quarta-feira, 13 de maio de 2009

O carma ocidental - 30. Da faina por justiça


 .
Herdam-se as leis e os direitos em profusão,
Como uma eterna doença que segue sem parar;

Elas arrastam-se de geração a geração

E se vão suave de lugar para lugar.

Bom senso torna-se bobagem; benefício, tormento.

MEFISTÓFOLES,
in GOETHE, Fausto: 65
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De fato, foi o cristianismo quem incitou o indivíduo a constituir-se em juiz de todas as coisas, a mania de grandeza converte-se em quase um dever. NIETZSCHE, F., Vontade de Potência, Parte 2: 205.

Se há um pleito de unanimidade mundial ele leva o nome de Justiça. Seja da esquerda ou da direita, criminoso ou religioso, trabalhador ou vagabundo, progressista ou reacionário, todos se arvoram no direito de exigi-la. Não há povo nem indivíduo que não encha o peito ao invocá-la. De onde viria tão flamante ideal? Seria próprio da condição humana? De animais? Das plantas? Das coisas?
Conforme a lente, a justiça pode ser vista a tudo permear. O equilíbrio do Universo nos remete à possibilidade de sua existência, malgrado a disposição totalmente abstrata. Mas se houvesse um desequilíbrio repentino, de que modo ele seria regenerado?
* * *
O bebê tem em conta dois fenômenos: ao chorar, vem a mamadeira; sorrindo, ganha carinho. Nos primeiros passos, lá estão as mãos salvadoras do papai. Sobrevindo irmãos, a proteção é imperativa: o Lord garante a normalidade. Não se discute as sanções; mister acabar com o barulho. Caso não haja refrega, a polêmica se transfere ao domínio do imaginário, do complexo, tão aclamado. Ele minimiza as richas, e restabelece a harmonia. Há pais que passam a vida tentando dar o equilíbrio a seus filhos. Frente ao povo, graças ao carma, assume o papel o Estado:
O conceito de justiça é o primeiro conceito democrático mistificado por Platão. A justiça surgiria como uma propriedade do Estado. Seu totalitarismo é disfarçado sob a capa de 'verdadeira justiça', e se legitima teoricamente mediante a subversão doutrinária do humanitarismo em três frentes: defendendo o privilégio natural, postulando o coletivismo, advogando a tese de que o indivíduo existe para o Estado. PEREIRA, JULIO CESAR, Epistemologia e Liberalismo - Uma Introdução a Filosofia de Karl R. Popper:116
Justiça e perfeição tem muito em comum. Ambas são metas jamais alcançadas. A razão é pueril: a natureza ignora tais classificações. Não há parâmetro; portanto, não se pode aferi-las, colocá-las more geometrico. Não são suscetíveis de quantificações. Não moram em nenhum lar. Não há para onde convergir as determinações. São pessoais, relativas a interesses individuais, mas comuns, e por isso são pautadas por consenso. Na verdade são frutos de crença, jamais de ciência. Sua cabeceira mitológica confirma não só a origem, como o destino. No entanto, não há na face da Terra quem não levante o estandarte. Obrigamo-nos a reconhecer que se trata de uma forma mais civilizada do que a dos meros animais, esses restritos ao darwinismo, mas as pretensas justiça e perfeição não raras vezes precipitam a máxima, neste caso sobrepujando qualquer quadrúpede. E como bem diz o ilustrado paranaense professor Coelho, a faina tem sentido ideológico; portanto parcial, dogmático, egoístico.
No invólucro "social" torna-se flagrante a utilização do esteio. Qualquer conceito de justiça é necessariamente social. Ela envolve, no mínimo, dois agentes, ou contendores, de modo que não há justiça individual.
A prevalência no inconsciente coletivo haveria de chegar em mim. A importância engolfou-me à gravidade, ainda na adolescência. Naquela ocasião, duas estradas já bem pavimentadas apenas aguardavam minha presença. Há quem atinja o mais completo êxito em dupla atividade, mas entendia que se escolhesse me dedicar à vocação, antes de me preocupar com patrimônios, sempre voláteis, estaria me realizando de modo mais honesto, e o sucesso dependeria apenas de minha acuidade.
Assim é que alguns elementos da árvore de meu avô, através das prateleiras de meu pai, atraíram minha atenção já naquela tenra idade. Qual a razão de haver leis? Quem as promulgava? Qual o critério? Haveria alguma base científica em sua formulação? Algum núcleo comum?
Logo verifiquei que as leis penais se equivalem, variando apenas o modo do processo, e gradações. Mas no que tange às leis civis, por muitos ora denominadas sociais, seriam elas uníssonas alhures?
Uma obra em dois volumes olhava-me na altura dos meu olhos. Chamava-se Do Espírito das Leis. Cogitei que apenas por ela, como se fosse uma Bíblia, pudesse extinguir tal ansiedade, ou pelo menos minimizá-la a ponto de me dedicar à produção de algo palpável. Qual nada - era apenas uma porta, de um universo fascinante, e ao mesmo tempo aterrador, repleto de nuances e entretantos, de tal modo que supus melhor servir ao meio que me acolhia se me dedicasse a percorrer seus labirintos. Infelizmente, se antes fora atraído pelo facho luminoso, hoje percebo que era apenas isso - um facho, um apanágio, malgrado todo esforço do Barão de La Brède.
