sexta-feira, 1 de maio de 2009

O carma ocidental - 18. A razão das subversões


Mais de dois mil anos já se passaram desde o dia em que Platão ocupava o centro do universo espiritual da Grécia e em que todos os olhares convergiam para a sua Academia, e ainda hoje se continua a definir o caráter da filosofia, seja ela qual for, pela sua relação com aquele filósofo. Todos os séculos da Antiguidade que se seguiram a ele ostentam na sua fisionomia espiritual traços da filosofia platônica (por mais metamorfoseados que estejam), até que por fim o mundo greco-romano se unifica sob a universal religião espiritual do neoplatonismo. A cultura antiga, que a religião cristã assimilou e à qual se uniu para entrar, fundida com ela, na Idade Média, era uma cultura inteiramente baseada no pensamento platônico. É só a partir dela que se pode compreender uma figura como a de Santo Agostinho, que traçou a fronteira histórico-filosófica da concepção medieval do mundo.
JAEGER 2003: 581
Platão sutilmente instituiu uma sinomia* entre individualismo e egoísmo: apelando para o sentimento humanitário, subverteu o conceito de individualismo, conceito que se opõe ao coletivismo não implicando, portanto, na adoção do egoísmo como padrão moral, tentando tornar a alternativa coletivista como a única moralmente compatível com o altruísmo.
PEREIRA, J. C. R.: 116
A artimanha grega traçou dois trilhos pelos quais o rebanho é conduzido à tosa.
“Assim Platão constantemente estabelece o contraste nos seus diálogos.” (DEWEY, J.: 43)
À esquerda, a do coração, escora-lhe a doutrina órfica com o alvi-negro de PARMÊNIDES. PLATÃO facilmente convenceu que seríamos compostos por dois elementos primordiais, porém antagônicos: o corpo e a alma. O confronto interno, a dicotomia do ser se deve aos respectivos destinos. Ele tem caráter mundano, egoísta, condenado à imperfeição. Ela, produto do perfeito sopro celestial, tem no céu o seu norte, e no amor o condutor.
Dilacerado entre o desejo de eternidade e a solicitação do corpo, jamais o homem poderia superar essa contradição se a sua alma não fosse naturalmente voltada ao divino. Como tal intento é apenas isso, intenção, o ser humano passou a ser visto muito perigoso.
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Para MAQUIAVEL, a natureza humana seria essencialmente má e os seres humanos quereriam obter os máximos ganhos a partir do menor esforço, apenas fazendo o bem quando forçados a isso. No dizer de HOBBES o homem era lobo do homem, um autômato, no diagnóstico de DESCARTES, um indivíduo dotado de más intenções, conforme ROUSSEAU, produto de eterno conflito, sob a ótica de HEGEL, um mero reprodutor, no catastrofismo de MALTHUS, um ser daninho:

Bonar, o principal biógrafo, enaltece os pendores de Malthus, 'indivíduo que defendia a varíola, a escravidão e o infanticídio, que atacava a sopa econômica, os casamentos precoces e a assistência paroquial; que teve o descaramento de casar-se depois de pregar contra os inconvenientes de uma família; que achava o mundo tão mal governado que as melhores ações causavam o maior dano; que, enfim, tirou toda a poesia da existência'.
DOWNS: 63
Pelos legisladores BENTHAM e MILL, ADÃO era muito egoísta, Mísero símio, na configuração de DARWIN. Exclusivo materialista, pela visão de MARX. Um ser impregnado de neuroses e psicoses, de tanta guerra interna, pela interpretação psicanalítica de FREUD.

