terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Em Florença, assim florescia a Renascença

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Roma, 1513, urgente: Copérnico foi visto gravitando pelo Coliseu. Em pleno dia, o suspeito disse apreciar a "lanterna do universo"..
Enviamos nossa Foca Lisa para participar da fascinante entrevista coletiva concedida por Platinho, o franco e tenebroso filhote de Platão.
Você pode relatar alguns episódios que antecederam sua chegada?
Dante
(Florença 1265Ravena 1321) já havia arrumado meu berço. O gajo era imaginativo, mas nem tanto assim. Seu tema predileto usava a artimanha que vinha usufruindo de todo sucesso. O handicap era falar sobre o inferno. Isso arrepiava, continha o rebanho. Sua "reportagem" afirmava: quem ousasse prever desceria ao fogo atado com a cabeça para trás. O "repórter" chegou a delimitar o inferno, vê se pode. Aliguieri tinha feito uma sátira, mas o povo levou a sério, ao gáudio da grei eclesiástica. Em vez do chicote, e do sabre, mostrava-se o tridente.

Mas ninguém era espetado, pelo menos em vida. E quem mais se sobressaiu?
Como não? O que aconteceu com Giordano Bruno? E por qual razão Copérnico e Galileu emudeceram? A razão dava razão à Dante. Quem ousasse prever, desceria direto ao inferno!
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Se essas grandes personalidades eram caladas, quem catalizava as atenções?
Da Vinci. Era engenheiro, dono de boa imaginação, e bem sabia calcular. Pintava e bordava. Ah, e projetava bons armamentos, que era mesmo o que interessava. Ele conseguiu um aposento no Palácio, por convite de Ludovico Scorza, o Mouro, justamente por convencê-lo da utilidade de seus atributos como “estrategista militar, construtor de pontes, catapultas e projetista de morteiros, ‘com os quais posso lançar pedras de modo que estas parecam cair como chuva, e cuja fumaça mergulhará o inimigo em terror, para seu grande dano e confusão'.” E o pessoal ainda pensa que era pelas qualidades de pintor. Claro, como não havia fotos,ou gravuras, alguém tinha que atiçar a imaginação, compor Deus à nossa imagem e semelhança. Tudo vinha a calhar.
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Mas a Renascença não tomou este nome por causa da retomada do humanismo?
Conversa. O parteiro  nada tinha de humanista, mas de vigarista. Foi de fato competente. Eles compraram o bilhete:

A idéia é originalmente devida a Platão, que, sem dúvida influenciado pelas concepções pitagóricas, foi o primeiro a afirmar que o círculo, cujas partes são todas iguais entre si, é por essa razão a mais perfeita figura geométrica, e, portanto, como os corpos celestes são eles mesmos perfeitos, o único movimento que lhes é possível é o movimento circular uniforme. A tarefa dos astrônomos a partir de então foi construir um modelo matemático que explicasse os dados observacionais da astronomia, e no qual os planetas seriam dotados de movimentos circulares uniformes. BEN-DOV: 19
Além das sensacionais descobertas científicas e geográficas, o período não ficou consagrado como das artes, do esplendor espiritual?
De fato, o que mais tinha era artista, mas no sentido da ilusão, de iludir a humanidade. Nada havia de esplendor. O prenúncio era de horror. A arte mais reverenciada era medida pela capacidade de calcular.
Na virada ao século XVI, duzentos e quatorze livros de matemática saíram publicados. Só a Bíblia teve maior tiragem. Então era isso, a matemática à serviço da mistificação:
O mundo barroco pode ser descrito também como um grande teatro, onde cada homem deve ocupar o seu lugar. O mais belo dos teatros é o centro do mundo católico romano: a praça de São Pedro em Roma. A literatura, as artes, a filosofia giram em torno de Deus, de suas exigências e da salvação. Os filósofos e os sábios da época, em sua compreensão do mundo, privilegiam o caráter de abstração e de esquematização. Por isso dão a máxima importância à física matemática. Assim o problema do método constitui o problema número 1 de todos os filósofos. Trata-se de descobrir um método universal de conhecimento. E o modelo é o conhecimento matemático (geométrico). Japiassú, H., 1997: 81
Eis a razão maior do estrelato de Leonardo, e do livramento de Copérnico, Galileu e Kepler, embora a progenitora desse já tivesse sido jogada na fogueira, acusada de bruxa. Ticho Brahe, contudo, foi envenenado, e até hoje se especula a autoria. -
Mais algum estrangeiro se imiscuia?
Francis Bacon, hábil golpista, o melhor representante daqueles piratas malvados.
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Fale dos fatos que tornaram famosos esses artistas.
Bacon não era artista; apenas vigarista. Mas tanto em Londres como em Florença, e adjacências, imperava o terror, de modo que o povo precisava de ilusões. A bota andava muito malcheirosa. O assassínio, a pilhagem, as correrias dos mercenários, a descida dos oltramonti*, a espionagem e o conluio, as conspirações e as traições formavam os cotidianos da Itália do Cinquecento. Efeito tomou depois que descobriram a América. Êta descoberta! Haja brigas e tratados. Ninguém sabia, sequer, o que tratava; era só presunção, imaginação, suposição. Brigavam por suposições! A confusão começava a pairar, bonito.
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E vocês?

