sábado, 16 de maio de 2009

O carma ocidental - 33. Justiça prêt-à-porter



O caminho para a verdadeira eficácia e aplicação do Direito, não significa uma ruptura com a história e tampouco sua negação, mas sim o seu aprimoramento, adaptando-o com a atualidade, ou seja, uma reintegração e transformação com a sua própria realidade.BETANIA SCALLEY
Eu te falava outro dia da inconstância prodigiosa dos franceses com relação à moda. Entretanto, é inconcebível como são realmente obstinados. Tudo gira em torno dela.; é a regra com a qual julgam tudo o que se faz nas outras nações: o que é estrangeiro lhes parece sempre ridículo. Confesso-te que não poderia praticamente acomodar esse furor por seu vestuário com a inconstância com a qual mudam todos os dias. MONTESQUIEU, Cartas Persas, 1717: 245
A facilidade que se tem de mudar as leis e o excesso que se pode fazer do poder legislativo parecem-me as doenças mais perigosas a que nosso governo está exposto. MADISON, J., Federalist, n. 62. cit. TOCQUEVILLE, A., A Democracia na América, Leis e Costumes: 23

Na Idade Média o Direito provinha das gentes, diversificando-se na medida de usos e costumes próprios de cada região. Cada agrupamento adotava a resposta jurídica compatível com suas peculiaridades e tradições. Julgadores não se vinculavam a normas superiores, até por que de difícil comunicação, mas decidiam com base nos fatos circunstanciais. Bastavam as luzes do “direito natural”. A civilização se conduzia mais pela ética aristotélica do que por ameaça punitiva. Não havia plano jurídico. A queda do Império Romano já mostrara a ineficácia da lei mais bem articulada. Impunha-se o Direito Natural, a Relatividade  perante o legislador:
A superioridade do jusnaturalismo medieval sobre o moderno consiste em que ele nunca teve a pretensão de elaborar um sistema completo de prescrições, deduzidas, more geométrico, de uma natureza humana abstrata e definida de forma permanente. Se é verdade que a função constante do direito natural sempre foi impor limites ao poder do Estado, é também verdade que a concepção medieval preenchia essa função atribuindo ao soberano o dever de não transgredir as leis naturais. BOBBIO, N., Locke e o Direito Natural: 46
Em 1430, todavia, Constantinopla apresentou o parteiro do Renascimento. Florença se responsabilizou pela proveta, e dali jorrou a fonte de Maquiavel, água pela qual se deliciariam BACON DESCARTES HOBBES, ROUSSEAU & BENTHAM, pelas ciências humanas; DA VINCI, COPÉRNICO GALILEU, KEPLER, TICHO BRAHE, de novo BACON & DESCARTES, NEWTON & LAPLACE, pelas na ocasião entendidas exatas.

A Academia Platônica, fundada por Marsilio Ficino, com consentimento de Cosme de Medici, elabora com efeito uma doutrina destinada a uma larga difusão, por longo tempo benéfica à manutenção da hegemonia cultural florentina, mas da qual os Medici são os primeiros a tirar vantagem concretamente. LARIVAILLE, P.: 161.
"Platão se harmonizava, perfeitamente, com a doutrina cristã, porque tanto nele quanto na Igreja, tudo procede da mesma fonte, a saber, do 'logos' divino." De acordo com a vox que se tornou populi, o procedimento do Grande Arquiteto do Universo se mostrava coerente, por ordenado, cadenciado pelos dias, milimetricamente calculado.
O radical da palavra grega ‘mathemática’ é mathein, que quer dizer captar, aprender, apanhar. A captação é mathéma (ou mathésis) de que deriva a nossa palavra matemática, designando não uma construção mental, mas uma captação de uma realidade já existente.
"A matemática, mais do que qualquer outra disciplina, tornou-se aquele discurso vivo que Platão considerou a única forma de conhecimento." (FEYRABEND, 1991: 135)
Como o inventor da academia excluia abstraídos, o notável artista se obrigou escorregar pela vereda:

Leonardo da Vinci descobriu a medida exata da beleza humana, conhecida como proporção áurea. Segundo essa equação, o corpo e o rosto, quando são bonitos, apresentam uma determinada proporção matemática: de 1 para 1,618. Esta seria a relação de equilíbrio e simetria ideais para um corpo ou um rosto humano serem considerados bonitos
A dubiedade platônica
Com o homem primitivo é acima de tudo o medo que invoca noções religiosas - medo de fome, bestas selvagens, doença, morte. Já que nesse estágio da existência a compreensão das conexões causais é geralmente pouco desenvolvida, a mente humana cria seres ilusórios mais ou menos análogos a ela mesma, de cujas vontades e ações dependem esses acontecimentos temerosos,
EINSTEIN, cit. PAIS, ABRAHAM, Einstein viveu aqui: 139
Se a realidade de Esparta era por demais assustadora, na fragorosa queda do Império Romano veio com maior intensidade, para permanecer no coração de todo mundo,  até ser ainda mais revigorada na Renascença.
“A afirmação mitológica da maldade inata na natureza humana encontra-se, como se sabe, na Bíblia. Ela está explicitada no episódio de Caim e Abel, como corolário da tese do Pecado Original; e foi filosoficamente elaborada por Santo Agostinho.” (PENNA, O.M., O espírito das revoluções: 83)
O erro, o Mal entra pelo corpo para transformar o divino Bem da alma," e isso bem ensinara PLATÃO (cit. KELSEN, 1998: 3)
Como DEUS nas alturas tem eficácia limitada à crença, cabe ao Estado ordenar o positivamente o rebanho. Até partirmos, mister a presença do grande protetor terreno:
Está escrito que Caim fundou uma comunidade; mas Abel não fez o mesmo, fiel ao seu caráter peregrino e de hóspede temporário. É que a Comunidade dos Santos não é deste mundo, embora aqui tenha dado origem a cidadãos através dos quais se realiza sua peregrinação até que chegue o tempo de seu reino, quando todos se congregarão.
S. AGOSTINHO: De Civitae Dei, Livro XV, cap. I.
O bendito paladino tem permissão, e até a obrigação, de penetrar pelas veias sociais a orientar, defender, prover e congregar. Portando o alvará, ele se refastela. Sacia a volúpia não do Estado, posto desprovido de tal dote, mas de seu jockey, ao arrepio do paciente:
O conceito de justiça é o primeiro conceito democrático mistificado por Platão. A justiça surgiria como uma propriedade do Estado. Seu totalitarismo é disfarçado sob a capa de 'verdadeira justiça', e se legitima teoricamente mediante a subversão doutrinária do humanitarismo em três frentes: defendendo o privilégio natural, postulando o coletivismo, advogando a tese de que o indivíduo existe para o Estado. Platão sutilmente instituiu uma sinomia entre individualismo e egoísmo: apelando para o sentimento humanitário, subverteu o conceito de individualismo, conceito que se opõe ao coletivismo não implicando, portanto, na adoção do egoísmo como padrão moral, tentando tornar a alternativa coletivista como a única moralmente compatível com o altruísmo.
PEREIRA, J.C., Epistemologia e Liberalismo - Uma Introdução a Filosofia de Karl R. Popper:116
Aos aspirantes e titulares políticos tudo isso vinha a calhar. Quanto maior o terror, mais justificada sua presença e domínio. Suas ações poderiam ser coloridas pelo crivo cientifico, portanto, deveriam ser obrigatoriamente aceitas. A sociedade, a massa, seria aquela expressão do relógio, em movimento homogêneo, linear, geométrico, euclidiano, cartesiano, exato e hierárquico. Variaria, apenas, sua intensidade. Todos os fenômenos, no diagnóstico do maior dos cientistas, “deveriam ter também uma explicação racional no sentido da mecânica”; também uma ordem exata.
O transplante aconteceu pela obviedade:
Para cumprir com sua responsabilidade universal, o príncipe era obrigado a procurar a medida de seus atos nos efeitos previsíveis que suas ações trouxessem para a comunidade. Assim, a obrigatoriedade de agir impunha também a obrigatoriedade de ser o mais previdente possível. O cálculo racional de todas as possíveis consequências tornou-se o primeiro mandamento da política.
KOSELLECK, REINHART: 24
A tarefa de legislar, verbo originário de legere - leitura da natureza - pela pena racionalista virava facere, agere, no primo-canto positivista:

O Direito é um sistema de normas criado pelo homem que racionaliza a vida em sociedade. A vida em si é um impulso vital, e é o Direito que compatibiliza a vida social, tornando-a racional.
(http://www.filosofiavirtual.pro.br/filosofiadodireito.htm)
O clima e o temperamento, mesmo quando são uma causa física primordial do caráter de um povo, são submetidos a uma causa posterior e secundária ainda mais enérgica, a ação do governo e das leis que tem a faculdade de violentar as ações, criar hábitos novos e contrários aos antigos, e, por esse meio, mudar o caráter das nações, coisa de que a história da vários exemplos.
VOLNEY, Tableau du Climat et du sol des Etats-Unis, Eclaircissements, art. IV, em Euvres, F. Didot, 1843: 709; cit. em GUSDORF, Georges, As Revoluções da França e da América: 104
"Pouco a pouco, os soberanos compreenderam que a justiça podia ser também pretexto para a extensão de seu poder e a afirmação de sua autoridade." (BOBBIO, N. e VIROLLI, M.:130.)