De Rousseau a Freud, o homem rolou todos os abismos e, rolando, incapaz de se reter, convencido aos poucos de toda sua negrura interior, perverteu todos os caminhos, comprometeu todos seus atos, justificou todas as acusações futuras e passadas.
FARIA, OCTÁVIO, Machiavel e o Brasil: 186.
Tal técnica já fora por bem identificada:
“Para falar em termos fisiológicos: na luta com o animal, torná-lo doente é talvez o único meio de enfraquecê-lo.” (NIETZSCHE Crepúsculo dos ìdolos, ou como filosofar a marteladas: 54)
"O marxismo e a psicanálise freudiana expressam os dois lados de um mesmo 'fato', duas perspectivas de uma mesma realidade, a realidade do indivíduo 'cindido', explorado e alienado." (PISANI, M. MELLO, Revista Mal-estar e subjetividade . - Fortaleza, CE, março/2004)
Apenas sob um viés ele poderia se salvar:
"Tudo é duplo no homem, tudo se joga entre o tempo e a eternidade. Só o amor (...) pode rasgar o reino da necessidade."
(CHÂTELET, F.: 43)
A perna direita, a de PITÁGORAS, poderia contrabalançar a eventual carência. A ciência expressa pelos números, por cálculos, pela razão, complementaria as falhas do coração. Letras serviam à fantasia, enquanto “o livro da natureza é dominado pelo rigor matemático, donde seu objetivo precípuo é aquele de aprender a verdade.” (PLATÃO, cit. GRANGER, GILLES-GASTON, A Razão: 112)
Assim crescia a chicana dialética: o fato, a suposição e a resposta, conflito estimulado por distinções polares, paradoxais metafisicas enfraquecidas mutuamente, mas desse modo receptivas à introdução da vontade do amo:
"A doutrina metafísica da superioridade das espécies sôbre o indivíduo, do universal permanente sôbre o particular variável, foi o suporte do institucionalismo político e eclesiástico”. ( DEWEY, J.: 68)
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Durante os primeiros séculos, o ocidente obteve pleno sucesso marchando apenas pela direita.
A configuração de coletivismo extremado desde o século V a.C. é vista na Grécia como um modelo perfeito de Estado, com a coletividade assim rigidamente aparelhada e destinada à defesa do Estado. (1)
A sociedade grega e romana se fundou baseada no princípio da subordinação do indivíduo à comunidade, do cidadão ao Estado. Como objetivo supremo, ela colocou a segurança da comunidade acima da segurança do indivíduo. Educados, desde a infância, nesse ideal desinteressado, os cidadãos consagravam suas vidas ao serviço público e estavam dispostos a sacrificá-las pelo bem comum; ou, se recuavam ante o supremo sacrifício, sempre o faziam conscientes da baixeza de seu ato, preferindo sua existência pessoal aos interesses do país.
TOYNBEE, Arnold J.:196.
BERTRAND RUSSELL (O poder: 187; cit. FONSECA: 26) refutaria diretamente a "sutil sinomia":
As coisas verdadeiramente valiosas na vida humana são individuais e não coisas como as que acontecem num campo de batalha ou nas lutas políticas ou na marcha de massas arregimentadas em direção a uma meta imposta de fora. Nisso reside a diferença essencial entre a perspectiva liberal e a do Estado totalitário: a primeira considera o bem do Estado como consistindo em última análise no bem-estar do indivíduo, enquanto o segundo considera o Estado como o fim e os indivíduos meramente como ingredientes indispensáveis, cujo bem-estar está subordinado a uma totalidade mística, que é simples disfarce para o interesse dos dominadores.
No tempo dos césares não havia a percepção da completa propositura platônica, mas o seu racionalismo ficou evidenciado na configuração do Direito e do sistema social do Império. Quando a força do sabre atingiu o limite, todo legado ameaçou se desmanchar. Era preciso dotá-la do outro suporte:
O Império Romano passou a tolerar o cristianismo a partir de 313 d.C., com o Édito de Milão,[9] assinado durante o império de Constantino I (do Ocidente) e Licínio (do Oriente), no mesmo dia em que ocorreu o casamento de Licínio com Constantia, irmã do imperador da porção oriental do Império. Com este édito, o Cristianismo deixou de ser proibido e passou a ser uma das religiões oficiais do Império.O Cristianismo tornou-se a única religião oficial do Império sob Teodósio I379-395 d.C.) e todos os outros cultos foram proibidos.[10] O imperador detinha o controle da Igreja. Wikipédia
Agostinho pode ser considerado como autor da primeira filosofia do cristianismo. Intitulou-se ‘De Civitae Dei’ (Sobre a Cidade de Deus). Por isso ele é pai ou precursor da hierarquia eclesiástica, esta que alcança alto status no século XIII, teológica e políticamente sistematizada na ‘Summa Theologiae’ de Tomás de Aquino.

