domingo, 31 de agosto de 2008

A patologia* positivista da medicina - I


A medicina cria pessoas doentes,
a matemática pessoas tristes,
e a teologia, pecadores.
Martinho Lutero (14831546
Curiosamente o trio elencado por Lutero advém de ascendência comum. Nosso tema critica o esteio patológico da Medicina praticada no ocidente, entre nosotros. Trata-se de uma ciência deveras hermética, privated club dos iniciados, mas pelo elevador da Epistemologia  logramos êxito à ousadia. Embarcaremos no térreo, na sala de parto.

A humanidade vê Deus como Maestro. Ele é muito invocado, especialmente na função de curar enfermos. De fato, não são poucos os milagres atribuídos à vigilância celestial. A mistificação interessa especialmente aos oportunistas de todos matizes, mas naquela obscura época era hegemônica. A escolástica se resignava em apreciar a harmonia, sem questionamentos. Mercê do diploma adquirido junto à Santa Sé, os reis mantinham o povo submisso porque imbuídos do"direito divino". Não por acaso o Exército da Salvação se impunha como o mais apropriado para a delicada tarefa de resgatar a saúde. Quando a peste assolava a região, os sacerdotes reuniam os habitantes nas igrejas. Supunham que o povo unido jamais seria vencido. Quanto mais vozes integrassem o coro da oração, mais forte e eficaz seria o apelo. Como conseqüência, a praga se propagava com extraordinária rapidez.
* * *
A epistemologia hegemônica aplicada no cotidiano da atenção à saúde origina-se no paradigma mecanicista e analítico de René Descartes, aliado ao empirismo de Francis Bacon, reforçado pelo positivismo de Augusto Comte, no qual o todo é dado pela soma das partes e a noção de causalidade linear é prevalente, apesar das recentes mudanças ocorridas nas teorias científicas, principalmente provindas da física.
Ediara Rabello Girão Rios , Senso comum, ciência e filosofia - elo dos saberes necessários à promoção da saúde.
O relato recente da filosofia positiva inicia-se com a análise, na segunda metade do século XIX, da reação ao realismo transcendental, especialmente de Hegel; o antigo, porém, recua ao século XV, com a política prática de Nicolau Maquiavel, ao século XVI, com o método experimental de Francis Bacon e ao século XVII, com o materialismo de Thomas Hobbes.
(GUSDORF, G., p. 163)
Copérnico, Giordano Bruno, Galileu, Bacon & Descartes evidenciaram que éramos apenas vítimas de engôdo. A Terra não estava no centro do Universo; portanto, também não seríamos o centro das preocupações de Deus. Não podendo jogar todo mundo nas fogueiras, os eclesiásticos atiraram o povo na completa metafísica. Os militantes induziram a gente em nova pressuposição. Ele era Engenheiro, o maior dos relojoeiros:
E no meio repousa o Sol. Com efeito, quem poderia no templo esplêndido colocar essa luminária num melhor lugar do que aquele donde pode iluminar tudo ao mesmo tempo? Em verdade, não foi impropriamente que alguns lhe chamaram a pupila do mundo, outros o Espírito, outros ainda o seu reitor.
(NEWTON, I, Principia, cit. Châtelet, F., p.49.)
Deus não iria enganar suas criaturas. Caberia-nos, apenas, rastrear suas charadas:
Não é um simples acaso que a idéia cartesiana de Deus como legislador do universo se desenvolva somente quarenta anos depois da teoria da soberania de Jean Bodin.” (
Zilsel,E., The sociological roote of science, The American Journal of Sociology)
* * *
Investido da dialética platônica inicialmente reaparecida em Florença, Bacon interpretá-Lo-ia como Pai; como tal, por bondade e necessidade, como um simpático “Instrutor-bricalhão”:
“A glória de Deus consiste em ocultar a coisa; a glória do rei, em descobri-la.”
Pronto! Lá se foi o homem, de novo, atrás do impossível.
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Allons enfant!
O próprio Francis Bacon (1) (cit. WEBER. M., Ciência e política: duas vocações) desfraldou o espadachim:
"Podemos dominar tudo através da previsão. Equivale isso a despojar a magia do mundo."
O trem tomou velocidade nas Regras para Direção do Espírito (2).
A má tese, ou a má temática ,a "quantofrenia", conforme Sorokin, ou a "aritmomania", como diz Georgescu-Roegens, consagrava o homo faber tal homo mathematicus. O Universo só poderia ser "um vasto sistema matemático de matéria em movimento’, um sistema material (onde) tudo funcionaria "mecanicamente, segundo as leis matemáticas."

