quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Delenda Descartes



Nenhuma disciplina poderá outorgar para si própria um lugar de onde deduzir um saber absoluto e final. Quando a prestigiosa matemática ocupou este lugar,revelou-se então mais mutiladora do que a rainha!
Michel Serres
NO BANQUETE dos canibais, com Bacon, sentou titubeante conviva, de Vienne:
“Ao saber do processo contra Galileu em 1633, Descartes sustou a publicação de um importante tratado de física no qual adotava a teoria de Copérnico.”
A Pátria saturara René Descartes (1596-1650). Holanda e Baviera, Bretanha e finalmente a Suécia, regiões coincidentemente estranhas à comunidade latina, até receberam seus esforços, mas não lhe renderam homenagens. Eram poucos os que sabiam ler; e raro algum poliglota. Ele mesmo não se notabilizava pela sapiência, mas pela destreza na brutalidade
O próprio Descartes era um espadachim habilidoso, que cruzou a Europa combatendo com as tropas bávaras, então a serviço do Duque de Sabóia, e esteve presente também no cerco aos huguenotes em La Rochelle.
Em Estocolmo, desgostoso com a negligência geral, o globetrotter acabou falecendo. No post- mortem tornou-se mundialmente conhecido; mais ainda, praticado.
Em vida, como Rousseau, consumira o tempo centrado em si mesmo. Muitas linhas são dedicadas a transcrever sua própria história. Examinemos o notável exemplo de pretensão imanente em péssima redação

Penso que tive muita sorte em me ter encontrado desde a juventude em certos caminhos que me conduziram a considerações e a máximas com as quais formei um método* pelo qual me parece que tenho possibilidades de aumentar gradualmente o meu conhecimento e levá-lo ao mais alto ponto a que a mediocridade do meu espírito e a curta duração de minha vida poderão permitir-me chegar; já tirei dele tais frutos que, embora no juízo que faço de mim próprio trate sempre de me inclinar para o lado da desconfiança mais que para o da presunção, e que, olhando com olhos de filosófo as diversas ações e empresas de todos os homens, não haja quase nenhuma que não me pareça vã e inútil, não deixo de receber uma extrema satisfação dos progressos que penso já ter feito na procura da verdade e de conceber tais esperanças para o futuro que, se entre as ocupações dos homens puramente homens houver alguma que seja solidamente boa e importante, ouso crer que é a que eu escolhi. Espero que ele (este escrito) venha a ser útil a alguns, sem ser nocivo para ninguém, e que todos apreciarão minha franqueza. (Descartes, cit. Koyré, 1986: 18):
A modéstia é comovente, encantadora! Mas Koyré o aniquila:

Que um sábio nos conte a sua biografia, aí é que é surpreendente. Imaginamos Einstein ou Broglie a contarem-nos a vida, mesmo espiritual, antes de exporem a Teoria da Relatividade ou a Mecânica Ondulatória? Ora, Descartes fá-lo dizendo que teve a sorte de descobrir um ‘método’ que lhe permitira fazer grandes progressos no estudo das ciências e que expõe a fim de que os leitores o possam aproveitar.
E no quê consiste tal método? Responde-nos Gilles-Gaston Granger:
Convém efectivamente distinguir dois pólos de todo irredutíveis da idéia de método. Um corresponde às noções de ´receita´, ´procedimento´, ´algoritmo´, que descrevem detalhadamente a concatenação do que deve ser feito. O outro corresponde ao conceito de estratégia, que não fornece necessariamente uma indicação particularizada dos actos a cumprir, mas somente do espírito dentro do qual a decisão deve ser tomada e do esquema global no qual as acções devem decorrer o aspecto principal parece ser o método como estratégia.
Descartes abandonara a escola por excesso de dúvidas e decepções. Fora buscar um conhecimento claro e certo, advindo de um saber milenar, mas lhe apresentaram somente discussões. Presumia o “iluminado” ser possível viver desprovido de dúvidas. Como traçar uma estratégia com tantas opções sugeridas? Como saber qual delas seria a verdade?

“Tinham-lhe, em suma, prometido uma ciência e uma sabedoria (sagesse). E não lhe tinham dado nem uma nem outra.”
Deram-lhe a desculpa para vadiar, isso sim. Folgado, saiu ao turismo, a curtir bisbilhotices, futilidades e tolices, covardias da espada empunhada em prol das tiranias, tudo logrado com oportunismo confesso em sofrível estilo literário, inexorável conseqüência da precoce autoformatura filosófica
(cit. Koyré, 1986: 40):

Assim que a idade me permitiu sair da sujeição aos meus professores, deixei inteiramente o estudo das letras; e resolvendo-me a não procurar outra ciência senão aquela que poderia encontrar-se a mim mesmo ou então no grande livro do mundo empreguei o resto de minha juventude a viajar, a ver cortes e exércitos, contatar com pessoas de diversos humores e condições, a recolher diversas experiências, a experimentar-me a mim mesmo nos encontros que a fortuna me propunha, e por todo o lado a fazer reflexões sobre as coisas que se me apresentavam de modo a poder tirar delas qualquer proveito.
Só a matemática oferecia verdades encadeadas e certas, “por causa da certeza e da evidência de suas razões” Nosso TriPulante Bertrand Russell explica:

Na matemática não há fatos fora de seu próprio campo que exijam comparação. Por causa desta certeza, os filósofos de todos os tempos sempre admitiram que a matemática propicia um conhecimento superior e mais confiável do que o reunido em qualquer outro campo do saber.
A rainha mathésis universalis assaltava a imaginação dos transeuntes:
"O mundo de Descartes é um mundo matemático rigidamente uniforme, um mundo de geometria reificada, de que nossas idéias claras e precisas nos dão um conhecimento evidente e certo."
A sinistra esbanjava exuberância, seletiva à interpretação dos sábios, os reverenciados de Platão:
O radical da palavra grega ‘mathemática’ é mathein, que quer dizer captar, aprender, apanhar. A captação é mathéma (ou mathésis) de que deriva a nossa palavra matemática, designando não uma construção mental, mas uma captação de uma realidade já existente.
É completo sofisma, hábil inversão por dialética.
Ouçamos Kant, um dos raros preferidos por Einstein, em Critique de la raison pure, na antecipaçao dos postulados quânticos de Heisenberg e Shöredinger:
"Nós é que introduzimos a ordem e a regularidade nos fenômenos a que chamamos Natureza, e poderíamos encontrá-los nela se eles não tivessem sido originariamente colocados aí por nós ou pela natureza de nosso espírito."
Einstein (L´evolution des idées en physique) completou a profilaxia:
"O cientista nunca dialoga com a natureza pura, mas com um certo estado de relação entre a natureza e a cultura, definível pelo período da história no qual ele vive, sua civilização, os recursos materiais dos quais dispõe."
Eis o grande dogma, até maior do que o Sagrado, e pelo qual a humanidade foi traída:
A ciência ocidental tornou-se matematizada. A linguagem matemática da ciência, que causa tanto desânimo ao leitor de outras áreas, implantou-se como resultado do conflito entre as visões de mundo eclesiástica e leiga e seu propósito era justamente causar o afastamento do público comum.
(Schwartz: 18)
O grave dano social cartesiano
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Falando nisso, precisamos de numerário. Que entrem esses loucos comerciais!

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