sábado, 2 de maio de 2009

O carma ocidental - 19. A revanche de Platão


O pavor agia como uma epidemia, corroendo os nervos dos patrícios, dos nobres, da corte e do povo em geral. Situação que piorou ainda mais quando o sultão mandou expor 76 soldados cristãos empalados por seus carrascos na frente das muralhas, para que os habitantes de Constantinopla soubessem o destino que os aguardava. Wikipédia
A cidadela caiu em 1453, mas antes disso seus maiores tesouros já tinham sido levantados. Entre eles, o mais precioso:.
Até o Renascimento, o Ocidente praticamente desconhecia Platão. Mas alguns manuscritos gregos, comprados em Constantinopla, mudaram esse cenário. Entre eles, levados a Florença em meados de 1430, estava nada mais nada menos do que a obra completa de Platão. ABRÃO, B.:136
A

A Academia Platônica, fundada por Marsilio Ficino, com consentimento de Cosme de Medici, elabora com efeito uma doutrina destinada a uma larga difusão, por longo tempo benéfica à manutenção da hegemonia cultural florentina, mas da qual os Medici são os primeiros a tirar vantagem concretamente. LARIVAILLE, P.: 161.

A região do mundo colhia, pelo menos parcialmente, a herança grega, e a combinara com a visão da natureza e a vocação do homem trazida pela tradição judaico-cristã. LADRIÈRE, Les enjeux de la racionalitè, 1977

À medida em que as nações começaram a se formar, no fim da Idade Média, o ataque contra a descentralização começou a ser dirigido não apenas pelos monarcas e ditadores que criaram nações altamente organizadas, como a França dos Bourbons e a Inglaterra de Cromwell, mas também pela Igreja e especialmente pelas ordens monásticas mais poderosas, que em suas sedes estabeleciam regras de comportamento uniformes e uma contabilidade rígida sobre os atos dos seres humanos que antecipava o ataque iminente às liberdades e à independência regionais e, na prática, determinava o sistema de ajuda mútua. WOODCOCK, 1971: 57

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Afirmo que temos no nosso século acontecimentos e observações novas e de tal alcance que não tenho dúvidas de que se Aristóteles vivesse em nossa época, mudaria de opinião. Galileu Galilei, Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo — ptolemaico & copernicano. Tradução, introdução e notas de Pablo Rubén Mariconda. São Paulo: Discurso Editorial/Fapesp, 2006: 131
O movimento da Terra fora negado por ARISTÓTELES e PTOLOMEU, este nascido logo depois de Cristo. (Isso é o que mais me intriga. Jesus não sabia? E se sabia, por que não disse?) O sistema ptolomaico, exposto no Almagesto, (O grande tratado) varou os séculos, incólume. A Terra seria uma massa inerte, imóvel, localizada no centro do Universo. Tudo giraria em nosso redor. Eis o momento, a razão do resgate do carma, a revanche de PLATÃO:
O sopro da morte atingiu a teoria aristotélico-ptolomática em 1609. Neste ano Galileu começou a observar o céu à noite, através de um telescópio, que acabara de ser inventado. Ao focalizar o planeta Júpiter, Galileu descobriu que se fazia acompanhar de vários pequenos satélites, ou luas, que giravam a sua volta. Isto implicava que nada precisava necessariamente girar em torno da terra, como Aristóteles e Ptolomeu haviam pensado. HAWKING, STEPHEN W. : 20
Com as funções em 1623 de um novo Papa Urbano VIII, seu amigo pessoal e um espírito mais progressivo e interessado nas ciências do que o seu predecessor, publicou nesse mesmo ano Il Saggiatore (O Analisador), dedicado ao novo Papa, para combater a física aristotélica e estabelecer a matemática como fundamento das ciências exatas.
Ocorre que para Aristóteles a geometria era apenas uma ciência abstrata. Por isso, a geometria nunca poderia explicar o real. As suas leis não dominam o mundo físico. O estudo da geometria não precede o da física. Uma ciência do tipo aristotélico não se apoia numa metafísica. Conduz a ela, em vez de partir dela. Uma ciência tipo cartesiana, que postula o valor real do matematismo, que constrói uma física geométrica, não pode dispensar uma metafísica. E tem mesmo que começar por ela. Descartes sabia-o. E Platão, que fora o primeiro a esboçar uma ciência desse tipo, sabia-o igualmente. KOYRÉ, A. Considerações Sobre Descartes: 81
Na década anterior TICHO BRAHE, e especialmente KEPLER  já haviam tratado do resgate. Mysterium cosmographicum "provava" que DEUS construíra o mundo tomando "por base de sua construção os cinco poliedros regulares que gozavam grande popularidade desde Pitágoras a Platão, até nossos dias." (cits. JAPIASSÚ, H., 2005: 165.)
A questão é ontológica: o que deve ser o mundo real para que a ciência desse mundo possa converter-se numa ciência matemática. Neste sentido, a ciência moderna, desde suas origens, seria uma ciência platônica: o sentido do platonismo era o matematismo. Idem, A revolução científica moderna: 133