Frá Francesco de Meleto, se encarregou do alarme:
Por todo lado haverá sangue. Haverá sangue nas ruas, sangue nos rios, as pessoas navegarão em ondas de sangue, lagos de sangue, rios de sangue. Dois milhões de demônios serão largados do céu, porque mais mal foi cometido nestes últimos dezoito anos do que durante os cinco mil que os precederam.
O alarme era predição. O sublime humanismo veio banhado no sangue. O Renascimento glorificava a guerra como obra de arte. Cultuava o terreno a ser ocupado pelo soldado: o cemitério.
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Perguntei por vocês.
Nós ficávamos por ali, fora do alcance, naturalmente, a ver o circo pegar fogo.
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Três cruzes!

Era disso que nosso mais notável retransmissor necessitava: um campo fértil, ainda que cruel, mas na luz do pragmatismo “realista-materialista”.-
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Mais um terrível microondas? Diga por quem se refere.
Não seria Marcos Valério, tampouco Zé Bedeu. Nicoló di Bernardo dei Machiavelli (1469-1527), o nome da astúcia. Logo seria guindado à secretário do pequenino reino, tanto quanto meu pai , que conseguira um leito junto ao Tirano de Siracusa. Maquiavel bem apanhou a lição.
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O que esse mauquiavel inventou?  Teu pai ainda era filósofo, mas este, mero secretário , por que ficou assim, tão famoso?
Seu gênio "consistiu em aplicar ao domínio humano as normas da revolução mecanicista um bom século antes do advento da física experimental.”
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Agora mais essa, física experimental! Donde tiraram isso?
Foi coisa do inglês que lhe falei - Francis Bacon (1561-1626), que veio logo após. Ele até reconheceu:

Temos uma grande dívida para com Maquiavel e alguns outros, que descreveram o que os homens fazem e o que não deveriam fazer, pois não é possível unir a duplicidade da serpente e a inocência da pomba, quando não se conhecem exatamente todos os recursos da serpente: sua baixeza rasteira, sua flexibilidade pérfida, o ódio que afia o dardo.
Mas a coisa andava feia, mesmo.
Pois o alvoroço tinha começado no próprio Palácio. Foi ali que meu pai chocou os ovinhos, num dos quais nasci. Até o Renascimento, o Ocidente praticamente desconhecia Platão. Alguns manuscritos gregos, comprados em Constantinopla, foi que mudou todo cenário. A obra completa de meu pai aportou ainda antes do meado do século anterior, precisamente em 1430, como preparo à mortandade que lhe conto. Com a fundação da Academia Cosme de Medici aliciou leal exército de mercenários.
A Academia Platônica, fundada por Marsilio Ficino, com consentimento de Cosme de Medici, elabora com efeito uma doutrina destinada a uma larga difusão, por longo tempo benéfica à manutenção da hegemonia cultural florentina, mas da qual os Medici são os primeiros a tirar vantagem concretamente. LARIVAILLE, P.: 161.
Ora, Platão não era luz à civilização?
Isso aplicaram, para justamente empanar a visão. Da primeira turma formada por tal penitenciária, além dos sanguinários se destacaram Copérnico e esse tal de Maquiavel; logo receberiam o canudo o interessado Bacon, os parceiros Hobbes & Descartes, em seguida Galileu, até Rousseau. Cito apenas esses para não encher a kombi. E não sou só eu quem identifica. A grande idéia de Koyré, justamente, é que Galileu encarnava a herança do platonismo. Em outras palavras: Galileu acreditava que, graças à matemática, os físicos conseguiriam apreender a estrutura íntima da realidade.
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Mas por que "penitenciária"?

