segunda-feira, 11 de maio de 2009

O carma ocidental - 28. Da evolução ideológica



Ideologia é um termo usado no senso comum contendo o sentido de 'conjunto de idéias, pensamentos, doutrinas e visões de mundo de um indivíduo ou de um grupo, orientado para suas ações sociais e, principalmente, políticas' (Wikipédia)
Foto extraída da cobertura da 
Catedral de Notre Dame, Paris.

Ideologia não se refere à idéia, mas sim a ideal.  A semelhante grafia tem conotação paradoxal. Idéias podem ser alteradas, até se fundirem, como metais, mas o ideal, jamais. Ele é único, dogmático. Pretende-se  insofismável. A tanto vem embalado num conjunto de coincidências orientadas ao convencimento geral, para que todos ajam em prol do propositor:.
Aí está a fera que, com sua afiada cauda, trespassa as montanhas e derruba as muralhas e as armas; aí está a que corrompe o mundo inteiro. ALIGHIERI, Dante, A divina comédia :63.
A Academia Platônica, fundada por Marsilio Ficino, com consentimento de Cosme de Medici, elabora com efeito uma doutrina destinada a uma larga difusão, por longo tempo benéfica à manutenção da hegemonia cultural florentina, mas da qual os Medici são os primeiros a tirar vantagem concretamente. LARIVAILLE, P.: 161.
Qualquer ideologia necessita de contraponto para se impor:
A marca da filosofia platônica é um dualismo radical. O mundo platônico não é um mundo de unidade, e o abismo que, de diversas formas, resulta dessa bifurcação, surge em inúmeras formas. KELSEN, H., 2001:81
“Assim Platão constantemente estabelece o contraste nos seus diálogos.” (DEWEY, J.: 43)  A dialética tem o fito de expulsar o real para fora da realidade, à vingança mitológica:
Foram os gregos que primeiro elaboraram a noção de direito. O pensamento platônico é o início da racionalização. Antes, porém, o pensamento grego está penetrado pela mitologia. O conceito de justiça sai da lenda e passa a ser entendido a partir da perspectiva da razão.
RAIMUNDO G. MEIRELES www.espacoacademico.com.br