Para Descartes o próprio ser humano era máquina. Tampouco neste particular soube ser original: em 1543, André Vesálio, (1514-1564) (Les principes de la philosofie)já havia dado a conhecer De humani corporis fabrica:
"Toda a filosofia é como uma árvore cujas raízes são a metafísica, o tronco a física, e os galhos que saem desses troncos são todas as outras ciências, que se reduzem a três principais – a medicina, a mecânica, e a moral."

A imanente praxeologia descartava o que fosse insuscetível de ser mensurado.
Tudo foi tomado de assalto pelo vigoroso esquema geométrico:
A tradição filosófica do ocidente, em todo o caso desde o século XVII, foi profundamente influenciada pelo desenvolvimento da física matemática e das ciências naturais fundamentadas na experiência, na medição, na pesagem e no cálculo. Tudo quanto não era reduzível a grandezas quantificáveis foi, por isso mesmo, considerado vago e confuso, alheio ao conhecimento claro e distinto.
(PERELMAN, C., Ética e Direito, 672)
Desnecessário afiançar a dificuldade da reparação da cabeceira cartesiana:
"Perdeu-se a visão, o som, o gosto, o olfato, e com eles também foram as sensibilidade estética, os valores, a qualidade, a forma; todos os sentimentos, motivos, intenções, a alma, a consciência, o espírito." (LAING, R.D., The voice of experience; cit. CAPRA, F., O ponto de mutação:51)
"A partir dessas considerações, podemos então nos questionar como a filosofia de Descartes influenciou as concepções de saúde e doença, na medicina moderna, e que ainda hoje se mantém imperativa nos sistemas de saúde." (Ediara Rabello Girão Rios , Senso comum, ciência e filosofia - elo dos saberes necessários à promoção da saúde.)
* * *
O que você diria hoje do grande número de estudantes que consideram o saber como meio utilitário, como um meio de se tornarem uma engrenagem na máquina econômica e social? Os estudantes da máquina de que você fala fazem o que lhes mandam fazer. Adultos construíram essa máquina, essa ratoeira, esse labirinto.Num labirinto onde os ratos se perdem, as pessoas não dizem, ao observá-los 'os ratos estão loucos'; dizem 'construiu-se um labirinto para deixar os ratos loucos'. Em muitos países, o ensino foi construído para deixar os estudantes não muito felizes.
SERRES, Michel,
De duas coisas, a outra; cit. DERRIDA, J.: 67
Desde quase as famosas priscas eras o sonho de acertar na loteria fascina a espécie humana. Não são poucos que por isso logram vender bilhetes supostamente premiados. A humanidade acolhe embusteiros com bastante facilidade.
A França, mãe de Descartes, Rousseau, Napoleão e Sain-Simon, logo viu nascer um filho para continuar o brilhantismo da família. Em 1822, através do opúsculo Planos dos Trabalhos Científicos Necessários para a Reorganização da Sociedade, (COMTE, Augusto, Guimarães Editores, 4. edição, Lisboa, 2002:146) o pai do positivismo veio faceiro pelo vitorioso preconceito de Bacon:
Toda a ciência tem por fim a previdência. Porque a aplicação geral das leis estabelecidassegundo a observação dos fenómenos, tem por fim prever a respectiva sucessão. Na realidade todos os homens, por pouco instruídos que o julguemos, fazem verdadeiras previsões, fundadas sempre sobre o mesmo princípio, o conhecimentodo futuro pelo passado (...) está, portanto, evidentemente muito conforme com a natureza do espírito humano que a observação do passado possa facultar a predição do futuro, e que o possa fazer tanto em política, quanto em astronomia, em física, em química, e em fisiologia.
Preferida de nove entre dez esnobes tupiniquins, a maioria papagaios-de-piratas, entre os quais até um sabido presidente, o qual tivemos que suportar recentemente, a entrada da Sorbonne logo se enfeitou com o busto daquele novel embusteiro. Na seqüência, Alemanha, Itália, Espanha Portugal, até a Iugoslávia prestaram reverências, mas foi mesmo no país da Megasena, que o positivismo ascendeu ao apogeu. A instalação da república positivista no Brasil exigiu a presença dos artífices:
Os representantes mais esclarecidos das classes médias – médicos, professores, advogados e engenheiros – do último quartel do século XIX, viveram num clima intelectual positivista, não apenas comtiano mas littreísta e spenceriano. Maior penetração teve, porém, a filosofia positivista entre os militares, sobretudo nos jovens oficiais daquele tempo, que fizeram a República e que quase a dominaram, de 1889 a 1894.
(COSTA, C.: 38)
No âmbito medicinal, o paulista Luís Pereira Barreto (1840-1923) foi dos principais introdutores. Ao estudar em medicina em Bruxelas, encantou-se com a doutrina enunciada pela porta-voz Marie de Ribbentrop. Pernósticos cariocas se sentiam aproximados dos primos ricos:

O sucessor oficial de Comte foi Pierre Lafitte. Sob seu patrocínio, foi fundada, em 1878, a Sociedade Positivista do Rio de Janeiro, com o objetivo de divulgar o Positivismo na imprensa. Entre os intelectuais envolvidos na Sociedade estavam Benjamin Constant e os jovens Miguel Lemos e Teixeira Mendes. Esse foi o embrião do Apostolado Positivista do Brasil, que tanta influência teria mais tarde, durante a República. Enquanto se reformulava a Sociedade Positivista do Rio de Janeiro, em 1879, Miguel Lemos viaja para Paris com o intuito de estudar medicina. (Alexsandro Silva, Ana Gilda Benvenutti e Fabio M. Said, www.geocities.com/positivismonobrasil)
É o que veremos, a seguir, em
A patologia positivista da medicina II
Reexames em faculdades de medicina
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* O termo pode nos remeter aos patos, mas foi o Phatos que justificou o nascimento da prática medicinal. O homem haveria de encontrar meios para combater o mais terrível adversário, aquele que adentra no corpo de modo sutil, imperceptível, para logo prostrá-lo, e geralmente de morte, se não defendido. Dessarte, a patologia constitui o tronco, a principal estrada pela qual nosso detetive irá vasculhar, no fito de primeiramente pilhar, para depois eliminar o intruso que desestabiliza a saúde.
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1. "Também referido como Bacon de Verulâmio (Londres, 22 de Janeiro de 1561 — Londres, 9 de abril de 1626) foi um político, filósofo e ensaísta inglês. É considerado como o fundador da ciência moderna." (Wikipédia)
2. DESCARTES, R., Regulae ad directionem ingenii. Obra incompleta, escrita provavelmente antes de 1628, impressa apenas em 1701.
Visite o Museu de História da Medicina em Porto Alegre/RS

Durante o horário de verão o Museu de História da Medicina abre de terças a sextas-feiras do meio-dia às 20h e aos finais de semana e feriados das 15h às 20h. O museu está localizado na Av. Independência, 270 - Centro - Porto Alegre, RS, -Informações no site www.muhm.org.br

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