sexta-feira, 15 de agosto de 2008

O DNA platônico-cartesiano dos partidos* políticos

No Princípio Deus criou o Céu e a Terra. A Terra, porém, estava informe, e vazia e as trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre as águas. E Deus disse: Exista a luz. E a luz existiu. E Deus viu que a luz era boa; e separou a luz das trevas. E chamou a luz de dia, e as trevas noite. E fez-se tarde e manhã: o primeiro dia.
Genesis s
Após Deus completar a obra, na segunda-feira foram os rebentos que partiram a tudo partir. Dessarte entre gregos e troianos, gauleses e romanos, a civilização vem se enganando. Na ribalta resplandecem poucos atores. Na ágora, todos os povos.
Com efeito, quase todos os vícios, quase todos os erros, quase todos os preconceitos funestos que acabo de pintar deveram seu aparecimento, ou sua duração, ou seu desenvolvimento à arte da maioria de nossos reis de dividir os homens para governá-los mais absolutamente! TOCQUEVILLE, A., 1997, cap. XII: 139
PLATÃO apregoava uma composição bipolar ao Universo, em especial ao ser humano, flagrante nas distinções de masculino-feminino, corpo e alma. SÓCRATES errara em preferir o rumo sem volta, atrás de um amor platônico, em detrimento do seu presente. Não sei bem quem seria o feminino neste romance, mas cogito que PLATÃO o fosse, ou os dois, quem sabe, em rodízio. O certo é que esta dualidade se resolvia pela síntese física, mas a olímpica disputa entre o corpo e alma somente  se extingue no estádio metafísico.
Como seu mestre Sócrates, Platão busca descobrir as verdades essenciais das coisas. A alma humana enquanto perfeita participa do mundo perfeito das idéias, porém este formalismo só é reconhecível na experiência sensível... Também o conhecimento tinha fins morais, isto é, levar o homem à bondade e à felicidade. A obtenção do autoconhecimento era um caminho árduo e metódico. Wikipédia
Para Platão, (Timeu. 26a) a ordem e a beleza que vemos no Cosmo resulta de uma intervenção racional, intencional e benigna de um divino artesão, um 'demiurgo' (gr. δημιουργός), que impôs uma ordem matemática a um caos preexistente e, assim, produziu um Universo divinamente organizado, a partir de um modelo eterno e imutável
Diz-se, então, que a Filosofia nasceu neste reduto, através de seus principais artífices: Tales, Pitágoras, Parmênides, Sócrates, o pupilo, e Aristóteles. Não é verdade. O esteio remontava à já milenar civilização asiática. Lao-Tzè, Confúcio, e Buda, ou Sidharta. loram precursores, para não falar dos egípcios. Com certeza influenciaram as concepções de Leocipo e Demócrito, eclipsados mentores do átomo. A dupla de ouro da Filosofia tratou de subverter os alísios orientais para incrementar as circunstâncias vividas, especialmente queridas. Demócrito assim lamentou: "Eu até estive em Athenas, mas ninguém tomou conhecimento de mim." 
Diz-se que Rousseau tipificou, e a Revolução Francesa. realizou os desejos do povo pela democracia e pelos direitos do homem, Não é verdade. A Inglaterra efetuara o câmbio com século de antecedência, e. sem derramar uma gota de sangue Os franceses demoraram para aprender a lição, e o genebrino ainda escreveu o tema desvirtuado. Diz-se, para completar, que os francos criaram os primeiros partidos, um sentado à esquerda, outro a direita. A pergunta que se impõe de imediato é a seguinte:esquerda ou direita do quê, ou de quem, mesmo?
Raiz quadrada
Na derrocada do Império Romano a Europa preferiu a concepção mais humanista de Aristóteles, mas no caminho oriental Constantino arrumou jeito de preservar o script de Platão, e tratou de turbiná-lo.  A verdade anunciada em Constantinopla punha o homem, "feito a imagem e semelhança de Deus", no lugar primordial da atenção divina: o centro do Universo. O mundo fora criado para o homem, e jamais poderia se cogitar fôssemos apenas um grão perdido em um canto de uma entre sei-lá quantas galáxias. Quando caiu a cidadela, o vírus se espalhou pela Europa.
