Se, nas ciências sociais, o positivismo não tem resistido aos seus críticos, sucumbindo diante de metodologias mais modernas e sofisticadas, em vários outros campos científicos, particularmente nas ciências naturais e administrativas (que têm influência importante nas ciências da saúde), ele tem subsistido a ponto de ainda coincidir com o seu paradigma dominante CAMPOS, G.W. Os médicos e a política de saúde. - São Paulo, Hucitec, 1988 - www.scielosp.org/scielo
A razão da teimosia se deve à dificuldade da verificação empírica no campo nada matemático, e por isso nem um pouco exato, como requer o conceituado GREGORY BATESON, por exemplo. Para ele, nunca poderemos pensar construir uma ciência do conhecimento fora do campo da investigação empírica. O engraçado é que a própria matemática nada tem de empírica; contudo, é assim considerada porque seus dados são irrefutáveis. Mas, dizia, a epistemologia batesoniana pertence à ordem do concreto, do palpável, do sensível. O renomado pesquisador não admite uma fórmula abstrata, sequer calcada na razão pura kantiana, fora da concretude de uma realidade constatável. A maneira através da qual adquirimos 'conhecimentos ou informações' origina-se, sempre, insistirá Bateson, da “observação e da experimentação” (ou de uma experiência).(www.uff.br/mestcii/samain1.htm)
Todavia, há que se considerar que a ciência surge por uma idéia, seja dedutiva ou indutiva, per se abstrata, uma especulação, evoluída à heurística, formulação provisória. Havendo alguma razoabilidade na propositura, uma constatação da especulação aí sim, passa para o teste de veracidade, na experiência da consecução. A Epistemologia se ocupa em checar esses prerrequisitos, o teor especulativo, se apenas metafísico, ou não, o método utilizado, a viabilidade e a consistência da prova, pela verificação dos afluentes que encorpam seu o delta:
O problema é ao mesmo tempo distinguir os acontecimentos, diferenciar as redes e os níveis a que pertencem e reconstituir os fios que os ligam e que fazem com que se engendrem, uns a partir dos outros. FOUCAULT, Michel, Microfísica do Poder: 5
Enveredada equivocada, as ciências humanas tinham noção das freeways relativistas e quânticas, sem necessitarem, e nem era possível, de imediatas provas empíricas. Explico melhor. No âmbito na Sociologia, do Direito, da Economia, da Ciência Política, enfim, coube a John Locke encetar o primeiro grande corte epistemológico à ciência padrão, esta essencialmente empírica, solidificada com Galileu, Bacon, Descartes e Hobbes:"Foi igualmente pela recusa do dualismo cartesiano, e pela defesa da observação e da análise contra o espírito sistemático, que Locke se impôs como 'mestre da sabedoria' aos filósofos franceses do século XVIII." (CHÂTELET: 228).
Locke trabalhou de modo empírico em seu Ensaio sobre o Conhecimento, fato que por sinal levou os modernos físicos e epistemologistas mais afoitos a lhe catalogarem à prateleira obsoleta; contudo, os mais brilhantes e decisivos trabalhos de Locke - O ensaio sobre a tolerância e Dois tratados sobre o governo - apresentam soluções totalmente inovadoras, completamente apartadas da realidade concebida, implementada. Até hoje suas disposições permanecem incólumes, mas foi somente com Einstein e Niels Bohr que os baluartes iluministas obtiveram a chancela científica, ainda assim de modo indireto. O composto da experiência localizada que exigiu séculos às comprovações, e ainda assim até ao presente não totalmente assimiladas, somado a coincidência do novo método da Física, parece atender com folga a condição apregoada por BATESON. As concepções jurídicas e democráticas de Locke e Montesquieu, consubstanciadas pelas sócio-econômicas de Adam Smith, e sintetizadas por Tocqueville, não merecem o selo ideológico, empírico, ou metafísico, porquanto calcadas na mesma epistemologia que iria deslumbrar a nova Física, e a ciência em geral. Concebida inicialmente apenas de modo heurístico, ela sofreu aplicação experimental, e o tempo se encarregou de consagrá-la . Poderiam ter puxado , de antemão, todas as congêneres, mais ou menos aparentadas. E por certo teriam influído e até antecipado, por que não, a reforma da posterior dissidente.
