quinta-feira, 28 de maio de 2009

O Carma Ocidental - 41. Consequências do 14 de Julho


O impacto da Revolução Francesa, no campo das ideias, trouxe um novo conceito de História na filosofia de Hegel. Este conceito, por sua vez, exerceu uma influência direta sobre os revolucionários dos séculos 19 e 20, que absorveram o conceito nas lições de Marx e que passaram a enxergar a Revolução com base nas categorias hegelianas, como um libertário desenlace histórico da convergência entre necessidade e violência. .Hannah Arendt, Senhora Liberdade
Nem sequer um doutrinário da democracia como Rousseau, com a concepção organicista da volonté générale, princípio tão aplaudido por Hegel, pode forrar-se a essa increpação uma vez que o poder popular assim concebido acabou gerando o despotismo de multidões, o autoritarismo do poder, a ditadura dos ordenamentos políticos. BONAVIDES, P.: 56
O fio-de-ariadne nos conduz ao prólogo das tragédias: "É necessário que tal cidade não seja una, mas dupla, a dos pobres e a dos ricos, habitando no mesmo solo e conspirando incessantemente uns contra os outros". (PLATÃO, A República, livro VIII., cit. SAUTET, M.: 252 )

Na França, desde 1789, ou se era vermelho ou branco, padre ou leigo, burguês ou socialista, reacionário ou progressista. E entre os dois grupos inimigos, as pessoas se estripavam, cortavam-se em pedacinhos, insultavam-se, desprezavam-se.
Os descalabros foram todos conduzidos mercê de exclusivo e inconfessável interesse. Muito antes de  legitimada pela unção popular, de ser uma vontade geral, a Revolução foi concebida, encaminhada e gerida por artífices que miravam unicamente morar no palácio, e com isso abiscoitar a produção nacional, e até internacional, à suas gargantas profundas:
A Constituição Francesa de 1791 proclamou uma série de direitos, ao passo ‘que nunca houve um período registrado nos anais da humanidade em que cada um desses direitos tivesse sido tão pouco assegurado - pode-se quase dizer completamente inexistente - como no ápice da Revolução Francesa.’
LEONI: 85
Desde então, a Vaca Leiteira, como o nazista lhe chamava, vem batendo a cabeça no brete, ora à esquerda, ora à direita:
Faça a conta dos regimes que nos levam a codificar com um gesto nossas paixões do momento. Compensamos nossa inconstância através de visões eternas logo gravadas no mármore. Nossas revoluções passam primeiro pelo tabelião. Conseqüência: quinze Constituições em cento e oitenta se sucederam na França depois da Convenção: Diretório, Consulado, Primeiro Império, Restauração, Cem Dias, Restauração, Monarquia de Julho, II República, Segundo Império, III República, Vichy, de Gaulle, IV República, V República, ufa!
MITTERRAND, FRANÇOIS, Aqui e Agora: 90
Naquele belo horizonte do 14 de Julho espreitava o 'Golpe 18 de Brumário':
O consulado possuía características republicanas, além de ser centralizado e dominado por militares. No poder Executivo, três pessoas eram responsáveis: os cônsules Roger Ducos, Emmanuel Sieyès e o próprio Napoleão. Criavam-se instituições novas, com cunho democrático, para disfarçar o seu centralismo no poder.
Quem seria o mais notável mentor das chacinas? Quem deu respaldo ao funesto coro dos sans cullotes e tricoteuses na Place de La Concorde?
Para Rousseau, como para outros edificadores da Cidade Ideal do Racionalismo desarvorado, o legislador é responsável por tudo. É um deus ex-machina. Algo que será como Napoleão, que pretendeu representar o novo César e o novo Augusto do cesarismo imperial francês.
PENNA, 1997: 366
Quando James Boswell visitou Rousseau que mais do que qualquer outro francês do seu tempo influenciou a opinião pública contra a propriedade, seu anfitrião lhe disse: ‘Senhor, eu não tenho a menor simpatia pelo mundo. Vivo aqui num mundo de fantasia, e não posso tolerar o mundo como ele é. A humanidade me repugna'. Boswell on the Grand Tour: Germany and Switzerland, 1764, cit. PIPES, R.: 62
A mais realista e significativa homenagem Jean-Jacques Rousseau a recebeu no cemitério, em Ermenonville. O próprio Bonaparte (cits. Jorge: 71) prestou o tributo às qualidades do defunto: “Era um mau homem, um homem perverso. Sem ele não haveria Revolução Francesa. É verdade que eu também não seria nada. Mas talvez a França fosse mais feliz com isto.”
O mundo também, com certeza:
A difusão da insanidade
.
O socialismo nasceu da dissolução do Ancien Régime, da mesma forma que o conservadorismo foi criado a partir da tentativa de protegê-lo. GIDDENS, A.: 64