Até o Renascimento, o Ocidente praticamente desconhecia Platão. Mas alguns manuscritos gregos, comprados em Constantinopla, mudaram esse cenário. Entre eles, levados a Florença em meados de 1430, estava nada mais nada menos do que a obra completa de Platão. ABRÃO, B.:136
O governo Cosme de Medici montava a Academia Florentina. "Esta instituição favoreceu Platão, frente às universidades estabelecidas." (RUSSELL, B., 2001: 247) Não sei da existênciade tantas universidades assim, mesmo porque Gutemberg recém estreava, mas o fato vinha ao gáudio de Maquiavel: "A região do mundo colhia, pelo menos parcialmente, a herança grega, e a combinara com a visão da natureza e a vocação do homem trazida pela tradição judaico-cristã." (LADRIÈRE, Les enjeux de la racionalitè, 1977)  O “escultor e pai do universo” havia colocado tudo aos nossos pés. "Para isentar a si próprio de qualquer culpa por futura ruindade, .o Grande Relojoeiro deixara tudo bem arranjado.
Tanto o platonismo quanto o cristianismo distanciam os seres humanos do meio que os rodeia. A natureza e a experiência eram encaradas como o mundo das modificações perturbadoras, o mundo do erro e do caos. Para o cristianismo, a dúvida e a incerteza são obra do diabo. ZOHAR, D., O Ser Quântico: 188.
Padre Copérnico (cit. CHÂTELET, F.: 49) revendeu o bilhete composto na caverna grega:
E no meio repousa o Sol. Com efeito, quem poderia no templo esplêndido colocar essa luminária num melhor lugar do que aquele donde pode iluminar tudo ao mesmo tempo? Em verdade, não foi impropriamente que alguns lhe chamaram a pupila do mundo, outros o Espírito, outros ainda o seu reitor.
Galileu estreitou o liame com “pecado original”: “Não tenho dificuldades para admitir, identificando o platonismo com matematicismo, o caráter platônico da ciência galileana.” (GEYMONET: 42) Useiro crítico de Aristóteles, não por coincidência nascido na região de Maquiavel, Galileu mostrava a certeza dos cálculos, a “revanche de Platão”. (JAPIASSÚ, H., 1997: 81) O racionalismo legitimava a onipotência divina. Caberia ao homem, agora, rastrear as charadas, feitas em forma de perfeita matemática. O môfo resgatado contaminou a humanidade:"Trata-se de uma revolução que, além de derrubar a ditadura de Aristóteles, arruína completamente, através da luneta astronômica, o dogma da incorruptibilidade dos corpos celestes." (Idem : 58) O câmbio paradigmático restringiu a ciência; e subverteu a democracia:
O método de Aristóteles era qualitativo. Recusando as idéias pitagóricas sobre a importância da matemática, ele não se deu nenhum conteúdo numérico preciso a suas explicações e se concentrou unicamente na interpretação conceitual dos fenômenos, em particular nas causas da mudança, a própria ausência de mudança não lhe parecendo exigir explicação particular. BEN-DOV : 15
Astrônomos e todos adotamos o mico:
Seja qual for, de resto, a validade desta tese geral ela é verdadeira para o século XVI. Que tudo abalou, tudo destruiu: a unidade política, religiosa, espiritual da Europa; a certeza da ciência e a da fé; a autoridade da Bíblia e a de Aristóteles; o prestígio da Igreja e o do Estado. KOYRÉ, 1986: 25
A má temática
No tempo daqueles artífices a vela era rainha da noite, e a fé permanecia iluminando os pobres mortais, malgrado o enterro da presunção geocêntrica. Quando a vela caia, e incendiava tudo, nada era culpa de Deus. Ele não tapeia suas criaturas. Os equívocos advém do “gênio mau”, “manhoso e enganador”, sempre empenhado no seu papel, o diabo caricaturado na Meditação Primeira, de Descartes, meditação deveras primária. Como o Grande Relojoeiro fizera tudo com maestria, cabia ao homem a desmontagem, a descobrir seus segredos. Para Descartes poderíamos decifrar a charada, desde que "desde que atento ao Grande Projeto, e não nos deixássemos cair no erro". "O erro, o Mal entra pelo corpo, transforma o divino Bem da alma", e isso já ensinara Platão. (Cit. KELSEN, 1998: 3)  “A terra, ou seja, a matéria, é contraposta à verdadeira natureza da alma, quer dizer, ao seu ‘ser boa’. A matéria representa o mal.”