Todos pagam muita penitência a partir de então. Especialmente o povo:
"Leia sobre Platão, Aristóteles e os matemáticos antigos e descobrirá como suas especulações e descobertas foram transformadas e ampliadas nos métodos e sistemas com que até hoje trabalhamos." (Jacques Barzun A História, cit. Fadiman, Clifton org., p. 4)
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Alguém tinha que ser pioneiro; e a primeira vez, ninguém esquece.

Teriam esquecido, sim, não fosse Florença! As maiores contribuições de meu pai tinham sido  aos Trinta Tiranos de Athenas, e depois, servindo a Dioniso, o Tirano de Siracusa. Imagine que exemplos de administrações.-
Falávamos sobre Maquiavel
A rigor dá mesmo. O florentino é meu irmão de criação, e por isso foii o maior expoente do Renascimento, em que pese tentarem glorificar apenas Da Vinci. No espírito tomado científico, à bête-machines, bem cabia seu azeite:
“Antes que Descartes dissesse que sua metafísica não era senão geometria, Maquiavel pode ter pretendido que sua política não era mais que matemática, com seus signos fundamentais, mais, menos, igual.”
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Era mesmo um gênio!
A “genialidade”, reconhecida especialmente por aqueles que o interpretam como um "ser realista", provém desse empírico e obsoleto paradigma, de racionalidade mecanicista.
Para cumprir com sua responsabilidade universal, o príncipe era obrigado a procurar a medida de seus atos nos efeitos previsíveis que suas ações trouxessem para a comunidade. Assim, a obrigatoriedade de agir impunha também a obrigatoriedade de ser o mais previdente possível.O cálculo racional de todas as possíveis consequências tornou-se o primeiro mandamento da política.
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Tinham boas razões!
Não há razão boa nem má, como não há número bom nem mau. Depende como usá-la.
"Razão" se baseia por cálculos. O designativo vem de ratio, latim, significando ratear, contar, dividir, multiplicar. Presumia-se que quem soubesse contar fosse senhor de razão, mesmo que não tivesse nenhuma.
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Se por acaso todos se achassem com razão, só por saberem calcular, precipitar-se-ia  enorme confusão. Tinha algum outro líder para colocar o povo nos eixos?
Bem, na confusão é que morre gente, nâo? E o que morreu, de gente, tres cruzes!, como você diz.  Quem colocou o pessoal nos eixos, ou melhor,  quem ensinou os soldados a manter o povo sob a mira foi Marcino Ficino (1433-1494), como já falei, marco e fulcro do revigorado neoplatonismo. Em 1462 eu vi  Cosme de Medici lhe presentear com uma vila inteira. Ali é que nasceu a famosa academia,  E dali começou a jorrar papa de tudo que era jeito, casado,  lu não, e até uma mulher, se bem que esta enganou meio mundo. Meu pai  foi decisivo. "Platão se harmonizava, perfeitamente, com a doutrina cristã, porque tanto nele quanto na Igreja, tudo procede da mesma fonte, a saber, do 'logos' divino."
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Mas você reputa algo de divino nos Medicis, ou naqueles papas? Cesar Bórgia, por exemplo, o que tinha de divino?
Nada, nem meu pai, muito menos os Medici. Mas a versão interessa mais do que os fatos. Lembre-se que nesta época diziam para todos que éramos o centro do universo. Pronto. Ninguém questionava nada. Era tudo mansinho. Fácil de tosquear.
O nepotismo atinge grandes proporções: papas e cardeais estão interessados em garantir o futuro dos familiares. Os cardeais eram criados entre parentes, sem se olhar a idade, virtudes morais e intelectuais. Outro papa, Júlio II, tinha o apelido de Marte, vê se pode!

Era E.T.?

Nada, ao contrário. Interessava-lhe exclusivamente a Terra. Aliás, quanto mais, melhor. Devido a seus dotes guerreiros é que foi guindado a general do Vaticano, apoiado pelos Borgia, claro. Então exerceu sua vocação: comandou os exércitos de conquista de territórios para o Estado Pontifício.
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Mas o que conquistou esta fera, agora?

