sábado, 16 de agosto de 2008

Príncipe do Catete

O que caracteriza esse governo (Getúlio Vargas) é uma incrível e absoluta corrupção, de tal intensidade que nem mesmo um norte-americano imaginaria antes de vê-lo de perto. Do topo à base, todos aceitam propinas. Para ilustrar melhor o grau de corrupção, posso mencionar o fato de um homem, Adhemar de Barros, além de pobre e muito endividado, ao se tornar governador de São Paulo conseguir, em cinco anos, ser o mais rico da América do Sul. Poucas pessoas reagem com indignação contra esse fato. Notei que quando as pessoas se manifestam a respeito é para usar o 'slogan' de que ele 'rouba mas faz'. Isso o diferencia de outros políticos que também roubam, mas nada fazem. O governo brasileiro fundou um Conselho Nacional de Pesquisas, com um orçamento para pesquisa de cerca de 10 milhões de dólares por ano. O Conselho, entretanto, não tem sido útil para a física brasileira. A maior parte do orçamento é usada para: A) despesas com uma grande estrutura burocrática; B) prospeção de urânio e de tório para envio aos Estados Unidos. DAVID BOHM*
Getúlio subiu ao palco nacional pela mão do Presidente Washington Luís, para assumir o Ministério da Fazenda. O caudilho bem conhecia fazenda, mas aquela de criação de gado. Imagine como se comportaria à testa da complexa gestão financeira da Nação. Em agradecimento ao anfitrião, Getúlio o desbancou, justamente no golpe de 1930. (3)
Brasilianistas que se detiveram sobre a performance de Gegê informam: “Ele fez uma poderosa e adaptável mistura política. Atuou dentro do lema positivista do Brasil: 'Ordem e Progresso'." (4)
O inspirador
“O Príncipe” sabia-se de cor. São inúmeros os testemunhos; vale a pena rever amostras: “Ainda com Maquiavel, defino outro traço da mentalidade política do Presidente Getúlio: o desejo de ser temido, sem deixar de ser amado.” (5)
“Getúlio era um fiel discípulo do secretário florentino, daquele que Gioberti considera o “Galileu da política” e Emil Ludwig chama de 'instrutor dos ditadores'.” (6)
Octávio de Faria exultava em seu Machiavel e o Brasil:
Paremos um momento e detenhamo-nos ante a figura de um homem que Maquiavel parece ter previsto e que teria saudado, Mussolini, indivíduo de exceção que o Brasil precisava ter produzido para si ou ter a possibilidade de criar, de modo a poder dirigir-se amanhã para rumos menos negros. Mussolini é em traços gerais o homem com quem Maquiavel sonhou. (7)
Ele atingia o intento:“E sei, por testemunho de Augusto Frederico Schmidt, via Oswaldo Aranha, que Getúlio Vargas leu e teceu comentários à margem de 'Machiavel e o Brasil', encontrando-se, evidentemente, na figura desse chefe carismático idealizado, a imagem, certa ou errada, de Benito Mussolini”. (8)
“Seu exasperados inimigos rotularam-no de maquiavélico.* * Essa denominação era exata; Getúlio também a teria achado lisonjeira. Na morte como na vida os atos de Getúlio foram cuidadosamente calculados para produzir o máximo efeito político”. (9)
O Presidente Tancredo Neves, também ex-colaborador, tentou arrumar a defesa, mas confirmou a predileção pelo tíbio estilo florentino:
Muitas vezes, quando ele tinha que adotar processos que o levassem a ser considerado maquiavélico, era em função da permanência desses objetivos. De maneira que é perfeitamente compreensível que, na luta pelos objetivos maiores, ele tivesse que, muitas vezes, abandonar o amigo de ontem pelo inimigo rancoroso, porque isso era necessário. (10)
Essas mudanças foram vistas, em requintada ironia, por Assis Chateaubriand:
Outra das suas armas políticas prediletas era a apatia pela sorte dos amigos. O amigo é, em política, uma calamidade, ao lado de uma complicação dos mil demônios. Para manobrar seguro em política é indispensável organizar entreveros de amigos e inimigos, o chefe extraindo os sucos de um desgaste, que de certos amgos é até bom, porque os torna mais habitáveis. (11)
A Revista Manchete publicou forte entrevista com o mais notável tributarista brasileiro. O prof. Aliomar Baleeiro disparou:
Que fez ele? Inaugurou, no Brasil, o tipo do ditador paraguaio. Reduziu as construções ferroviárias a zero. Suprimiu todas as liberdades e garantias. Anulou, por Decreto, decisões do Supremo Tribunal. Matou a manifestação de pensamento, oprimiu e corrompeu a imprensa. Nenhum outro homem, na história do Brasil, causou tanta morte, viuvez, orfandade, prisões, exílio, sofrimento. Nenhum outro homem, em todos os tempos, neste país, responde por tantas dificuldades de vida, descrédito nacional, negociatas e desesperos. Poderíamos inverter as palavras do grego e dizer: Nunca ninguém fez sofrer tanto aos seus concidadãos. (12)-