Tornado em Regras para Direção do Espírito*, lá se foi o trem à direção riscada. "Não é um simples acaso que a idéia cartesiana de Deus como legislador do universo se desenvolva somente quarenta anos depois da teoria da soberania de Jean Bodin".(ZILSEI, E., The sociological roote of science, The American Journal of Sociology) A má tese, ou a má temática, a "quantofrenia", conforme Sorokin, ou a "aritmomania", como diz Georgescu-Roegens, coroou o homo faber tal homo mathematicus. O universo-máquina, que ainda tinha alma, passou a ser ‘um vasto sistema matemático de matéria em movimento’, um ‘universo material (onde) tudo funciona mecanicamente, segundo as leis matemáticas.’
A engenharia política
Hobbes, que havia freqüentado assiduamente a corte fazendo-se passar por matemático (mesmo que pouco soubesse dessa disciplina) se desgostou ali, regressou à Inglaterra nos tempos de Cromwell e publicou uma obra muito malvada, de título muito raro: The Leviathan. Sua tese principal era de que todos os homens atuam devido a uma necessidade absoluta, tese apoiada, aparentemente, pela doutrina dos decretos absolutos, doutrina de geral aceitação nesses tempos. Sustentava que o interesse e o mêdo eram os princípios fundamentais da sociedade. BRETT, R. L., La Filosofia de Shaftesbury y la estetica literaria del Siglo XVIII: 14
Sócrates ensinou Platão (Fédon, 66) e o mundo a pensar, antes de tudo, em si mesmo. "Porque todas as guerras nascem do desejo de adquirir haveres e bens. E haveres e bens somos forçados a adquirir por causa do corpo, cujas exigências devem ser satisfeitas." Nada de novo se apura no front:
O que impulsionou o autor de O Capital a decretar ‘uma verdadeira capitulação da liberdade face à necessidade foi a ambição de erguer a sua ‘ciência’ ao nível da ciência natural, cuja categoria fundamental era ainda a necessidade. ARENDT, A., On Revolution, 1963, cit. GIORELLO: 243)
Wilson de Lima Bastos (p. 173) possui a ficha de Thomas Hobbes, pai do Leviathan e articulador da primeira grande divisão social: “Sucessor de Bacon, sofreu influência da filosofia matemática de Descartes e afirmava que toda a substância é corpórea e todos os fenômenos se reduzem a movimentos. Foi adepto da moral utilitarista.”
Dessa matematização do saber científico, na qual não se pode deixar de ver uma plena adesão ao clima cultural do século de Descartes, deve participar – segundo Hobbes – também a ciência política, ou, como ele a chama, pela falta de distinção entre a ciência e a filosofia, a filosofia civil. BOBBIO, N., Thomas Hobbes: 76
Se para Jean-Baptiste Rousseau (cit. BRETT, R. L.: 12) a filosofia de Descartes cortara o pescoço da poesia, a filosofia de Hobbes “foi pior ainda”:
Para ambos a tarefa da filosofia foi de reduzir tantos fenômenos como fora possível a um sistema de explicações baseado nas leis de movimento. Para Hobbes, Deus não era mais do que o primeiro motor, o primeiro passo de uma cadeia causal que uma vez em movimento não necessitava maior ajuda.
O essencial para Hobbes não era a desmistificacão do poder, mas antes a representação da ordem política como um gigantesco autômata, que autorizaria a intervenção de técnicos qualificados. Governantes sensatos, inspirados pela razão científica, poderiam modificar o curso da vida social num sentido favorável a maioria dos interessados. BASTOS, Wilson de Lima: 173.