As regiões de Parma, Ferrara e Módena.
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Mais algum?
Leão X, também da famosa família Médici. Foi cardeal aos 13 anos, papa aos 37. Ao ser eleito, escreveu que iria aproveitar ao máximo o conforto e as possibilidades do cargo. A Cúria vivia entre caçadas, teatros e divertimento.
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Nossa, mas então nem precisava a dialética.
Ela faz parte como estratégia do plano, deveras maquiavélico. Confusão é que é bão. É o que precede qualquer ação. Justamente por ela escorrega o tonto. A dialética é instrumento para deixar todo mundo confuso. Tipo dividir tudo - corpo/alma, céu/terra, positivo/negativo, par/ímpar, divino/mundano, esquerda/direita. Tudo isso é criação do meu pai, em parceria com Pitágoras. Aprendeu o macête com Sócrates, e aprimorou. Os florentinos reaproveitaram. Até hoje tem utilidade. A armadilha é o fio estendido por onde transitam os termômetros, até os psiquiátricos. Trabalhador versus patrão, consciente/inconsciente, por exemplo. Ela é fundamental, e muito aproveitada: briga do filho com o pai, por que quer a mãe só para si... Vê se tem cabimento. Mas tudo o pessoal engole, porque muitas vezes até coincide, mesmo meio forçado. Agora tem uma nova instituição: transtorno bipolar. Quanto mais no meio estiver o loquaz, presume-se mais normalizado estará. É pela média. Para mim, mediocridade.
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Mal não há de fazer. Matar, a dialética não mata. Até ensina a raciocinar.
Letais somos nós. A dialética é apenas estratégia para o bote. É só estender a passarela, e o alvo fica delineado. Nem precisa raciocínio nenhum. É só esperar com o rifle. Existem muitas obras à respeito, mas recomendo esta, divulgada no blog: A Alienação da Dialética. Se a edição estiver esgotada, solicite download. É grátis.
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Só me responde sobre o interesse de Maquiavel, o líder que você diz ser o máximo. Além da covardia, por que mais ele precisava ser tão mirabolante?
Queria morar no Palácio, ora. Repare em suas próprias palavras (O Príncipe, cap. XXVI):
A necessidade de que me aflige me leva a publicá-lo: eu sinto que me consumo e isto não pode continuar assim sem que a longa pobreza não faça de mim um objeto de desprezo. Além disso, desejo vivamente que estes Médici decidam-se a me empregar, mesmo se eles tivessem de começar por me fazer rolar uma pedra.
Então ele veio com aquela: a Itália se mostrava "nascida para ressuscitar as coisas mortas”.
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Uma das "coisas" mortas,
por acaso, seria seu pai?
Exatamente, mas não só ele. O "estrategista" Maquiavel veio acenando com novo Império Romano, a partir de seu centro, como Cavour e Mussolini também incorreriam. Mas Cesar Bórgia não era nenhum Augusto. Morreu miseravelmente, como de resto quase todos os adeptos. Napoleão, o próprio Duce, Hitler, Getúlio Vargas tampouco tinham a estirpe dos memoráveis romanos. E mesmo aqueles precursores, bem o sabemos, viveram sob tragédias. Foram-se de modo desprezível. Os fãs sempre esquecem o detalhe: porque a subida ao poder pelo mapa do Príncipe torna-se acessível a qualquer perna-de-pau, e o deleite prazeiroso, o incauto olvida que o diretor da peça reservou um final invariavelmente melancólico, senão trágico, ao seu astro principal, justamente para satisfação da platéia. Ela é quem lhe garante o sucesso, ora. Eu me diverti muito.
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Bem, acho que chega.
Falta completar focando os efeitos cartesianos, meus irmãos de sangue. Neles, incluiria Newton e os cavaleiros daquele reino, entre os quais o famigerado, mas coitado, Thomas Hobbes, assecla de Bacon e Descartes. Ficarão faltando os três maiores mosqueteiros da dialética: Hegel, Darwin e Marx. Ah, e ainda Freud, claro, que a usou com grande maestria. Mas esses novos demoníacos deixaremos para quando o inverno chegar.
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Que assunto, francamente! Quando o inverno chegar, estarei em Búzios, em frente ao mar.
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*Oltramonti: Estrangeiros vindos do norte, dos Alpes.

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