Algumas conseqüências
Depois de Baleeiro pronunciar estas palavras, Getúlio Vargas deu cabo de sua própria vida, “para entrar na história”, mote inserido posteriormente em suspeita Carta-Testamento, única manifestação pré-suicídio completada por datilógrafo.
Baleeiro voltou à carga, contundente como poucas:
Para entrar na história, o Presidente Vargas não necessitava dum ato que poderia ser louvável no quadro da decadência romana, quando o praticavam Brutus, Nero, Catão de Utica e tantos outros, que desencadearam guerras civis e nelas se perderam. Na História já estava ele, bem ou mal. Ela lhe fará a justiça que merecer por sua personalidade enigmática e controversa, quando se esvaziarem centenas de arquivos e abrirem os lábios, serenados ou desobrigados pela ação calmante do tempo, os detentores de segredos dos quais poucos suspeitam. (13)
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Notas
* Cit. Freire Jr, Olival, Bohm, Einstein e a Ciência no Brasil, Revista Ciência Hoje, v. 15, n. 90, p. 44/47; também em Moreira, Ildeu de Castro e Videira, Antonio Augusto Passos Organizadores, Einstein e o Brasil, p. 267/268. Grande amigo de Einstein, David Bohm foi um dos baluartes da Teoria Quântica. Nasceu na Pensilvânia de 1917, para falecer recentemente, em 1992. Esteve no Brasil, para trabalhar na USP, entre 52 e 54, aqui presenciando o “festival da maracutaia” e desrespeito à ciência. Decepcionado, enviou esta carta à sua comunidade, uma beleza para compor nosso conceito no exterior.
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**O termo maquiavélico é analisado por vários autores. Lauro Escorel alertou para o fato de que há dois significados possíveis para a expressão. Tanto pode ser denominada vulgar, quando relacionada diretamente a Maquiavel, como também pode fazer alusões a estratégias políticas. A expressão maquiavélico recebeu o acréscimo de definições como “astuto” e “ardiloso”, denotando a presença de má-fé ou, então, pelo menos, de as pessoas serem desprovidas de boa fé. No âmbito mais popular, entretanto, passou a ser considerado como “diabólico”. ESCOREL, L. Introdução ao pensamento de Maquiavel. Brasília: Editora UnB, 1979; BATH, S. Maquiavelismo: a prática política segundo Nicolau Maquiavel. São Paulo: Ática, 1992. p. 07; MEGALE, J. O Príncipe de Maquiavel: roteiro de leitura. São Paulo: Ática, 1993; HEBECHE, L. A Guerra de Maquiavel. Ijuí:Unijuí Editora, 1998. http://www.historia.uff.br/cantareira/mat/art9.htm
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1. Lacerda, Carlos, Rosas e Pedras do Meu Caminho, Revista Manchete, Rio de Janeiro, 16/9/1995, p. 45/59.
2. Comte, Augusto, cit. Getúlio Vargas, Acad. Brasileira de Letras, p. 123.
3. Vargas, Getúlio e Comte, Augusto, cits. Jorge, Fernando, p. 266.
4. Bourne, Richard, Getúlio Vargas of Brazil (Sphinx of the Pampas) p. 91, 200/221.
5. Idem; também Reale, Miguel, p. 174.
6. Capanema, Gustavo, Dois Traços Getulianos em Maquiavel, Folha de São Paulo, 21/8/1977.
7. Faria, Octávio, Machiavel e o Brasil, p. 88.
8. Sadek, Maria Tereza Aina, Machiavel, machiavéis: a tragédia octaviana (Estudo sobre o pensamento político de Octávio de Faria), p. 186.
9. Skidmore, Thomas E., Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964), p. 57/60.
10. Neves, Tancredo, Vargas, Getúlio, cits. Mascarenhas, Eduardo, p. 25.
11. Chateaubriand, Assis, cit. Jorge, Fernando, p. 97/98.
12. Baleeiro, Aliomar, Política em preto e branco, Revista Manchete de 20/12/1952.
13. Baleeiro, Aliomar, Os inimigos de Vargas, Revista Manchete, 4/9/1954; cit. Jorge, Fernando, Getúlio Vargas e o seu Tempo: Um retrato com luz e sombra, p. 31.

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