A partir de Platão e Aristóteles, a proclamada supremacia do Estado foi encontrada em suas visões nas quais 'moralidade não era separada da religião e nem a política da moral; e em religião, moralidade e política havia apenas um só legislador e uma única autoridade'. DALBERG-ACTON, John Edward Emerich, Essays on Freedom and Power (Glencoe, Ill.: Free Press, 1948
Por isso a presença de belzebú. Sem sparring, não sai espetáculo.
PLATÃO contrabandeou do orfismo a primaz inspiração dialético-metodológica, ou melhor, mitológica: cingiu o corpo da alma, e com isso nos desligou parcialmente da divindade celestial. Eis a razão a priori da religião, que significa religar: antes, mister desligar. A forja não poderia cogitar o bizarro: se E=Mc2, a primata distinção é tão inócua quanto infrutífera.
A ideologia, pois, resplancede por tecidos dialéticos. É cartesiana, por separações estanques. É newtoniana, por supor a preexistência de forças. É este conjunto que lhe confere a aura de postulação científica, por isso supostamente legítima.
No Renascimento, contrabandeado de Constantinopla, o ex-secretário do Tirano de Siracusa veio duplamente reencarnado - na função e na cor das calçadas tingidas com sangue nas ruas e allhures, por onde passou seu ideal.
Maquiavel considerava que a religião e sobretudo o temor a Deus, era essencial ‘para comandar os exércitos, para estimular a plebe a manter os homens bons, para fazer os reis se envergonharem.’ Escrevia ele também que o culto divino e o temor a Deus são necessários sobretudo nas repúblicas: ‘e como a observância do culto divino é origem da grandeza das repúblicas, também o desprezo daquele é origem da ruína destas. Porque onde falta o temor a Deus, convém ou que aquele reino desabe, ou que seja sustentado pelo temor a um príncipe que supra os defeitos da religião.’.
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Mesmo os ateus estão de acordo acerca de que não há coisa que mais mantenha os Estados e as Repúblicas do que a religião, e que esse é o principal fundamento do poderio dos monarcas, da execução das leis, da obediência aos súditos, da reverência dos magistrados, do temor de proceder mal e da amizade mútua para com cada qual; cumpre tomar todo o cuidado para que uma coisa tão sagrada não seja desprezada ou posta em dúvida por disputas; pois deste ponto depende a ruína das Repúblicas.
BODIN, JEHAN (15301596)
cit. CHEVALLIER, Tomo I: 55
Logo a França de BODIN assumiria o carma multiplicado. O Cardeal de Richelieu, (1585 - 1642) primeiro-ministro de Luís XIII de 1628 a 1642, foi o mais notável arquiteto do absolutismo na França e da liderança francesa na Europa, servindo, ainda, à repetição na Inglaterra, por Cromwell. “Em 1641, Richelieu encomenda ao cônego Machon uma Apologia de Maquiavel.” (Idem: 454)
É preciso que o Estado governe em acordo com as regras de ordem essencial', diz Mercier de la Rivière, 'e então deve ser todo-poderoso'. Segundo os economistas, o Estado não deve unicamente comandar a nação, também deve formá-la de uma certa maneira; cabe-lhe moldar o próprio espírito dos cidadãos, enchê-lo com certas idéias e fornecer ao seu coração certos sentimentos que julga necessário. Na realidade, não existem limites aos seus direitos nem ao que pode fazer; não reforma simplesmente os homens, quer transformá-los; talvez, se o quisesse, poderia fabricar outros! 'O Estado faz dos homens tudo o que quer', diz Bodeau. Esta frase resume todas suas teorias.  TOCQUEVILLE, A. O Antigo Regime e a Revolução: 157
Com efeito, hoje sabemos que o direito está imerso numa atmosfera ideológica e a teoria geral do direito, empenhando-se em abstrair este aspecto do direito, só pode falsear as perpectivas e, com isso, fica, por sua vez, sujeita à acusação de ser mais ideologia do que ciência. PERELMAN: 621
A ideologia impregnada sobre o trabalho
A metafísica teológica é totalmente calcada na ideologia, posto desprovida da menor racionalidade: "Para os católicos, o trabalho é uma sentença condenatória, como reafirma a Rerum Novarum, em 1891.” ( DE MASI, D.: 47)
Depois da maçã, vestimos preto-e-branco, de listas horizontais, e numerado: "Na concepção cristã, o trabalho representava o pagamento do pecado, um ato de expiação que sugere necessidade, aflição e miséria.” (ROHMANN, C: 122)
O desígnio do trabalho vem do próprio latim, tripaliare, significando uma tortura através de um instrumento chamado tripalium.

A criação de necessidades repressivas tornou-se há muito parte do trabalho socialmente necessário; necessário no sentido de que, sem ele, o modo de produção estabelecido não poderia ser mantido. Não estão em jogo problemas de psicologia nem de estética, mas a base material da dominação ideológico. MARCUSE, apud. MAAR, 1998: 69
No afã de reestabelecer o prestígio junto ao "eleitorado" é que LEÃO XIII promulgou a Rerum Novarum, nada mais nada menos do que ponte fascista. GAETAN PIROU (Introduction a l'etude de Economie Politique, Paris, : 280, cit. HUGON, P., História das Idéias Econômicas: 352) tentou explicar: “O catolicismo considera a corporação um meio de assegurar a ordem sem matar a liberdade, escapando, a um tempo, da anarquia liberal e da coerção socialista”. O Duce não decepcionou:

Como sinal da sua estratégia de consolidação do poder fascista o duce ordena, em 1923, que o ensino religioso seja implantado nas escolas públicas de toda a Itália, bem como se agravaram as sanções judiciárias para quem ofender a religião e os padres.
www. educaterra.terra.com.br/voltaire/seculo/2006/03/10/002.htm
As idéias corporativas tiveram grande aceitação: receberam apoio da Encíclica Papal Quadragésimo Anno, de 1931, influenciaram decisivamente a doutrina do partido nazista alemão e de inúmeros outros movimentos fascistas em diversos países. No Brasil, foi notória a sua influência na década de 30, durante a ditadura de Getúlio Vargas. STEWART JR., DONALD, O Que é Liberalismo: 24
JUAN DOMINGOS PERÓN (Perón y el justicialismo) bem soube colher o ensejo:

A diferencia de los otros, el movimiento justicialista era ideológicamente cristiano, y tanto lo era, que por diez años consecutivos el clero argentino, desde su más alta jerarquía, hasta el más humilde cura de campaña, apoyó al Peronismo, tanto en sus campañas electorales como durante su gestión partidista en el gobierno
A Igreja, que hoje protesta, e com razão, contra a opressão que sofre nas mãos do Estado totalitário, faria bem em lembrar-se de quem primeiro deu ao Estado o mau exemplo da intolerância religiosa ao usar o braço secular para defender, pela força, o que só pode brotar de um ato livre de vontade. A Igreja deve sempre lembrar-se, com vergonha, de que foi o primeiro mestre do Estado totalitário em quase todos os seus aspectos.
BRUNNER, EMIL, Gerechtigkeit:Eine Lehre von den Grundgesetzen der Gesellsachaftsordnung. - Zurique: Zwingli Verlag, 1943; cit. KELSEN, H., A Democracia: 210.

O pior é a continuidade, e até expansão, da "santa aliança":.
'Eu pedi ao Papa que nos seus pronunciamentos ele fale da crise econômica, pois, se todo o domingo o papa der um conselhozinho, quem sabe a gente encontra mais facilidade para resolver o problema', afirmou Lula.
Estadão, 13/11/2008