A tanto nada mais exato do que a matemática, a geometria, aquela que ele mesmo diz ser “a única ciência que até agora Deus quis presentear o gênero humano cujas conclusões tornaram-se atualmente indiscutíveis.” (BOBBIO, N;, Thomas Hobbes: 29)
No modelo proposto por Descartes e seguido por Hobbes, a geometria era a única ciência que Deus houve por bem até hoje conceder à humanidade. Retomava-se Galileu, para que a língua da natureza era a matemática. O pensamento moderno é assim marcado por este ritual do pensamento a que logo se opôs Pascal com o chamado esprit de finesse. A matematização do universo desenvolve-se com Newton e atinge as suas culminâncias em Comte. Nos Estatutos pombalinos da Universidade, determinou-se expressamente que os professores usassem do e.g. para poder discorrer com ordem, precisão, certeza. Respublica, JAM
O protótipo social-mecanicista veio no Short Tract on First Principles, de 1630 (cit. ALQUIÉ, F.: 75) “À maneira de Descartes, mas antes de Descartes, conforme prova claramente esta obra, ele concebe o mundo nos termos de um estrito mecanismo, em termos de movimentos que caracterizam corpos definidos pela sua extensão e forma.”
Em 1651 Hobbes apresentou o resultado dos mirabolantes cálculos, intitulado The LeviathanEm fins do mesmo ano, consagrar-se-ia pioneiro da sociologia positivista, ao galante de Cromwell: “De volta à Inglaterra, tornou-se um dos precursores do materialismo positivista, considerando a filosofia como uma espécie de matemática, que soma, subtrai, combina e separa as coisas suscetíveis dessas operações.” (BOBBIO, N., Thomas Hobbes: 76)
Até mesmo Engels (Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico: 9) pode reconhecer suas raízes:
Hobbes sistematiza o materialismo de Bacon. A sensoriedade perde seu brilho e converte-se na sensoriedade abstrata do geômetra. O movimento físico sacrifica-se ao movimento mecânico ou matemático, a geometria é proclamada à ciência fundamental.
A bandeira do altruísmo social, protótipo da ética geométrica, (!?) sensibilizaria gerações, formaria incontáveis partidos s"sociais" graças ao mais ferrenho defensor do “utilitarismo”, o também britânico Jeremy Bentham, Bentham, J.. (cit. BOBBIO N.; CARDIM, C.H.: 128) "incansável e infeliz autor de projetos legislativos que deveriam instaurar o reino da felicidade sobre a terra."
Stuart Mill (cit. idem,  Democracia e Liberalismo: 71) igualmente viu na cisão uma oportunidade de ascender ao galardão. Sofria, claramente, da moléstia platônico-cartesiana-hegeliana-malthusiana-darwineana:
Nenhuma comunidade jamais conseguiu progredir senão aquelas em que se desenvolveu um conflito entre o poder mais forte e alguns poderes rivais; entre as autoridades espirituais e as temporais; entre as classes militares ou territoriais e as trabalhadoras; entre o rei e o povo; entre ortodoxos e os reformadores religiosos.
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A culpa inicial cabe a Descartes. Ele foi o primeiro a negar a sabedoria inconsciente, persuadindo-nos de que só o que era demonstrável, era verdadeiro. Rousseau substituiu-o, imaginando que não havia leis fora das desejadas pelo homem. Finalmente veio Augusto Comte, que instalou de vez a universidade no positivismo, fez as ciências humanas oscilarem para a sociologia e eliminou todo o ensinamento sério da economia. SORMAN, Guy
"Depois de ter percorrido o círculo estreito do seu vão saber, é necessário acabar por onde Descartes começara. Eu penso, logo existo. Eis tudo o que sabemos". (ROUSSEAU)  Por tudo Miguel Reale (1998: 161) rotula o genebrino: “o Descartes da política.” Rousseau era mesmo coerente com o pensamento do pretensioso patrício: "Este pensador peculiar - embora freqüentemente considerado irracionalista ou romântico - também se apoiou no pensamento cartesiano e dele dependeu fundamentalmente." (HAYEK,  1995: 74) Sartre (1978: 114) bem identificou o liame:
É assim que o cartesianismo, no século, XVIII, aparece sob dois aspectos indissolúveis e complementares: de um lado, como Idéia da Razão, como método analítico, inspira Holbach, Helvetius, Diderot, o próprio Rousseau; é ele que encontramos na fonte dos panfletos anti-religiosos assim como na origem do materialismo mecanicista.