O homem no estado natural de Rousseau se tornou, no século XIX, o ‘povo’ de Mazzini e o ‘proletariado’ de Marx.
ROSSELI: 118
O período da Revolução Russa que se inicia em 1924 foi definido como termidoriano, em referência à Revolução Francesa.
MAESTRI, Mário & CANDREVA, Luigi, Antônio Gramsci: vida e obra de um comunista revolucionário: 228
Republicanos tupiniquins adoravam os adereços. A iniciativa francesa justificou o golpe contra o Império:
Quatorze de Julho - A data de hoje, que a República Brasileira comemora solenemente incluindo-a no seu calendário de festa nacionais, tem alta significação para o espírito de liberdade que domina a civilização contemporânea. Quaisquer que fossem os erros e os excessos que se seguiram a grande conquista de 1789, a histórica já consagra o estupendo legado que a humanidade recebeu dessa grande revolução, - o início da transformação política de todas as nacionalidades modernas, o berço fecundo de onde frutificou a semente generosa de todas as liberdades.
O Estado de São Paulo, ed. de 14/julho/ 1895; republicado em 14/julho/ 1995
O primeiro ato de tão elevado ideal dizimou a pequenina Canudos.“A 'vontade geral' tem sempre razão e, enquanto tal, está sempre espreitando a vida privada do cidadão soberano, por sobre seus ombros.” (Koselleck, Reinhart: 144)
A semelhança dessa vontade com o gosto dos inúmeros chefes latinos já fora detectado por ninguém menos do que o próprio “libertador” Simon Bolívar:
“Não podemos governar a América. Este país cairá infalivelmente nas mãos da multidão desenfreada, para passar em seguida às mãos de pequenos tiranos, quase imperceptíveis, de todas as cores e de todas as raças.” (cit. Minguet, Charles, Myrthes fondateurs chez Bolivar, 'Simon Bolivar', Cahiers de l'Herne, 1986, p. 117; cit. Gusdorf, G: 259)
Ainda bem que não comemoramos o 17 de outubro, da Bolchevique, descendente direta do desatino françês.
E como se formaram os Reich?
Quando a Prússia e os outros estados germânicos ingressaram no século XIX, encontraram a onda de nacionalismo e as demandas por participação popular estimuladas pela Revolução Francesa.
ALMOND, G. e POWELL JR., G.: 197
A convicção de que a Alemanha esteve até agora enferma de muitas moléstias graves, de que pode e deve melhorar, é universal. O precedente domínio francês muito contribuiu para isso. Ninguém que queira ser imparcial pode negar que as instituições francesas estão encerradas muitas coisas boas e que o Código e as discussões e os discursos a respeito dele, assim como o código prussiano e o austríaco, trouxeram para nossa filosofia mais vitalidade e arte civilista que as acaloradas discussões dos nossos tratados sobre direito natural. (3)
O ideólogo alemão
Poderíamos definir um mentor, o responsável pela fatídica reunião dos duces? Pois a história da Europa, que tinha no Príncipe italiano sua revelação, no inglês Leviathan seu mito, e na perversa vontade francesa de ROUSSEAU a solução ideal, requeria pujante organizador alemão. Mister, pois, este platão de olhos azuis, modernizado, o “patriota unificador”, de sobrenome HEGEL. Por completo, GEORG WILHELM FRIEDRICH HEGEL (1770-1831).
Considerado isoladamente, o indivíduo era meramente nocivo, um animal governado por instintos bruscos, como dissera Rousseau, sem nenhuma norma de ação mais alta que impulsos, apetites e inclinções, e sem regra de pensamento mais importante que fantasias subajetivas. Os direitos e liberdades do indivíduo seriam aqueles que correspondessem aos deveres impostos pela situação que desfrutava na sociedade. Hegel fundiu a idéia da vontade geral incoerentemente formulada por Rousseau. Rohden, H., 1993, p. 160.
A substituição por Rousseau, Hegel e seus seguidores da palavra 'opinião' pelo termo 'vontade' foi provavelmente a inovação terminológica mais fatídica da história do pensamento político. Esta substituição teve fundamento no cartesianismo de Rousseau e foi produto de um racionalismo 'construtivista' que imaginou que todas as leis foram inventadas como expressões da vontade para um dado fim. Bobbio demonstra que Hegel conseguiu ser “mais roussoniano que Rousseau.” O francês montara um contrato parcialmente inadequado. Mister melhor expressá-lo:“Para que tal aconteça, explica Hegel, é necessário que haja, por parte do Estado, autoridade absoluta e, da parte do povo, obediência incondicional. Os cidadãos do Estado de Hegel são súditos, servos, submissos, no exato sentido da palavra”. (9) "Hegel influiu nos negócios na Alemanha ao fim das guerras Napoleônicas, diante a profunda humilhação nacional perante a França e as aspirações de unificação política e criação de um estado nacional que correspondesse a unidade e grandeza da cultura germânica." (BOBBIO, N., Estudos sobre Hegel : direito, sociedade civil e Estado: 119) "A filosofia do direito de Hegel foi capaz de funcionar como apologia do Estado prussiano. ‘Assim como não se passeia impunemente por entre palmeiras tampouco se vive impunemente em Berlim',diz Karl Rosenkranz.." (CICERO, A.: 134).
Ao correr do desenvolvimento de seu pensamento, iria Hegel colocar-se do lado da realidade da força, da violência, da prepotência; iria salientar o desabrochar das sociedades e do Estado como grupo hegemônico, em concorrência vital com outros Estados. PENNA, J. O. M.: 94
“O tema de guerra inspirou a Hegel algumas de suas páginas mais famosas: desde as primeiras obras tinha proclamado que a guerra é necessária e mantém a saúde dos povos: como o vento sobre o pântano, a guerra é o momento de igualdade absoluta.” (Bobbio, N., 1997, p. 24)
“A gangrena - dizia aquele filósofo amargamente [naqueles tempos realmente havia muita gangrena] - não é curada com água de lavanda. É na guerra e não na paz que o Estado mostrava seu ânimo e ascendia às alturas de sua potencialidades.”( Sabine, G.: 620)