Tudo depende, portanto, de se fazer com que os súditos acreditem que o governo é bom e justo, e de os cidadãos sentirem-se felizes em obedecer às suas ordens - daí todo conjunto de medidas draconianas, aniquiladoras de toda liberdade de pensamento, sugeridas por Platão tanto na República quanto nas Leis, a fim de produzir e conservar nos súditos essa crença.
KELSEN: H. A Democracia: 501
E lá se foi o rebanho, conduzido ao gáudio do pastor:
"Recusando qualquer outro fundamento do direito, o positivismo jurídico negou a existência a de um direito que não fosse a expressão da vontade do soberano.” (PERELMAN, C.: 395)
Por esta superversão do Direito a legislaçãção sucumbe à mera expressão da vontade de poder, por isto constantemente rotulada de ideológica, mas nem é bem assim: seja da esquerda ou da direita, as ideologias só fitam a chave do cofre.

O que a ciência faz é precisamente mascarar, por detrás da racionalidade, sua função ideológica de justificar o poder, deformar o irracionalismo das relações humanas e dissimular a heteronomia dessas mesmas relações. A racionalidade, como ideologia, ocasiona uma cegueira parcial da inteligência humana, entorpecida pela propaganda dos que a forjam.
COELHO, Luiz Fernando, Teoria Crítica do Direito: 340
E se de posse a circunstância se quedar temerosa, o poderoso promove a alteração da prosa:

A produção legislativa em 2007, excluídas as matérias orçamentárias, foi maior do que nos anos de 2005 e 2006 e rigorosamente igual à de 2003, também primeiro ano de mandato do presidente Lula: 124 leis.
www.conjur.com.br, 25/3/2008
"A Justiça Eleitoral dá uma determinada interpretação hoje, daqui a dois meses muda." (GOMES, J.J., Procurador-Geral do Estado de Minas Gerais.- Folha, 22/6/2008.)
A base do governo tem na manga, pronta para ser apresentada, uma PEC (proposta de emenda constitucional) que prevê um referendo sobre a possibilidade de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva concorrer a um terceiro mandato. jJá há as 171 assinaturas necessárias para protocolar a emenda --a maioria vinda de PMDB, PT e outros partidos da base de Lula. Mas há apoios da oposição.
Folha de São Paulo, 17/5/2009
Esta subversão do Direito é quiçá o mais grave dilema da Justiça. Não raras vezes, ela assim se retorce, mercê de prévias cominações ideológicas, que de lógicas só portam o sufixo:
A lei era vista como imutável porque era ancorada na natureza, assim como a vontade da comunidade: os legisladores e juristas tinham meramente que averiguar o que ela era e como aplicá-la a situações concretas. O surgimento, no final do século XVIII, do 'historicismo', que dizia que as instituições humanas estavam sempre evoluindo, mudou essa visão tradicional da lei. Passou a se reconhecer que, como tudo o que se relacionava com o ser humano era resultado da vontade, tudo o que se relacionava com o ser humano era capaz de ser alterado - e aperfeiçoado - por meio da educação e da legislação. Foi Bentham, mais do que qualquer outro pensador, que popularizou a noção de que as leis podem solucionar qualquer mal social. PIPES, R.: 269
VON MISES (Uma crítica ao intervencionismo: 41)-conheceu a dialética de HEGEL, o mau tom de Bentham, e tantos:
Com a Escola Histórica, a ciência política tornara-se uma doutrina de arte para estadistas e políticos. Nas universidades e em anuais, reivindicações econômicas eram apresentadas e proclamadas como 'científicas'. A 'ciência' condenava o capitalismo, tachando-o de imoral e injusto. Rejeitava como 'radicais' as soluções oferecidas pelo socialismo marxista e recomendava o socialismo estatal, ou, às vezes, até o sistema de propriedade privada com intervenção do governo. Economia não era mais questão de conhecimento e capacidade, mas de boas intenções.
E, de novo, quem seriam os baluartes? De onde poderiam ter extraído tantas inspirações?
A influência do neoplatonismo, doutrina filosófica criada por Plotino (205/270) no século III, não se restringiu ao cristianismo (Santo Agostinho, John Scotus Erigena). Na Idade Média influenciou ainda a filosofia judaica, a filosofia dos árabes e, mais recententemente, o filósofo alemão G.W.F. Hegel (1770/1831) e os platonistas de Cambridge (séc. XVII).
www.greciantiga.org
"A filosofia de Platão, que outrora reclamara ser senhora no Estado, torna-se com Hegel o seu mais servil lacaio". (POPPER, KARL, 1998: 269)
“Sob influência dos filósofos absolutistas e autoritários, Hegel, Marx, Comte e uma pletora de epígonos contaminados por esta magia negra da política que é Ideologia - o Liberalismo recuou a partir da segunda metade do século XIX." (PENNA, J. O. M: 179)
As fundamentações liberais foram assim neutralizadas pelos projetos paulatinamente combinados, advindos da prestigiada escola, fonte torrencial de inspiração a HERDER, FICHTE, HEGEL, SCHELLING, IHERING, KELSEN, KARL SAVIGNY, THIBAUT, DILTHEY, WUNDT, GOBINEAU, ENGELS, JUNG, MAX WEBER, FRANZ OPPENHEIMER, FRIEDERICH WIESER, CARL SCHMITT, apenas para citar os germânicos. BERTRAND RUSSEL (p. 352) traz algumas fichas:
Shelling (1775-1854), assim como Hegel e o poeta romântico Hölderlin, era de origem suábia e os três se tornaram amigos quando Schelling entrou para a Universidade de Tübingen, aos quinze anos. Kant e Fichte foram as principais influências filosóficas que absorveu.Tanto em Fichte como em Schelling, encontramos formas que Hegel mais tarde utilizou como método dialético. Com Hegel, a filosofia idealista alemã recebeu a sua forma final e sistemática.
O método desse "idealismo"não poderia ser mais nefasto: “Hegel foi o filósofo clássico de todos os totalitarismos estatais e políticos, tanto os da direita (nazismo) como os da esquerda (comunismo).” (ROHDEN, H. 1993: 157)
Mercê de tão elevada racionalidade, o direito passou a ser envergado. E a ciência, desvirtuada:
Tanto o Direito como a Política jamais poderão ser reduzidos aos esquemas axiomáticos-dedutivos, expressos pelas ciências exatas, as quais se caracterizam por conter um elemento interno de coerção, que as torne indiscutíveis - mas sim, com um repertório de topoi, ou seja, certas fórmulas de procura - para usar as palavras de Viehweg, pontos de vistas universalmente aceitos e utilizados, empregados tanto a favor como contra e parecem conduzir a verdade. FARIA, José Eduardo, Justica e Conflito, Os juizes em face dos novos movimentos sociais: 87
A razão é singela:
Todo homem possui sua finalidade particular, de modo que mil direções correm, umas ao lado das outras, em linhas curvas e retas; elas se entrecruzam, se favorecem ou se entravam, avançam ou recuam e assumem desse modo, umas com relação às outras, o caráter do acaso, tornando assim impossível, abstração feita das influências dos fenômenos da natureza, a demonstração de uma finalidade decisiva que abrangeria nos acontecimentos a humanidade inteira. NIETZSCHE, F., Da utilidade e do inconveniente da História para a vida: 74
Ou em palavras provenientes das "exatas", de alguém obscurecido pela artiticial brilhatura de NEWTON:

Todo corpo reage a tudo que acontece no universo, de tal sorte que, se alguém pudesse perceber tudo, poderia ler em cada coisa o que está acontecendo em toda parte, e até mesmo o que já aconteceu e o que acontecerá; mas uma alma só consegue compreender dela mesma o que aí se acha representado distintamente. Não pode, de uma vez, explorar todos os seus recônditos, porque eles se estendem ao infinito.
LEIBNIZ, cit. IRA, P.,
Sincronicidade e destino humano: 66
Nada disso tem vindo ao caso:
Não é sem razão que a imprensa norte-americana tenha tratado com descrédito e até humor a nova constituição brasileira, de 1988. Um texto constitucional como o brasileiro, que desce a níveis bem específicos e se prolonga por centenas de artigos é, na tradição americana, uma piada. (Karnal)
A democracia fala de um governo comandado pelo povo e sujeito às suas leis; na realidade, entretanto, os regimes democráticos são dominados por elites que planejam maneiras de moldar e dobrar a lei a seu favor.
PIPES, R.:251

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