Depois do livro do americano Edward O. Wilson, Sociobiology e dos ensaios do inglês Richard Dawkins, os geneticistas das populações, assim como os especialistas em insetos sociais, procuraram compreender a organização social a partir dos interesses individuais. Não existe o formigueiro; só existem as formigas. Não existe a espécie; só existe o indivíduo. Falar de um sacrifício pelo grupo é, portanto, uma impossibilidade - pelo menos se estudarmos a evolução darwiniana dos caracteres sociais. Era preciso repensar a sociedade animal como a resultante do cálculo dos indivíduos e não mais como um vasto sistema dentro do qual os animais nascem e morrem. Esta revolução entre os animais assemelha-se às revoluções que as ciências políticas conheceram duzentos anos antes. Latour, Bruno, Das Sociedades Animais às Sociedades Humanas; cit. Witkowski: 207
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Os embarcados no trem newtoniano encontraram alojamento em numerosos vagões. Na segunda classe já aguardava Platão, submerso até o século das descobertas, obscurecido pela hegemonia de seu primeiro crítico, Aristóteles. Copérnico, Galileu e Maquiavel o resgataram, e a moda pegou. Na esteira do sucesso, ascenderam sucessivamente Bacon, Descartes, Hobbes, Rousseau, Napoleão, Saint-Simon, Hegel, Malthus, Darwin, Mill, Bentham, Marx, Austin, Savigny, Comte, Fichte, Sorel, Dilthey, Durkheim, Weber, Freud, Mach e Keynes, entre outras menores brilhaturas. Esta formidável orquestra tinha lá seus maestros, sim senhor
A idéia de que o conhecimento progride através de uma luta de visões alternativas e que ele depende da proliferação foi primeiro aventada pelos pré-socráticos (isso foi enfatizado pelo próprio Popper) e depois desenvolvida numa filosofia geral por MillOn Liberty). A idéia de que uma luta de alternativas é decisiva para a ciência também foi apresentada por Mach (Erkenntnis und Irrtum) e Boltzmann (veja suas Populaer-wissensschajtliche Vorlesungen), principalmente sob o impacto do darwinismo. A necessidade de tenacidade foi enfatizada pelos materialistas dialéticos que objetaram a vôos "idealísticos" extremos da imaginação. E a síntese, finalmente, é a própria essência do materialismo dialético na forma em que este aparece nos escritos de Engels, Lenin e Trotsky. Pouca coisa a esse respeito sabem os filósofos "analíticos" ou "empiristas" de hoje, que ainda sofrem muito a influência do Círculo de Viena. Considerando esse contexto estreito, embora 'moderno', podemos falar, portanto, em 'descobertas' genuínas, se bem que muito atrasadas
FEYERABEND, Paul,, Consolando o especialista: apres.
Grande parte da moderna sociologia, da pedagogia e toda a psicologia da pessoa derivam desta linha de pensamento, assim como nossa violência característica do século XX, uma reação natural diante de tamanha impotência. Foi igualmente afetada nossa atitude em relação à natureza e ao mundo material. Se nossa mente, nosso consciente é totalmente diferente de nosso ser material, como argumentou Descartes, e se a consciência não tem nenhum papel a desempenhar no Universo, como sugere a física de Newton, que relacionamento podemos ter com a natureza ou com a matéria? Somos alienígenas num mundo alienígena, situados à parte dele e em oposição a ele, nosso ambiente material.