Papelão.
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A outra

Bem sabemos, por outro viés, que a celeuma sobre o trabalho não ficou restrita ao contra-golpe bismarckiano, que foi o primeiro regime fascista melhor caracterizado:
O Marxismo introduziu dois axiomas: o de que a sociedade está dividida em classes cujos interesses estão em eterno conflito; e o de que os interesses do proletariado - só realizáveis através das lutas de classes - exigem a nacionalização dos meios de produção, de acordo com seus próprios interesses e em oposição aos interesses das outras classes. MISES, L. Uma Crítica ao Intervencionismo: 139
Disse contra-golpe porque, mercê da dialética de HEGEL, MARX logrou demonstrar que era não só possível, como desejável, que a classe operária se desvinculasse da ideologia que ele julgava eclesiástica, ao tempo em que também via, como aquela, o trabalho como castigo. Neste ponto era fácil compreender. LENIN lhe seguiu à risca:
A coação a cada passo transformou o esforço em amargor, o trabalho num castigo, tornou todos os aspectos da vida numa trama de enganos mútuos e reavivou os instintos mais baixos e mais brutais do homem. Uma triste herança para começar a vida de liberdade e fraternidade. GOLDMAN, EMMA, My Further Disillusionmet with Russia, 1924, cit. WOODCOCK: 148
Ainda que tentasse quebrar o laço primordial que segurava o Estado - o pecado do homem, ou o homem lobo do homem, no dizer de HOBBES, o soviético primava pelo mesmo viés, cujo núcleo era platônico. E o que é pior - não escapulia dos ditames bíblicos: “Lênin foi o anti-cristo. Todos os grandes transtornos da Rússia tiveram sua origem em Lênin.” (VOLKGONOV, DMITRI, cit. JOHNSON, P.: 319)
O atilado MARX bem que tentou escapulir do preconceito religioso. De fato, com relação ao orfismo o intuito até seria possível, ainda mais com o apoio darwineano, mas ao pressupor que a matéria fosse o elemento-chave do Universo, e ao conservar a noção do tempo em transcurso linear, ele escorregou pela semelhante metafísica:
Foi a tradição judaico-cristã que estabeleceu o tempo linear (irreversível) de uma vez por todas na cultura ocidental... O tempo irreversível influenciou profundamente o pensamento ocidental. Preparou a mente humana para a idéia de progresso, para o conceito de tempo profundo, para a surpreendente descoberta dos geólogos de que a evolução humana é apenas um episódio recente e curto na história da Terra. Preparou o caminho para a evolução de Darwin, que fala de nossa união com criaturas mais primitivas através dos tempos. Em resumo, o advento da idéia de tempo linear e da evolução intelectual desencadeada por essa idéia corroborou a ciência moderna e a promessa de melhoria da vida na Terra. COVENEY: 22
Fatalmente o marxismo iria dar no mesmo ponto, à mesma peça ideológica que execrava, a prepotência do estado. Apenas se alteraram os atores, ora importados: "O período da Revolução Russa que se inicia em 1924 foi definido como termidoriano, em referência à Revolução Francesa." (MAESTRI, M. & CANDREVA, L., Antônio Gramsci: vida e obra de um comunista revolucionário: 228)
A vontade geral, por mitológica, ainda que elimine papas, reis, ou imperadores, só pode ser encabeçada, do mesmo jeito, por apenas um pastor, mesmo proveniente de grei, tal qual NAPOLEÃO, BISMARCK, MUSSOLINI, & HITLER: "A ideologia e até mesmo a terminologia dos primeiros marxistas russos também vieram da Alemanha.” (RICHARD, L., A República de Weimar:1919-1933 : 25)
O mesmo papel coube a LENIN & STÁLIN. PLEKHANOV (Collect works, XIII, 7, 90-1, cit. JOHNSON, P.: 40), pioneiro articulador da organização Iskra, a qual conduziu LENIN à proeminência, acusou-o de “adotar um espírito sectário de exclusividade”, que “confundia a ditadura do proletariado com a ditadura sobre o proletariado.”
Como é completamente impossível que o proletariado possa ditar alguma coisa inteligível, até pela mistura de vozes, é trivial concluir que antes de ser desiludido por LENIN, era o ideólogo que estava no reino da ilusão. Embora a dupla soviética portasse a famosa bandeira, não poderia se diferenciar, em nada, dos maiores opositores, exceto pelo compasso da marcha.
Quanto ao capital em si, não necessitava LENIN da riqueza a qual tanto hostilizara; afinal, passou a morar nos palácios (no luxo de Gorki, onde passou os últimos anos da vida, curtia um amplo escritório de frente para monumental bosque), farta alimentação e toda a mordomia. Tinha todo o país a seus pés. As benesses do poder, portanto, não as dispensou e, como os absolutistas czares, optou por quadro próprio de funcionários, a Chancelaria Pessoal, descartando a participação dos “idealistas revolucionários”.
A manobra esvaziou o sistema de gabinete prometido pelo “governo responsável”. Mais uma vez, L’etat c’est moi. (O Estado Sou Eu: célebre concepção do excêntrico Rei Luis XIV; lembrado por Vera Zasulich em Iskra n. 70)
On Left Infantilism (Lênin, Collected Works, XXII, 378) mostra o intento na propositura de vetor com igual potência, se possível maior, para o confronto. Para tanto, o carrasco usava o exemplo real:
Sim: aprendam com os alemães! A história caminha em ziguezagues e por vias tortuosas. Acontece que são os alemães quem, agora, lado a lado com o imperialismo bestial, incorpora o princípio da disciplina, da organização, do trabalho sólido, conjunto, com base na maquinaria mais moderna, na mais estrita prestação de contas e controle. E isso é exatamente o que nos falta.
O que lhe faltava é o mesmo que faltou à PLATÃO, à Igreja, ao fascismo, ao nazismo e mesmo à democracia social: conhecimento, em vez de ideologias. Ciência da física, em vez de metafísicas. Mas principalmente honestidade, intelectual e/ou fática, e não a volúpia desmedida pela matéria.
Ora se tem pleno conhecimento: se E=Mc2, o materialismo não possui, sequer objeto; e, a rigor, nem o capitalismo: ambos, energia e matéria, trabalho e capital são complementares, e até sinérgicos, não antagônicos. Reconheço, contudo, o desdém por esses fatos: sem antagonismos, não há como cultivar nenhuma espécie de ideologia!
Melhor descer dos trens. Aguardam-nos naves espaciais.

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