O que estou tentando mostrar é que a ciência, por causa do seu método e de seus conceitos, projetou um universo no qual o domínio da natureza ficou ligado ao domínio do homem e que ela favoreceu esse universo – e esse traço de união tende a tornar-se fatal para esse universo e seu conjunto. MARCUSE, Herbert, Uma ciência sem domínio?; P. Seuil, 1970; cit. CHRÉTIEN: 212
A pretensa da vontade da maioria

Não se pode negar que, enquanto massa de indivíduos de diferentes níveis econômicos e culturais, o povo não tem uma vontade uniforme, que somente o indivíduo tem uma vontade real, que a chamada 'vontade do povo' é uma figura de retórica e não uma realidade. HANS KELSEN 
O mundo, todavia, e todo conhecimento, seriam novamente fracionados. A  civilização haveria de ser dividida, colocados em opostos, influência de Hegel,,-na justificativa de se apurar a sintética perfeição. O método dialético se punha depurativo; no entanto, sabe-se muito ladino:
Cada partido compreende o que interessa à própria conservação não permitir que se esgote o partido concorrente. Tem mais necessidade de inimigos do que de amigos: só pelo contraste é que ele começa a se sentir necessário, a tornar-se necessário. NIETZSCHE, F., Crepúsculo dos Ídolos: 39
  Mas quem não almeja vender cientificidade?

A ideologia chega ao seu ponto máximo quando coloca o direito como instrumento acionado por uma 'vontade', a da maioria, através de seus ‘representantes’ - de ‘legisladores racionais.’ Jamais se questiona se os ‘representantes’ não estariam sujeitos as conveniências políticas. COELHO, L.F.: 341
Eis a receita de todas as tiranias e ditaduras: "Através da vontade geral, o povo-rei coincide, miticamente, de agora em diante, com o poder; essa crença é a matriz do totalitarismo." (COCHIN, A. cit. FURET, 1989: 191)
Thomas Hobbes encostou, mas foi mesmo Rousseau quem melhor assimilou o método platônico-cartesiano, e o transplantou à sua realidade, com vistas a transformá-la a seu bel-prazer: “Até mesmo o cidadão que Rousseau fizera rei na ordem política, como titular de um poder soberano e inalienável, acabou se alienando no partido ou no grupo, a que vinculou seus interesses.” (BONAVIDES, P. :217)
Tolstói pode explicar: “Mas a verdade é que não só nos países autocráticos, como naqueles supostamente mais livres - como a Inglaterra, a América, a França e outros - as leis não foram feitas para atender a vontade da maioria, mas sim a vontade daqueles que detêm o poder.” (A Escravidão de nosso tempo, (1900), cit. WOODCOCK, G.: 106) A trapaça vara o EspaçoTempo: “O homem no estado natural de Rousseau se tornou, no século XIX, o ‘povo’ de Mazzini e o ‘proletariado’ de Marx. “ (ROSSELLI: 118)
A humanidade contabiliza enorme gama de perdas irrecuperáveis, malgrado a compreensão e o reconforto do grande Werner Heisenberg (cit. CAPRA, Fritjof, Sabedoria Incomum, Conversas com pessoas notáveis: 16), há algumas décadas atrás: “A cisão cartesiana penetrou fundo na mente humana nos três séculos após Descartes e levará muito tempo para ser substituída por uma atitude realmente diferente diante do problema da realidade.”