ZOHAR, D.: 191
LOUIS ALTHUSSER valeu-se da expressão “corte epistemológico” à ruptura que MARX estabeleceu frente às fontes econômicas e históricas até então admitidas, em especial as construções de RICARDO E SMITH, mas na verdade o mago do proletariado apenas arranhou aqueles edifícios, e ainda assim de modo até reacionário, pelo resgate e evidência do materialismo, andaime comum que remonta a PLATÂO, e que serviu de plataforma ao mecanicismo em voga na Física, a partir de Copérnico, Kepler, Galileu e Descartes, e que culminou em LAPLACE, não sem antes sensibilizar Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Hegel e Darwin, o que fora justamente dispensado pelo escocês da Mão Invisível.
Não basta, pois, como também acreditava Durkheim, por em dúvida verdades adquiridas através do simplório método cartesiano, e assim discorrer os fatos, eis que o pesquisador elabora sua abordagem com categorias e pré-noções implícitas e não conscientes que lhe fecham, de antemão, o caminho da compreensão objetiva, até mesmo pela cisão do objeto em epígrafe. Desse modo o que se apura é uma verdade ainda mais deturpada por mutilação, na arbitrária parcialidade escolhida.
“O homem que descobre uma nova verdade científica precisou, anteriormente, despedaçar em átomos tudo o que aprendera, e chega à nova verdade com as mãos sujas de sangue do massacre de mil superficialidades”. (GASSET, Ortega y Rebelião das massas, cit. ROHMANN, Cris:. 298)
Em quarto de antecipação aos gigantes da Física, e distante meio século de Ortega, Nietzsche (O livro do filósofo: 21) cansou de assinalar as anomalias científicas:"O instinto do conhecimento, chegado a seus limites, volta-se contra si mesmo, para chegar à crítica do saber."
Nietzsche, como bem o sabemos, morreu infeliz, à mercê dos mecânicos mentais. Como Edward, o filho mais novo de Albert Einstein.
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Além das salvaguardas democráticas encetadas pela Revolução Gloriosa, uma área correlata pela qual a perfídia platônico-newtoniana não encontrou unanimidade, em que pese as marcantes presenças de Marx e Keynes, foi justamente a da Economia, dado o pioneirismo de Smith e F. Quesnay, ao que se somaram as intervenções pouco divulgadas da Escola Austríaca, em conjunto com a Escola de Chicago. Pelo fato de Mises, Hayek, Friedman e Schumpeter emergirem justamente na década de 1930, a dos grandes ditadores, seus faróis na ocasião foram ofuscados. Mas não apagados. "O que estou tentando mostrar é que a ciência, por causa do seu método e de seus conceitos, projetou um universo no qual o domínio da natureza ficou ligado ao domínio do homem e que ela favoreceu esse universo – e esse traço de união tende a tornar-se fatal para esse universo e seu conjunto". (MARCUSE, H., Uma ciência sem domínio?; Points Seuil, 1970; cit. CHRÉTIEN: 212). "Hoje a Antropologia não pode abster-se de uma reflexão sobre: o princípio de relatividade einsteniano; o princípio de indeterminação, de Heisenberg; a descoberta da ‘antimatéria’, desde o anti-elétron (1932) até o antinêutron (1956); a cibernética, a teoria da informação; a química biológica; o conceito de realidade." MORIN, E.: 64.
Não por acaso, pois, RICHARD FEYNMAN (O significado de tudo: reflexões de um cidadão cientista: 14) assim abria suas palestras: “Não há praticamente nada do que vou dizer esta noite que não pudesse já ter sido dito pelos filósofos do século XVII.” Para encerrá-las, o pesquisador de Los Alamos trocava o “vou dizer” por “eu disse“; e praticamente repetia as concepções de LOCKE & SMITH:
Nenhum governo tem o direito de decidir sobre a verdade dos princípios científicos nem de prescrever de algum modo o caráter das questões a investigar. Também nenhum governo pode determinar o valor estético da criação artística nem limitar as formas de expressão artística ou literária. Nem deve pronunciar-se sobre a validade de doutrinas econômicas, históricas, religiosas ou filosóficas. Em vez disso, tem para com os cidadãos o dever de manter a liberdade, de deixar os cidadãos contribuírem para a continuação da aventura e do desenvolvimento da raça humana. Obrigado.
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