quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Bacon, à moda.

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BACON VEIO AO BANQUETE; não o saboroso alimento, mas
Sir
Francis Bacon (1561-1626), professor de Direito, Cavaleiro
de Jaime I,
Procurador-Geral do Reino, Lord Chanceler e Barão
de Verulam,
integrante da Câmara dos Comuns de 1584 em diante
e autor, dentre outras façanhas de
baixo-calão, do Novum Organum:
aforismos sobre a interpretação da natureza e do reino do homem

(1620), e Nova Atlântida: o mundo da ciência.
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Na dedicatória de seu livro ‘O progresso da sabedoria’ (1605) a Jaime I, sir Francis Bacon declara que ‘de todas as pessoas ainda vivas que conheci, sua Majestade é o melhor exemplo de um homem que representa opinião de Platão de que todo o conhecimento é apenas memória. Embora Platão tenha expressado essa definição como alegoria à sua crença na imortalidade da alma* e Bacon, como parte de um astuto plano para obter certos favores do rei (que por sinal, funcionou muito bem), podemos nos referir a elas como uma alegoria à enorme importância que o pensamento grego exerceu e exerce no desenvolvimento da cultura ocidental’.
A ciência em voga, a escolástica, resignava-se em apreciar a harmonia, sem questionamentos. Os estudos eram voltados para “maior glória de Deus”, ausente o ímpeto de intervir na “ordem da natureza” cristã. Agora, de posse da mesma dialética platônica, Bacon vinha interpretá-Lo como Pai; como tal, por bondade e necessidade, como um simpático “Instrutor-bricalhão”:
“A glória de Deus consiste em ocultar a coisa, a glória do rei em descobri-la.”
Não só descobri-la, mas deflorá-la:
"A investigação das causas finais é estéril e, como uma virgem consagrada a Deus, não engendra nada.”
Bacon falava da natureza como de uma fêmea à antiga, aquela “obrigada a servir”, posta em “sujeição”, desse modo escravizada pelo filósofo natural. De nada valeria tentar agarrá-la se não se exercesse total controle sobre ela. A Natureza deveria ser capturada, e os segredos desvendados, através dos seus aposentos íntimos.
Falava o corrupto, perdoe-me, de estupro à Natureza:
A partir de Bacon, o objetivo da ciência passou a ser aquele conhecimento que pode ser usado para dominar a natureza. A natureza, na opinião dele, tinha que ser ‘acossada em seus descaminhos’, ‘obrigada a servir’, ‘escravizada’. Devia ser ‘reduzida à obediência’ e o objetivo do cientista era ‘extrair da natureza, sob tortura, todos os seus segredos’.
H. Marcuse (One-Dimensional Man, Beacon Press, 1964) relaciona o sucedido:
A natureza deixa de colaborar e, controlada, colocada para vista em jardins, paisagens e praias, é submetida como matéria-prima para as necessidades da racionalidade tecnológico-científica. Com a ciência e o capitalismo não só novas formas de dominação do homem aparecem, mas a própria natureza passa a ser dominada pelo homem.
Mutatis mutandis, o sabujo aproveitava o esteio religioso. De nutriente, participativa, a natureza virava alvo, adversária subjugada. O saber resumir-se-ia em meio vigoroso e seguro para conquistar o poder sobre ela, mas per se, não constituia valor:
“Assim, foi abandonada a filosofia natural como um traste inútil e o vazio, produzido pelo seu abandono, pretendeu o homem enchê-lo com a ciência.”
O psiquiatra R.D. Laing (The voice of experience, Pantheon, N.York, 1984) lamenta:
Perderam-se a visão, o som, o gosto, o olfato, o tato e com eles também foram a sensibilidade estética, a ética, os valores, a qualidade, a forma; todos os sentimentos, motivos, intenções, a alma, a consciência, o espirito. A experiência como tal foi expulsa do domínio do discurso científico.
Tradições, poesia, espiritualidade e a própria filosofia foram apartadas, minimizadas, arbitrariamente marginalizadas, tomadas de assalto pelo vitorioso esquema geométrico, racionalista:
A tradição filosófica do Ocidente, em todo caso desde o século XVII, foi profundamente influenciada pelo desenvolvimento da física matemática e das ciências naturais fundamentadas na experiência, na medição, na pesagem e no cálculo. Tudo quanto não era redutível a grandezas quantificáveis foi, por isso mesmo, considerado vago e confuso, alheio ao conhecimento claro e distinto.
Mesquinho interesse maquiava a burla:
"Um estudo recente sobre Bacon, porém, centrou-se mais especificamente em sua crença de que a filosofia natural deveria ser capaz de fornecer apoio para o Estado imperial."
Bacon, evidentemente, estudara na escola de Maquiavel:
Segundo a maior parte dos críticos, os Ensaios constituem o retrato mais real de Bacon. Encerram um repositório de conhecimentos teóricos das paixões e da natureza humana, aproximando-se do maquiavelismo. Esse maquiavelismo que se esconde nas entrelinhas das opiniões dos Ensaios, foi uma constante na vida real do autor.
A personalidade não escondia o semelhante caráter. “Bacon não foi um desses grandes homens dos quais podem se admirar igualmente pensamento e atividade.”
Para o historiador Wilhelm Windelband (1848-1915): "O esplendor da vida de Bacon foi prejudicado por manchas de graves defeitos morais.”
O bajulamento à Côrte, receita do Secretário Florentino, lhe rendeu, além das homenagens e dos banquetes, propinas, subornos e atos corruptos, fatos que precipitaram sua demissão por confissão e confinamento na London Tower. Sua fama correu o tempo e o espaço. Da capital britânica, depois de mais de século, Voltaire ainda mandava notícias:
Sabeis, senhores, que Bacon foi acusado de um crime que não é próprio de um filósofo: o de deixar-se corromper pelo dinheiro. Sabeis que a Câmara dos Lordes condenou-o a uma multa de aproximadamente quatrocentas libras (em nossa moeda) e a perder sua dignidade de chanceler e de par.
A fortuna do vigarista virou pó, mas seu “racionalismo”* frutificou:
"Na verdade, era isto que Shelley percebia já nos primeiros dias da Revolução Industrial, quando proclamou que na defesa da poesia devemos invocar ‘luz e fogo daquelas regiões eternas onde a faculdade do cálculo, de vôo rasteiro, jamais se atreva a guindar-se’."
O mago, relegado à beira do caminho, divisou, nos trilhos estendidos, o rumo do mal entendido:
A época dos magos estava praticamente desaparecida, dando lugar à nova era, que seria governada pela razão. Esta última sustenta que a alquimia não é possível, e à medida que os magos recolhiam-se à penumbra da lenda, as pessoas começaram a aceitar que estavam de fato limitadas a viver como pacotes finitos de carne e osso em delgadas fatias velozes a linha férrea. Tudo o que vêem é o que se encontra no campo de visão dos seus faróis dianteiros, sem levar em consideração a infinita expansão de possibilidades que se estendem por ambos os lados.
“Aos olhos do mago, quase todas as pessoas parecem trens, com lâmpadas reluzindo na locomotiva, atravessando tempo e espaço.”
Shelley, o mago e até mesmo a Igreja não estavam errados: o espírito científico buscado exato, visto como o grande caminho, a panacéia da humanidade, abafou o oxigênio da sensibilidade e do prazer, acabando por poluir toda a natureza e, principalmente, as relações humanas. Há muito a reverter.

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