Pitágoras apreciava a tal ponto a teologia órfica que dela fez modelo para plasmar a própria filosofia. Em decorrência disso, as sentenças de Pitágoras passam a ser chamadas sacras na medida em que são derivadas dos esquemas órficos. MIRANDULLA, Pico della, A dignidade do homem: 73
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Antes que Descartes dissesse que sua metafísica não era senão geometria, Maquiavel pode ter pretendido que sua política não era mais que matemática, com seus signos fundamentais, mais, menos, igual.

GOYTISOLO, JUAN VALLET: 28
À entrada em cena do maldito Secretário, os artistas fizeram ecoar suas trombetas:
Leonardo da Vinci descobriu a medida exata da beleza humana, conhecida como proporção áurea. Segundo essa equação, o corpo e o rosto, quando são bonitos, apresentam uma determinada proporção matemática: de 1 para 1,618. Esta seria a relação de equilíbrio e simetria ideais para um corpo ou um rosto humano serem considerados bonitos.
NICOLAU MAQUIAVEL (1469-1527) estudara latim com sete anos[2] e, posteriormente, a língua grega antiga. Por certo bem soube traduzir de modo pioneiro o colosso da Academia:
"O gênio de Maquiavel consistiu em aplicar ao domínio humano as normas da revolução mecanicista um bom século antes do advento da física experimental." (GUSDORF, As Revoluções da França e da América: 163)
Essa “genialidade” maquiavélica nada mais era do que a conexão com a racionalidade mecanicista. A própria “razão” provém de cálculo. Seu designativo vem de ratio, latim, significando ratear, contar, dividir, multiplicar. O apelo se mostrava realista e coadunado com os princípios basilares da Física conhecida:
Para cumprir com sua responsabilidade universal, o príncipe era obrigado a procurar a medida de seus atos nos efeitos previsíveis que suas ações trouxessem para a comunidade. Assim, a obrigatoriedade de agir impunha também a obrigatoriedade de ser o mais previdente possível. O cálculo racional de todas as possíveis consequências tornou-se o primeiro mandamento da política. KOSELLECK, REINHART: 24.
MARCÍLIO MARQUES MOREIRA (O Pensamento Político de Maquiavel:14) o retrata: “O secretário da República florentina era amigo das leis e teórico empírico da força.”

Força, não se discute, é conceito de Física. Ainda mais força-bruta. E sobre a amizade de com as “leis”, principalmente aquelas de seu próprio interesse, podemos ver, com CHEVALLIER, (História do Pensamento Político, Tomo 1: 273) o “tipo” legal que merecia sua atenção:
A primeira lei é a da conservação, lei egoísta que é válida tanto para o Estado como para tudo o que vive, mas que, no caso do Estado, se amplia e se reveste de um caráter quase sagrado. A segunda é a lei da concorrência vital que, num mundo dividido em Estados distintos, decorre irresistivelmente da primeira.
"Em virtude dessa estreita associação entre o poder do Estado e a autoridade religiosa, o catolicismo, em toda a parte em que predominava, opunha-se a liberdade de consciência e as liberdades democráticas, com o apoio do braço secular do poder civil." (GUSDORF: 80)
Isso recomendara MAQUIAVEL:
Na verdade, jamais houve qualquer legislador que tenha outorgado a seu povo leis de carácter extraordinário sem apelar para a divindade, pois sem isso estas leis não seriam aceitas... O governante sábio sempre recorre aos deuses. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília : Editora UnB, 1994: 58; cit. BOBBIO, 2002: 164