MONTESQUIEU havia predito que sua composição não se adequaria a grandes países. Então a França simplesmente o descartou:
O clima e o temperamento, mesmo quando são uma causa física primordial do caráter de um povo, são submetidos a uma causa posterior e secundária ainda mais enérgica, a ação do governo e das leis que tem a faculdade de violentar as ações, criar hábitos novos e contrários aos antigos, e, por esse meio, mudar o caráter das nações, coisa de que a história da vários exemplos. VOLNEY, Tableau du Climat et du sol des Etats-Unis, Eclaircissements, art. IV, em Euvres, F. Didot, 1843: 709; cit. GUSDORF, Georges, As Revoluções da França e da América: 104)
Quem seria um mero aristocrata iluminista para ofuscar o brilho e eficácia do próprio inventor da justiça? Nosso carma já bem ensinara:
Quer se suceda que governem com a lei ou sem a lei, sobre súditos, voluntários ou forçados; quer que purguem o estado, para bem deste, matando ou deportando alguns de seus cidadãos enquanto procederem de acordo com a ciência e a justiça e preservarem o estado, tornando-o melhor do que era, esta forma de governo pode ser descrita como a única que é certa. PLATÃO, Estadista, cit. POPPER, K.M., Sociedade Democrática e Seus Inimigos, Tomo I: 184.
O que se apura, evidentemente, é o contrário do que o Estado de Direito propugna:
É preciso que o Estado governe em acordo com as regras de ordem essencial', diz Mercier de la Rivière, 'e então deve ser todo-poderoso'. Segundo os economistas, o Estado não deve unicamente comandar a nação, também deve formá-la de uma certa maneira; cabe-lhe moldar o próprio espírito dos cidadãos, enchê-lo com certas idéias e fornecer ao seu coração certos sentimentos que julga necessário. Na realidade, não existem limites aos seus direitos nem ao que pode fazer; não reforma simplesmente os homens, quer transformá-los; talvez, se o quisesse, poderia fabricar outros! 'O Estado faz dos homens tudo o que quer', diz Bodeau. Esta frase resume todas suas teorias. TOCQUEVILLE, A, O Antigo Regime e a Revolução: 157
"Recusando qualquer outro fundamento do direito, o positivismo jurídico negou a existência a de um direito que não fosse a expressão da vontade do soberano.” (PERELMAN, C.: 395)
Seu sucessor o corrigiu em muitos pontos, de tal maneira que o pioneiro foi legado ao ostracismo por vinte séculos. Todavia, malgrado reputar distinto viés a virtude primordial, ARISTÓTELES (Ética a Nicômaco, no livro V) não logrou escapulir à metonímia:
Então a justiça neste sentido é a excelência moral perfeita, embora não o seja de modo restrito, mas em relação ao próximo. Portanto, a justiça é frequentemente considerada a mais elevada forma de excelência moral, e nem a estrela vespertina nem a matutina é tão maravilhosa; e também se diz proverbialmente que na 'justiça se resume toda a excelência'.
Não há dúvidas que se trata de uma bela construção retórica, quase uma poesia; e como tal, completamente onírica, desprovida de racionalidade, de objetividade; portanto, de qualquer cientificidade.
As primeiras histórias das instituições foram histórias do direito, escritas por juristas que com freqüência tiveram um envolvimento prático direto nos negócios do Estado. BOBBIO, N. 1987: 54
As últimas não são diferentes:
Mas a verdade é que não só nos países autocráticos, como naqueles supostamente mais livres - como a Inglaterra, a América, a França e outros - as leis não foram feitas para atender a vontade da maioria, mas sim a vontade daqueles que detêm o poder. TOLSTÓI, Leon, A escravidão de nosso tempo, 1900, cit. WOODCOCK, G.:106
O célebre russo, entretanto, generaliza em demasia:
O escrito de Descartes se difundiu amplamente no continente, em particular na França e nos Países Baixos, mas não teve o mesmo sucesso na Inglaterra. A filosofia experimental tal como ali se desenvolveu impedia uma aceitação fácil de qualquer sistema dedutivo, e o sistema de Descartes foi considerado tão gerador de dissensões, quanto o sistema extremamente materialista de Thomas Hobbes. HENRY: 71
O poder judiciário foi um enxerto francês, a partir das concepções cartesianas, em cima do sistema bipartide equacionado por LOCKE. ENGELS (p. 19) corrobora: “O materialismo me transferiu-se da Inglaterra para a França onde se encontrou com uma segunda escola materialista de filósofos, que havia surgido do cartesianismo e com a qual se refundiu.”
ROUSSEAU configurava o pensamento do pretensioso patrício: "Este pensador peculiar - embora freqüentemente considerado irracionalista ou romântico - também se apoiou no pensamento cartesiano e dele dependeu fundamentalmente." (HAYEK, 1995: 74)
MIGUEL REALE (1998: 161) tem o genebrino como “o Descartes da política.” SARTRE (1978: 114) pode identificar o liame:
É assim que o cartesianismo, no século, XVIII, aparece sob dois aspectos indissolúveis e complementares: de um lado, como Idéia da Razão, como método analítico, inspira Holbach, Helvetius, Diderot, o próprio Rousseau; é ele que encontramos na fonte dos panfletos anti-religiosos assim como na origem do materialismo mecanicista.
O resultado, todos conhecemos:

A Constituição Francesa de 1791 proclamou uma série de direitos, ao passo ‘que nunca houve um período registrado nos anais da humanidade em que cada um desses direitos tivesse sido tão pouco assegurado - pode-se quase dizer completamente inexistente - como no ápice da Revolução Francesa.’ LEONI: 85
O Reino Unido conserva uma constituição com mínimos detalhes, taxada por NAPOLEÃO como "letras de ouro bordadas sober o veludo", e os EUA ainda fracionaram o poder de modo geográfico. O pleito de justiça, a faina pelo poder, e a consequente promulgação desenfreada de leis e regulamentos é mais acentuado justamente nos países de origem latina, de tradição greco-romana, onde o carma se instalou profundamente, e onde se produz uma quantidade incomensurável de leis e decretos:
Na euforia do racionalismo, se desvinculou perigosamente o Direito Positivo de quaisquer outros compromissos com valores fixos e imutáveis, passando tudo a depender das maiorias eventuais, comprovadamente volúveis e supostamente representativas da fonte de sabedoria, que é o povo. BOAVENTURA, JORGE, O Estado de São Paulo, 29/4/1996: A2
A partir de MAQUIAVEL, corroborado por ALTHUSIUS, BOSSUET & BODIN, ao gáudio dos papas MEDICE e do cardeal de RICHELIEU, a tarefa de legislar, verbo originário de legere - leitura da natureza - vira facere, agere, no primo-canto positivista: "Pouco a pouco, os soberanos compreenderam que a justiça podia ser também pretexto para a extensão de seu poder e a afirmação de sua autoridade." (BOBBIO, N. e VIROLI, M.: 130)
Mas poderia ela, a Senhora Themis, em algum momento, ser adequada às mazelas sociais? Poderíamos obter, como tentado por KELSEN, uma teoria de justiça lastrada de modo científico? A democracia não minimiza a vontade de poder? Dificilmente, ainda assim:
A idéia de que a política é por um lado uma luta, um combate entre indivíduos e grupos, pela conquista de um poder que os vencedores utilizam em proveito próprio e em detrimento dos vencidos e, por outro lado, ao mesmo tempo, um esforço no sentido de realizar uma ordem social em proveito de todos, é o fundamento essencial de nossa teoria de sociologia política.
DUVERGER, M.

Os políticos acercam-se dos cofres das estatais para desviar verbas públicas. Em português claro: para roubar. Todo o nosso esforço deve se voltar para o combate à corrupção e às práticas políticas nocivas. É preciso desnudar diante dos olhos da nação esse esquema nefasto dos partidos para alcançar os cofres do Estado. SENADOR JARBAS VASCONCELOS, Folha de São Paulo, 25/2/2009
E quanto às relações sociais? De que modo se equalizarão?
Acredito que quem estiver entrando no caminho da iluminação será absolutamente impecável em tudo o que fizer. E por causa do medo da condenação? Não. Ou de punição de Deus, ou porque pequei e não alcancei o perdão? Não, não, não. Os verdadeiros iluminados verão que toda a ação tem uma reação com a qual eles terão de lidar, e se formos sábios, não faremos coisas que nos levarão a ter deenfrentar resolver e equilibrar isso em nossa alma mais tarde. Esse é o verdadeiro critério.  LEDWIN, M., cit. ARNTZ, W.: 20


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