A Teoria dos Três Poderes até fizera algum sucesso, mas se prejudicava por lastreada na ética aristotélica, um sistema já suplantado a partir de Maquiavel; e os franceses assim foram enrolados:
Nenhum de nós pertence a tal ou qual Departamento, pois pertence a França inteira.Pretende-se que há favoráveis a fragmentação da França; façamos que estas idéias absurdas desapareçam, condenando seus autores a pena de morte. A França deve ser um todo indivisível. Exijo pena de morte contra quem gostaria de ver destruída a unidade da França. DANTON, Jacques, Discurso na Convenção de 25 de setembro de 1792; Danton, Discours choisis, Jouvre et Ditisheim, p. 102; cit. GUSDORF
A Revolução necessitava da dialética de Platão, Descartes e Rousseau:
Na França, desde 1789, ou se era vermelho ou branco, padre ou leigo, burguês ou socialista, reacionário ou progressista. E entre os dois grupos inimigos, as pessoas se estripavam, cortavam-se em pedacinhos, insultavam-se, desprezavam-se. GILES LAPOUGE.

Essa contradição de idéias reproduziu-se, infelizmente, na realidade dos fatos na França. E, apesar de o povo francês ter-se adiantado mais do que os outros na conquista de seus direitos, ou melhor dito, de suas garantias políticas, nem por isso deixou de permanecer como o povo mais governado, mais dirigido, mais administrado, mais submetido, mais sujeito a imposições e mais explorado de toda a Europa. GUSDORF, Georges, As revoluções da França e da América: 59


A Constituição Francesa de 1791 proclamou uma série de direitos, ao passo ‘que nunca houve um período registrado nos anais da humanidade em que cada um desses direitos tivesse sido tão pouco assegurado - pode-se quase dizer completamente inexistente - como no ápice da Revolução Francesa.’ LEONI: 85
Tocqueville (cit. GOYTISOLO, J.V.: 129) passou toda vida se debatendo:
Quando se estuda a história de nossa Revolução se vê que obedeceu as mesmas idéias que inspiraram tantos livros abstratos acerca do Governo. Nota-se nela a mesma afeição às teorias gerais, aos sistemas completos de legislação e à exata simetria das leis; o mesmo menosprezo pela realidade existente; idêntica confiança na teoria; o mesmo gosto pelo original, pelo engenhoso e pelo novo nas instituições; o mesmo desejo de refazer ao mesmo tempo toda a constituição segundo as regras da lógica e conforme a um plano único, em vez de trata de corrigi-las por partes. Terrível espetáculo. Aborrecem a diversidade, adorariam a igualdade até a servidão. Querem destruir tudo o que dificulta o alcance de seus desejos. Os contratos lhes inspiram pouco respeito e nenhuma consideração os direitos privados: falando com propriedade, não existem para eles direitos privados, mas somente a 'utilidade pública'. Os economistas sentem pelo passado um desprezo sem limites. Não tratam de destruir o poder absoluto, mas de transformá-lo. Este imenso poder social que os economistas imaginam: não emana diretamente de Deus, nem nasce da tradição: é impessoal. Não se chama rei, mas o Estado e deve fazer com que o direito de cada qual se ajoelhe ante a vontade dos demais.

Faça a conta dos regimes que nos levam a codificar com um gesto nossas paixões do momento. Compensamos nossa inconstância através de visões eternas logo gravadas no mármore. Nossas revoluções passam primeiro pelo tabelião. Conseqüência: quinze Constituições em cento e oitenta se sucederam na França depois da Convenção: Diretório, Consulado, Primeiro Império, Restauração, Cem Dias, Restauração, Monarquia de Julho, II República, Segundo Império, III República, Vichy, de Gaulle, IV República, V República, ufa! MITTERRAND, FRANÇOIS, Aqui e Agora: 90
Daí à Europa, precisamente à Alemanha e à Rússia, bastou atravessar tênue fronteira.
