quarta-feira, 27 de agosto de 2008

O embrião positivista

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Quando Maquiavel fala do Estado, pretende falar do máximo poder que se exerce sobre os habitantes de um eterminado território e do aparato de que alguns homens ou grupo se servem para adquiri-lo e conservá-lo. O Estado assim entendido não é o Estado-sociedade mas o Estado-máquina.
Norberto Bobbio*
A razão do positivismo demonstra: o ser humano, se não for ordenado, e sob pena de sanções, nada faz que seja útil; tampouco poderá viver em sociedade. O curioso é que quadrúpedes e insetos desconhecem prescrições; no entanto, logram convivência pacífica, hamônica, não poucas vezes até solidária, e ainda mais, cooperativa, no interior de suas comunidades.  Seríamos  mesmo mais imperfeitos do que os irracionais? Nossa "racionalidade" é tão forte assim?
Herdam-se as leis e os direitos em profusão,
Como uma eterna doença que segue sem parar;
Elas arrastam-se de geração a geração
E se vão suave de lugar para lugar.
Bom senso torna-se bobagem, benefício, tormento.
Mefistótofoles, in Goethe, Fausto: 65
O embrião de fato remonta à antiqüidade. Podemos identificar seu mais remoto esboço no Código de Hamurabi, da Mesopotâmia. Data por volta de 1700 a.C.. Trata-se de uma bula prescrita em rocha de diorito, sobre o qual se dispõem 46 colunas, uma cuneiforme acádica com 281 leis, em 3.600 linhas.
A Lei das Doze Tábuas veio bem depois, na vingança do Império Romano.
Quando a humanidade tomou ciência dos Dez Mandamentos, o Império foi tomado pelo exército da salvação, assim alargando as fronteiras de Roma pelo amor, em vez do terror.

Ao longo do período feudal reinou certa harmonia, na coincidência:
Até o Renascimento, o Ocidente praticamente desconhecia Platão. Mas alguns manuscritos gregos, comprados em Constantinopla, mudaram esse cenário. Entre eles, levados a Florença em meados de 1430, estava nada mais nada menos do que a obra completa de Platão.
(Abrão, B., p. 136.)
Thomas Hobbes importou o instrumento, para ofertá-lo a Crommwell.
A Revolução Gloriosa varreu o embuste de volta ao continente. Já nas costas da Normandie aguardavam grandes herdeiros cartesianos. O êxito da devastação napoleônica fascinou os intelectuais franceses:

'É preciso que o Estado governe em acordo com as regras de ordem essencial', diz Mercier de la Rivière, 'e então deve ser todo-poderoso'. Segundo os economistas, o Estado não deve unicamente comandar a nação, também deve formá-la de uma certa maneira; cabe-lhe moldar o próprio espírito dos cidadãos, enchê-lo com certas idéias e fornecer ao seu coração certos sentimentos que julga necessário. Na realidade, não existem limites aos seus direitos nem ao que pode fazer; não reforma simplesmente os homens, quer transformá-los; talvez, se o quisesse, poderia fabricar outros! 'O Estado faz dos homens tudo o que quer', diz Bodeau. Esta frase resume todas suas teorias.
(Tocqueville, A, O Antigo Regime e a Revolução, p. 157)
A tanto, pois, mister que o Estado tudo possa; e o cidadão, nada, nada na poça.
Depois de agarrar cada membro da comunidade para moldá-lo conforme a sua vontade, o poder supremo estende seus braços por sobre toda ela. Cobre a superfície da sociedade com uma teia de normas complicadas, diminutas e uniformes, através das quais as mentes mais brilhantes e as personalidades mais fortes não podem penetrar, para sobressaírem no meio da multidão. A vontade do homem não é destruída, mas amolecida, dobrada, guiada; os homens raramente são forçados a agir, mas constantemente impedidos de atuar; tal poder não destrói, mas previne a existência; ele não tiraniza, mas comprime, enerva, ofusca e estupefaz um povo, até que cada nação seja reduzida a nada além de um rebanho de animais tímidos e trabalhadores, cujo pastor é o govêrno:
O movimento do Estado moderno tem por ponto de partida o desejo de o príncipe expropriar os poderes 'privados' independentes que, a par do seu, detém força administrativa, isto é, todos os proprietários de meios de gestão, de recursos financeiros, de instrumentos militares e de quaisquer espécies de bens suscetíveis de utilização para fins de carácter político.
(Weber, Max, Ciência e Política, duas vocações, p. 61.)