O “Espírito” de cada nação a diferenciava das outras. Quem desejasse constar na geopolítica mundial deveria afirmar sua individualidade ou alma, penetrando una e forte no palco da História na qualidade de combatente. A isso se dava o nome de “progresso”: “Hegel, como Heráclito, acredita ser a guerra o pai e a mãe de todas as coisas.”( Popper, K.: 44
)

BISMARCK realizaria o sonho de lavar a afronta. O exército prussiano desfilava garboso, demonstran do o acerto da unificação aclamada por HEGEL
No final do século XIX, a principal influência sobre a teoria acadêmica social e econômica era das universidades. A idealização bismarckiana do Estado, com suas funções previdenciárias centralizadas foi devidamente reestudada pelos milhares de ocupantes de postos-chave do meio acadêmico que estudaram em universidades alemãs nas décadas de 1880 e 90. SCHESINGER, ARTHUR M., The Crisis of the Old Order 1919-1933, p. 20; cit. em JOHNSON, P.: 13
A força, a submissão à autoridade voltavam para reconstituir o Reich.


É representado pelas pressões exercidas pelo regime napoleônico sobre os estabelecimentos reorganizados de ensino superior do direito (as velhas Faculdades de Direito haviam sido substituídas pelas escolas centrais por obra da República, transformadas posteriormente sob o Império em Escolas de Direito e colocadas sob o contrôle direto das autoridades políticas) a fim de que fosse ensinado somente o direito positivo e se deixasse de lado as teorias gerais do direito o jusnaturalismo porque inútil e perigoso aos olhos do autoritário governo napoleônico.
.Bobbio, N., 1995, p. 81.
O ódio pela França se fez cultivado, tal qual trunfo. O Primeiro chanceler esmagava com as peculiaridades intestinas, regionais. O Império se estende dos confins da Polônia à Áustria, a primeira anexada.
Na I Guerra o II Reich se desmanchou; então HITLER impôs o III, no fito de vingar a Nação por completo.
“Hegel foi o filósofo clássico de todos os totalitarismos estatais e políticos, tanto os da direita (nazismo) como os da esquerda (comunismo).” ( Rohden, H. 1993 , p. 157)
Quase totalmente ignoradas eram as obras de Locke (a primeira tradução completa de Dois Tratados sobre o Governo somente aparecerá em 1948) Constant, Tocqueville, Benhtham e Mill. Haviam florescidos estudos sobre Maquiavel: basta recordar os nomes de Ercole, de Russo, de Chabod. Nas breves notas Para a história da filosofia política, escritas em 1924, os autores levados em consideração eram (pareceria incrível nos dias de hoje) Maquiavel, Vico, Rousseau (maltratado), Hegel, Haller e Treitschke. A grande tradição do pensamento liberal e democrático da qual nascera o Estado moderno (também o estado italiano) era completamente ignorada. (8)
Antes da II Grande Guerra, durante mais de vinte anos, Hegel ocupou na França um lugar central. Se a maioria dos pensamentos se afastam dele, também é por terem sofrido a influência determinante daquele que se quis o ‘último filósofo’ e que continua a colocar para todos a questão da mudança do mundo. Descamps, C.,: 132
O Arco do Triunfo consagrou tropas em passo-de-ganso.
Os fascismos, nazismos, socialismos, comunismos, o desvirtuamento da democracia, as duas grandes guerras mundiais, e inúmeras revoluções civis pelo mundo afora se devem quase que exclusivamente à fatídica data francesa, ironicamente comemorada com festa pelo mundo a fora. É pouco?

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