Quando a Prússia e os outros estados germânicos ingressaram no século XIX, encontraram a onda de nacionalismo e as demandas por participação popular estimuladas pela Revolução Francesa. ALMOND, G. e POWELL JR., G.: 197

A filosofia do direito de Hegel foi capaz de funcionar como apologia do Estado prussiano. ‘Assim como não se passeia impunemente por entre palmeiras tampouco se vive impunemente em Berlim,’ diz Karl Rosenkranz. CICERO, A.: 134
Qual a melhor fonte a Coruja de Minerva, criadora do fascismo e do marxismo, de todos os partidos mais ou menos sociais? "Hegel tem Descartes na conta de um herói." (F. Alquié) O notável prussiano (Conferências e escritos filosóficos de Martin Heidegger; Hegel e os gregos: 20) não titubeou contemplar o ídolo:
Como Descartes cruzamos propriamente o umbral de nossa filosofia independente. Aqui, podemos dizer, estamos em casa e podemos, como o navegante após longo périplo por mar proceloso, exclamar ‘terra’
No esteio de Parmênides, Sócrates e Platão Hegel aplica em Differenzschrift. (cit. CÍCERO, A.: 73) "A cisão é a fonte da exigência da filosofia."  Sinceramente, era preferido ter ficado no mar. Wells (t. 3: 97) bem compreendeu:

Ora, é evidente que a maioria dessas declarações fundamentais são afirmações muito discutíveis. Os homens não nascem iguais, nem livres; nascem em uma múltipla diversidade e emaranhados, em uma contextura social antiga e complexa. Nem é nenhum homem convidado a assinar um contrato social ou, não o fazendo, a partir para a solidão. Tais afirmações, literalmente interpretadas, são tão manifestamente falsas que é impossível acreditar que os homens, ao fazê-las, tivessem pretendido tal interpretação estrita e literal. A civilização, como este Escorço o tem demonstrado, surgiu como uma comunidade de obediência e foi, essencialmente, uma comunidade de obediência.


Nem sequer um doutrinário da democracia como Rousseau, com a concepção organicista da volonté générale, princípio tão aplaudido por Hegel, pode forrar-se a essa increpação uma vez que o poder popular assim concebido acabou gerando o despotismo de multidões, o autoritarismo do poder, a ditadura dos ordenamentos políticos. BONAVIDES, P. : 56


No final do século XIX, a principal influência sobre a teoria acadêmica social e econômica era das universidades. A idealização bismarckiana do Estado, com suas funções previdenciárias centralizadas foi devidamente reestudada pelos milhares de ocupantes de postos-chave do meio acadêmico que estudaram em universidades alemãs nas décadas de 1880 e 90. SCHESINGER, ARTHUR M., The Crisis of the Old Order 1919-1933, p. 20; cit. em JOHNSON, P.: 13


Mussolini, Hitler, Mustafá Kemal Pacha, Roosevelt e Salazar. Todos eles para mim são grandes homens, porque querem realizar uma idéia nacional em acordo com as aspirações das coletividades a que pertencem. VARGAS, GETÚLIO, Cit. MONTEIRO, Gen. GOIS, A Revolução de 30 e a Finalidade Política do Exército: 187
Da faina pela igualdade
O que estou tentando mostrar é que a ciência, por causa do seu método e de seus conceitos, projetou um universo no qual o domínio da natureza ficou ligado ao domínio do homem e que ela favoreceu esse universo – e esse traço de união tende a tornar-se fatal para esse universo e seu conjunto. MARCUSE, Herbert, Uma ciência sem domínio?; Points Seuil, 1970; cit. CHRÉTIEN: 212)
Não há igualdade entre os homens, tampouco no reino animal, vegetal, ou até no mineral. Se a procurarmos na teia cósmica, sequer nos anéis de Saturno. Nada há na natureza que seja igual. Ela é evolutiva, ou seja, mutante. A flecha do tempo a distancia de si mesma. Nós mesmos não somos iguais a ontem. Tudo flui, dizia Heráclito. O universo é tecido com a mais estranha diversidade, e a riqueza da Terra aí reside. E no entanto, ardemos de paixão pela justiça, pela igualdade.