O mau tom de Newton
As premissas firmadas desde Copérnico, Galileu, Bacon e principalmente Descartes, continuavam sugerindo e demonstrando que, com alguma informação, seria possível identificar o pretérito, e, a partir daí, determinar o futuro:
“A mecânica de Newton promete um poder de previsão vastíssimo que faz com que um instante forneça todas as informações possíveis sobre o passado e o futuro do Universo.” (Coveney, Peter e Highfield, Roger, p. 24)
A moda, pois, requeria “newtons” em todas as áreas.
Aos aspirantes e titulares políticos a ciência vinha a calhar. Suas ações poderiam ser coloridas por crivo cientifico, portanto, obrigatoriamente aceitas.
A sociedade, a massa, também haveria de ser aquela expressão do relógio, em movimento homogêneo, linear, geométrico, euclidiano, cartesiano, exato e hierárquico. Variariam, apenas, intensidades. Todos os fenômenos, no diagnóstico do maior dos cientistas, “deveriam ter também uma explicação racional no sentido da mecânica”. Também uma ordem exata. (Não se imaginava que nem o relógio, por depender da velocidade e da posição geográfica em que se encontra, tem um movimento homogêneo, exato, linear, de compasso constante: as horas, a bordo de um foguete, passam mais devagar. No Equador, o relógio é mais lento do que nos pólos.)
O resultado não poderia ser mais desastroso:
O homem ocidental civilizado vive num mundo que gira de acordo com os símbolos mecânicos e matemáticos das horas marcadas pelo relógio. É ele que vai determinar seus movimentos e dificultar suas ações. O relógio transformou o tempo, transformando-o de um processo natural em uma mercadoria que pode ser comprada, vendida e medida como um sabonete ou um punhado de passas- de-uva. E pelo simples fato de que, se não hovesse um meio para marcar as horas com exatidão, o capitalismo industrial nunca poderia ter se desenvolvido, nem teria contnuado a explorar os trabalhadores, o relógio representa um elemento de ditadura mecânica na vida do homem moderno, mais poderoso do que qualquer outro explorador isolado ou do que qualquer outra máquina. (Woodcock, George, A ditadura do relógio, In A rejeição da política, 1972.)
O surfista
ISIDORE AUGUSTE FRANÇOIS XAVIER COMTE (Montpellier, 19 de janeiro de 1798Paris, 5 de setembro de 1857) pegou carona na onda. No Cartório da Carochinha o arauto lavrou registro: "pai" da Sociologia e fundador do Positivismo. Não há testemunhas; apenas crentes. Comte foi, de fato, padrasto; mas, antes de tudo, apenas mais um charlatão:
Assim como Newton formulou as leis fundamentais da realidade física, os filósofos e sociólogos, viajando na sua esteira, esperavam descobrir os axiomas e princípios básicos da vida social. Seu universal maquinismo de relógio converteu-se em modelo a partir do qual comparava-se o Estado com um mecanismo preciso, sujeito a leis, e retratavam-se os seres humanos qual máquinas viventes.
(Zohar, D., 2000, p. 23.)
A previsão racionalmente matematizada requeria apenas um simplório exame dos mecanismos percebidos como indutores do comportamento social. No conto de Comte a “função positivista” consiste em “descobrir”, de certa maneira “criar” leis de sucessão, coincidências elencadas da física e da biologia, analogias históricas, traduções (subjetiva, obviamente) de experiências e empirismos elaborados a partir da ordem hierárquica arranjada, enquadrante da Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia. Comte ainda identificou esta última com a Psicologia:
“As quatro ciências fundamentais que a inspiração positivista, evolucionista e pragmatista do séc. XIX aponta como classificação inabalável são a Físico-Química; a Biologia; a Psicologia e a Sociologia”. (Alquié, Ferdinand, Russo, F., Beaude, Joseph, Tonnelat, M.A., Costabel, Pierre, Polin, Raimond, Galileu, Descartes e o Mecanismo, p. 26.)
"A psicologia seria uma ciência positiva como as demais, capaz de reger a moral e a política." (Soares, M.P., p. 26.)