Os séculos IV e V, em que Agostinho vive, são uma época em que a filosofia, talvez com exceção do neoplatonismo de Plotino, perdeu a confiança na razão. Cabe então a Agostinho restaurar a certeza da razão, e isso, paradoxalmente, por meio da fé.
ABRÃO, B.: 98
Quando tudo desabou, Agostinho reativou a doutrina órfica, consubstanciada com a ética aristotélica. O amor era mais eficaz. De fato, além de tudo, mais duradouro: enquanto o Império Romano se estendeu por países limítrofes, durante uns cinco séculos, mas se desmanchava, a religião romana imperaria por quinze, sem nenhum desgaste. Desde então, os novos consulados romanos, em forma de catedrais, foram espalhados pelo globo, captando recursos onde eles estivessem.
O sistema filosófico-teológico de Agostinho está inteiramente calcado sobre a ideologia (2) do Antigo Testamento. As doutrinas de Agostinho sobre o pecado e redenção do homem são de uma clareza diáfana e foram aceitas quase universalmente, com algumas modificações pela Igreja cristã do Ocidente, até aos nossos dias.
ROHDEN, H, Filosofia Contemporânea: 23
O parâmetro vinha a calhar como regramento social:
Maquiavel considerava que a religião e sobretudo o temor a Deus, era essencial ‘para comandar os exércitos, para estimular a plebe a manter os homens bons, para fazer os reis se envergonharem.’ Escrevia ele também que o culto divino e o temor a Deus são necessários sobretudo nas repúblicas: ‘e como a observância do culto divino é origem da grandeza das repúblicas, também o desprezo daquele é origem da ruína destas. Porque onde falta o temor a Deus, convém ou que aquele reino desabe, ou que seja sustentado pelo temor a um príncipe que supra os defeitos da religião.’..
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No homem primitivo era o medo, acima de quaisquer outras emoções, que o levava à religião. Esta religião do medo – medo da fome, de animais selvagens, de doenças e da morte – revelava-se através de atos e sacrifícios destinados a obter o amparo e o favor de uma divindade antropomórfica, de cujos desejos e ações dependiam aqueles temerosos sucessos. Como o entendimento do homem primitivo sobre as relações de causa e efeito era pobremente desenvolvido, essa religião do medo criou uma tradição transmitida, de geração a geração, por uma casta especial de sacerdotes que se postara como mediadora entre o povo e as entidades temidas. Essa hegemonia concentrou o poder nas mãos de uma classe privilegiada, que exercia as funções clericais como autoridade secular a fim de assegurar seu poderio. Nesse ínterim se verificava a associação dos governantes políticos à casta clerical, na defesa dos interesses comuns.
EINSTEIN, A., cit. GARBEDIAN, H. GORDON: 314
HERBERT MARCUSE (1998: 69) também soube avaliar:
A criação de necessidades repressivas tornou-se há muito parte do trabalho socialmente necessário; necessário no sentido de que, sem ele, o modo de produção estabelecido não poderia ser mantido. Não estão em jogo problemas de psicologia nem de estética, mas a base material da dominação ideológica.
O acerto, o êxito, a eficácia do sistema provou-se através de sua aceitação geral:“O catolicismo considera a corporação um meio de assegurar a ordem sem matar a liberdade, escapando, a um tempo, da anarquia liberal e da coerção socialista”. (PIROU, GAETAN, Introduction a l'etude de Economie Politique, Paris: 280; cit. HUGON, P., História das Idéias Econômicas: 352)
Foi o que presumiu o debilóide:
A fim de melhor compreender a arte da propaganda, Hitler estudou as técnicas propagandistas dos marxistas, a organização e os métodos da Igreja Católica, a propaganda britânica da Primeira Guerra Mundial, a publicidade norte-americana e a psicologia freudiana.
DOWNS: 147
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* Relação que se estabelece entre duas palavras ou mais, que apresentam semelhanças de significado.
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NOTAS

1. "A evolução do sistema, entretanto, revela uma rápida redução numérica da coletividade espartíata que se transforma em simples oligarquia: estima-se que no século III não haviam mais do que por volta de 900 cidadãos espartanos." CASTRO, PAULO PEREIRA DE www.fflch.usp.br/dh/heros/pcastro/grecia/1975/04.htm
2. Ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representação) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador.
CHAUÍ, MARILENA, O que é Ideologia: 113; cit. COELHO, LUIZ FERNANDO, Teoria Crítica do Direito: 337.

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