Se Kelsen e alguns outros demoraram trinta, os russos necessitaram setenta anos para sair do engôdo. Segundo o camarada Gorbachev (p.36), a Perestroika significa a (re) ascenção do velho paradigma iluminista: “É também extremo respeito pelo indivíduo e consideração pela dignidade pessoal.”
Russell (2001: 283) bem identificou o rastro e o destino do grave equívoco:
Afinal, o rígido determinismo da explicação cartesiana do mundo material, tanto físico como biológico, contribuiu muito para promover o materialismo dos séculos XVIII e XIX, em especial quando associado à física de Newton.
Ao sabujo Engels (p. 19), “o materialismo transferiu-se da Inglaterra para a França onde se encontrou com uma segunda escola materialista de filósofos, que havia surgido do cartesianismo e com a qual se refundiu.”
Na cadência de esquerda e direita, ora ainda marcha a civilização, ao gáudio dos pastores do pasto-verdeo:
Qualquer eleição é uma espécie de jogo, como o de damas ou o gamão, com um ligeiro matiz moral, um jogo com o bem e o mal, com questões morais, e as apostas a acompanham naturalmente. O caráter dos eleitores não é comprometido. Até mesmo votar pelo direito não é fazer alguma coisa por ele. É apenas expressar timidamente aos homens o nosso desejo de que ele prevaleça. Há muito pouca virtude nas ações das massas de homens. THOUREAU, H., cit. Downs: 76
É pior:
Um homem vota em um partido e permanece infeliz; ele conclui que era o outro partido que traria o período de felicidade e prosperidade. No momento em que estivesse desencantado com todos os partidos, já seria um homem idoso, à beira da morte. Seus filhos teriam a mesma crença de sua juventude, e a oscilação contínua. RUSSELL, Bertrand, Ensaios céticos: 121.
No tempo de Russell ainda podia haver alguma alternância. Ora, contudo, não:
Sempre que penso nas alianças e disputas na política libanesas, me lembro do filme 'O Poderoso Chefão'. Inimigos se tornam aliados, antigos amigos passam a se matar e, após inúmeras baixas, todos se sentam à mesa para definir a nova divisão do poder. CHACRA, Gustavo, Diário do Oriente Médio http://blog.estadao.com.br/blog/chacra
O povo? Sempre iludido pelo script traçado na caverna: "Como um meio adequado para a consecução de determinados fins, ensina Platão, é permitido ao governo do Estado ideal servir-se de certas mentiras sadias’." ( KELSEN, 1998: 168)
Torna-se communis opinio que quem detém o poder e deve continuamente resguardar-se de inimigos externos e internos tem o direito de mentir, mais precisamente de ‘simular’, isto é, de não fazer aparecer aquilo que existe, e de ‘dissimular’, isto é, de fazer aparecer aquilo que não existe. BOBBIO, N.: 372
Sob o falso pretexto de defender os interesses do povo, esse gigantesco Leviatã consome a renda da população, gere mal os recursos e fecha a economia do país a seus desejos, inibindo investimentos internos ou externos. Com políticas econômicas frágeis e na maioria das vezes mal formuladas (dado o fraco entendimento dos governantes nesse assunto), o crescimento econômico pode se iniciar acelerado, mas ao longo do tempo mostra-se ineficiente e frágil, fadando o país a um atraso monstruoso em relação a regiões mais democráticas. VASCONCELLOS, Daniel, A ameaça do "Estado-pai", O Globo, 27/8/2010
O comerciante está convencido de que a lógica é a arte de provar à vontade o verdadeiro e o falso; foi ele que inventou a venalidade política, o comércio de consciências, a prostituição dos talentos, a corrupção da imprensa. Sabe encontrar argumentos e advogados para todas as mentiras, todas iniquidades. Somente ele nunca se iludiu sobre o valor dos partidos políticos: julga-os todos igualmente exploráveis, isto é, igualmente absurdos... Ele mente em suas reclamações, mente em suas informações, mente em seus inventários; exagera, atenua, aumenta; ele se considera como o centro do mundo. PROUDHON, P.-J., Filosofia da Miséria, Tomo I: 351.
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Latim: pars, partis = rachado, dividido, desunido, segmentado.




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