A socio logia encerrou o desatino com o paradogma de Max Weber (1864-1920) (Ciência e política: duas vocações, p. 30), na ilação clonada do admirado Bacon:
“Podemos dominar tudo por meio da previsão. Equivale isso a despojar de magia o mundo.”
* * *
Onde mais poderia Comte colher os temperos para à poção mágica que propunha, este transplante forçado da física mecanicista, de modo a nos tranformar em meros autômatos , desprovidos de paixões e sentimentos, necessariamente pacientes desse azeite vendido como pastoral, como Religião da Humanidade?
Nem precisava sair de casa. Descartes já tinha dados as cartas, e Rousseau a distribuíra. Demão entrou o patrício Claude Henri de Saint-Simon (1760-1825) que na manga já trazia alguns coringas de face ariana.
Sartre (1978: 114) bem identificou o liame:
É assim que o cartesianismo, no século, XVIII, aparece sob dois aspectos indissolúveis e complementares: de um lado, como Idéia da Razão, como método analítico, inspira Holbach, Helvetius, Diderot, o próprio Rousseau; é ele que encontramos na fonte dos panfletos anti-religiosos assim como na origem do materialismo mecanicista.
Por sorte, ou destino, ao escrever Memórias Sobre a Ciência do Homem (1813-1816), Sistema Industrial (1821-1823) e Novo Cristianismo (1825), Claude requisitou os préstimos deste estagiário de incomensurável talento, nosso Auguste Comte, o Pai do Positivismo, (Hugon, P., p. 227.).
Na ocasião, ele era apenas filho. Seu patrão é quem fora pioneiro em se autodenominar Físico Social.
Pela Memoire sur la science de l’homme, o mais velho “físico social” afirmava orgulhoso, como Bacon, que seu estudo desprezava conjeturas filosóficas. No afã de tapear, não titubeou se valer da mesma assertiva que animou o carrasco da natureza:
“A sociedade não tem por objetivo dominar os homens, mas a Natureza”. (Oeuvres, vol V, 1966, cit. Japiassú, Nascimento e Morte das Ciências Humanas, p. 114.)
Seria mais um mero inescrupuloso? Um bufão? Um mentiroso? Talvez "apenas" demagogo? Ou um equivocado pela penumbra do tempo? Como qualificá-lo? Investiguemos melhor a pantomima.
A julgar por seus escritos, da natureza pouco lhe importava, ao contrário: pela vez primeira se passava a considerar a política como "ciência da produção." Evidentemente que as pessoas de naturais passavam vistas pelo avô impostor como peças de uma engrenagem, objetos de seu próprio domínio. Mister, pois, um corpo de "sábios calculistas" (de novo Platão!) regentes a regular o funcionamento da estupenda maquinaria do Estado, porque conhecedores das “leis físicas”:
“A visão sain-simoniana do futuro, que ajudou a inspirar o socialismo, considerava que a vida política passaria a ser dirigida por peritos – neste caso cientistas e engenheiros.” (Giddens, A., p. 111.)
O padrão racional de conduta deveria ser pautado pela simples aritmética - o maior bem para o maior número. Quem a isso se opusesse taxava-se egoísta, devendo sofrer a marginalização e o descaso por possuir a idéia errônea sobre as causas da felicidade. Como disse Goytisolo, (p. 61) “pouco a pouco, se substitui a natureza “natural” por uma natureza de laboratório e de fábrica, que o homem conhece “porque é sua obra”.
O homem, integrante desta natureza, com ela, era esterelizado. Mostrava Saint-Simon os males da conduta “explorativa” ao povo, ao tempo em que.a.“moralidade” tornava-se o grande “problema", do legislador. Eis a justificativa às atuações de Cavour, Bismarck, Lênin, Stálin, Roosevelt, Mussolini, Hitler, Franco, Salazar, e nosso prosaico Gegê, ao infortúnio da gente:
A evolução da elite política brasileira no sentido de uma tendência abertamente fascista, com o Estado Novo, não poderia ter ocorrido sem trabalho prévio, ao longo de várias décadas, seja do castilhismo, no meio político, seja do positivismo, no meio militar. A base comum que possibilitou o trânsito de uma a outra das posições pode ser apreendida na análise de uma obra que expressa melhor que qualquer outra essa evolução: o Estado Nacional de Francisco Campes (1891/1968).
PAIM, Antônio
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