassino de todos os tempos. O político fanático oferecia o New Deal, grandes sociedades, e estados de bem-estar social; os fanáticos atravessaram décadas e décadas e hemisférios; charlatães, carismáticos, exaltados, assassinos de massas, unidos pela crença de que a política era a cura dos males.
JOHNSON, P.: 616.

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As principais características do indivíduo no grupo são, portanto, o desaparecimento da personalidade consciente, o domínio da personalidade inconsciente, a orientação de pensamentos e sentimentos em uma só direção mediante a sugestão e contágio, a tendência à realização imediata de idéias sugeridas. O indivíduo não é mais ele mesmo, é um autômato destituído de vontade. Ademais, pela mera participação num grupo, o homem desce vários degraus na escada da civilização.
LE BON
cit. KELSEN, HANS, A Democracia: 315
A justificação da democracia, ou seja, a principal razão que nos permite defender a democracia como melhor forma de governo ou a menos ruim, está precisamente no pressuposto de que o indivíduo singular, o indivíduo como pessoa moral e racional, é o melhor juiz do seu próprio interesse.
BOBBIO, N. Teoria Geral da Política: a Filosofia Política e as Lições dos Clássicos: 424
É o que ensina a mais moderna ciência:
Esta organização não pode ser abandonada à iniciativa dos governos: será alcançada quando os povos tiverem uma vontade firme e ativa, porque é renovação radical de todas as antiquadas tradições politicas. A compreensão e a vontade de resolver o problema estão-se generalizando. Acredito na influência de um individuo sobre outro e acredito no processo de seqüência e encadeamento entre os homens.
EINSTEIN, Albert, Fala Einstein sobra o futuro da humanidade, Folha da Manhã, 4/3/1949.
Sem dúvida, o universo inteiro podia ser pensado como se desdobrando ou se expressando em ocorrências individuais. E dentro dessa visão global que se torna possível acomodar as sincronicidades como eventos significativos que emergem do coração da natureza.
GLEICK, JAMES, Chaos, cit. LEMKOW, ANNA,: 216
A época moderna pode ser considerada como fim da história, se tomarmos ‘fim’ no sentido de ‘telos’ coletivo da humanidade. Cumprindo esse ‘telos’, não haveria outros fins universais e sim individuais ou particulares. Isso representaria a possibilidade da multiplicação indefinível dos fins.
FUKUYAMA, F.,
O fim da história e o último homem
Resta avisar o pessoal.
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Nota
1. Euvres Complète, II, 346, diz:
“... uma vez que, de todas as aversões que a natureza nos dá, a mais forte é a de morrer, decorre daí que tudo é permitido por ela a qualquer um que não tenha outro meio possível de vida”
(KOSELLECK: 146)

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