A fim de melhor compreender a arte da propaganda, Hitler estudou as técnicas propagandistas dos marxistas, a organização e os métodos da Igreja Católica, a propaganda britânica da Primeira Guerra Mundial, a publicidade norte-americana e a psicologia freudiana.
DOWNS: 147
A Igreja, que hoje protesta, e com razão, contra a opressão que sofre nas mãos do Estado totalitário, faria bem em lembrar-se de quem primeiro deu ao Estado o mau exemplo da intolerância religiosa ao usar o braço secular para defender, pela força, o que só pode brotar de um ato livre de vontade. A Igreja deve sempre lembrar-se, com vergonha, de que foi o primeiro mestre do Estado totalitário em quase todos os seus aspectos.
BRUNNER, EMIL,
Gerechtigkeit:Eine Lehre von den Grundgesetzen der Gesellsachaftsordnung (Zurique: Zwingli Verlag, 1943.); cit. KELSEN, H., A Democracia: 210.
O secretário ascendeu à primeira chancelaria em 1498, e publicou o Príncipe em 1512. No ano seguinte, Frá FRANCESCO DE MELETO (cit. GRUZINSKI, SERGE: 45) se encarregou do alarme:
Por todo lado haverá sangue. Haverá sangue nas ruas, sangue nos rios, as pessoas navegarão em ondas de sangue, lagos de sangue, rios de sangue. Dois milhões de demônios serão largados do céu porque mais mal foi cometido nestes últimos dezoito anos do que durante os cinco mil que os precederam.
De fato, desde então, o que se vê são oceanos de sangue.

No entanto, a fôrça corrosiva do pensamento e do estilo de Maquiavel ultrapassaram, de infinita distância, o objeto do momento. Por ter realçado tão cruamente o problema das relações entre a política e a moral; por ter concluído, em 'uma cisão profunda, uma irremediável separação' (Jacques Maritain) entre elas, O Príncipe atormentou a humanidade durante mais de quatro séculos. E continuará a atormentá-la, senão 'eternamente', como se disse, - ao menos enquanto essa humanidade não tiver analisado inteiramente certa cultura moral, herdada, no que diz respeito ao Ocidente, de alguns Antigos célebres, e, sobretudo, do cristianismo.
CHEVALLIER, JEAN-JACQUES: 46.
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O relato recente da filosofia positiva inicia-se com a análise, na segunda metade do século XIX, da reação ao realismo transcendental, especialmente de Hegel; o antigo, porém, recua ao século XV, com a política prática de Nicolau Maquiavel, ao século XVI, com o método experimental de Francis Bacon e ao século XVII, com o materialismo de Thomas Hobbes.
NADER, P.:
173

O Príncipe, este 'breviário prático do déspota' fascinou reis e imperadores resolutos, os derrubadores de regimes legais ou constitucionais. Cromwell obteve sua cópia. Luís XIV, o Rei-Sol, fez dela sua 'leitura noturna predileta'. E Napoleão assegurava que de todos os livros acerca da política, o único digno a ser estudado era o Príncipe. Quanto ao chanceler de ferro - Bismarck - sua falta de escrúpulos, sua política hábil, tortuosa, complexa, tudo indica que adotava Maquiavel.
JORGE, FERNANDO: 90
Na carona florentina adentraram Descartes, especialmente o pai do Leviathan, e a civilização inteira:
No modelo proposto por Descartes e seguido por Hobbes, a geometria era a única ciência que Deus houve por bem até hoje conceder à humanidade. Retomava-se Galileu, para que a língua da natureza era a matemática. O pensamento moderno é assim marcado por este ritual do pensamento a que logo se opôs Pascal com o chamado esprit de finesse. A matematização do universo desenvolve-se com Newton e atinge as suas culminâncias em Comte. Nos Estatutos pombalinos da Universidade, determinou-se expressamente que os professores usassem do e.g. para poder discorrer com ordem, precisão, certeza. Respublica, JAM
"A cisão cartesiana penetrou fundo na mente humana nos três séculos após Descartes e levará muito tempo para ser substituída por uma atitude realmente diferente diante do problema da realidade.”.
Todos esses cálculos provam-se miseravelmente errados:
O racionalismo priva de energia tudo aquilo que os homens mais amam: o sonho, a fantasia, o vago, a fé, a afirmação gratuita. Acrescentemos que isso é essencialmente inumano: o racionalista persegue seu raciocínio, não se importando em saber se ofende os interesses da família, da amizade, do amor, do Estado, da sociedade, da humanidade. Na realidade, o racionalista é um monstro. A humanidade se afirma nas suas religiões mais vitais atirando-lhes na cara o seu ódio.
BENDA, JULIEN, cit. BOBBIO, NORBERTO, Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea: 56.
"As corporações centralizadas e autoritárias têm fracassado pela mesma razão que levou ao fracasso os estados centralizados e autoritários: elas não conseguem lidar com os requisitos informacionais do mundo cada vez mais complexo que habitam." (FUKUYAMA, F., 2002: 205)
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