sábado, 3 de janeiro de 2009

A cabeceira cartesiana da psicanálise


As imutáveis leis da História descritas por Marx, a luta desesperada pela sobrevivência de Darwin e as tempestuosas forças da sombria psiquê de Freud devem, em alguma medida, sua inspiração à teoria física de Newton. ZOHAR, Danah, e MARSHALL, I.: 16
Talvez o ramo mais afetado pela epistemologia, digo tecnologia cartesiana, seja aquele dedicado à extrair os segredos da mente. Em primeiro plano, a Psicologia, evoluída a partir de meado do XIX. Tal qual as irmãs mais velhas, a novel e vistosa cátedra também almejava obter a carteira de identidade científica. O rigorismo quantificado assumiu plena importância à aferição da inteligência, e emoções decorrentes. A geometria analítica aplicada às operações de pensamento haveria de afastar demais cogitações, porque da ciência se esperava precisão, não meras opiniões, muito menos preferências.
A ciência procura leis não somente independentes mas determinantes da vontade humana. Ela insiste em regularidades, estrutura, sistema, invariantes e, para tanto, procura delimitar e recortar claramente os objetos de estudo. Cultural e socialmente revestida de positividades, bondade e poder, ela menospreza a filosofia, percebida como figura diminuída que precisa ser 'abolida' ou 'desvalorizada'. LACOSTE, JEAN, A Filosofia do Século XX: 49..
As ciências humanas, agora as “mentais”, ficavam mais uma vez privadas de seu sujeito, e de seu objeto.
A viciosidade peculiar do racionalismo é que ele destrói o próprio conhecimento que possivelmente viria salvá-lo de si próprio, ou seja, o conhecimento concreto ou tradicional. O racionalismo serve apenas para aprofundar a inexperiência a partir do qual ele foi originalmente gerado. FRANCO, P., cit. GIDDENS, A.: 39.
Racionalismo vem de ratio, dividir. Assim rateado em busca de apelos simétricos, e correções de assimetrias, o método afasta a menor possibilidade de aproximação ao conhecimento. Explica-nos Hilton Japiassu (Nascimento e Morte das Ciências Humanas: 97), no trecho que corresponde ao mote de sua obra:
A passagem do reino da opinião (doxa) ao domínio do conhecimento científico (episteme) exigia a adoção de uma inteligibilidade racional. E a formulalização matemática estabelecia o limite desta ambição. As ciências humanas nascentes passaram a adotar uma exigência de rigor e de precisão, de busca das estruturas e das normas. Para tanto, adotaram em suas investigações os métodos quantitativos e a linguagem cifrada. A análise estatística passa a ser um dos meios fundamentais de ação dos cientistas humanos. As ciência se converte em uma língua bem feita. Por isso, submete todo o seu domínio à ordem matemática, a língua mais bem feita existente. A perfeição do saber parece ser atingida desde que se reduza os fenômenos a um esquema tipo algébrico. Pouco a pouco, a ordem dos comportamentos e das idéias humanas fica submetida à inteligência matemática.
BERTRAND RUSSELL (2001: 283) compreendeu a amplitude: "Afinal, o rígido determinismo da explicação cartesiana do mundo material, tanto físico como biológico, contribuiu muito para promover o materialismo dos séculos XVIII e XIX, em especial quando associado à física de Newton."
Para Descartes (Les principes de la philosofie) não apenas os vegetais e os animais, mas também o próprio corpo humano eram máquinas. Nada original. Em 1543, André Vesálio, (1514-1564) já havia dado a conhecer De humani corporis fabrica.
A analogia com a mecânica animal tinha por efeito reduzir o maravilhoso, negar a espontaneidade do existente e garantir a ambição de uma dominação racional no curso da vida humana. Tornado em Regras para Direção do Espírito*,lá se foi o trem à direção riscada. A má tese, ou a má temática ,a "quantofrenia", conforme Sorokin, ou a "aritmomania", como aduz Georgescu-Roegens, coroou o homo faber tal homo mathematicus. A realidade foi assim progressivamente substituída pelo universo do discurso formalizado, forjado por essas medições de quantidade, peso, potência e intensidade. Na Geologia e na Palenteologia, o estudo sobre os fósseis concluía que o estado atual da Terra era fruto de um desenvolvimento cíclico sobre imensos períodos de tempo, confirmando nosso planeta como produto de ações e reações, de forças naturais agentes umas sobre as outras, algumas vezes contra, outras a favor, no mesmo sistema das bolas de bilhar, ou do pêndulo.O universo-máquina, que ainda tinha alma, passou a ser‘um vasto sistema matemático de matéria em movimento’,um ‘universo material (onde) tudo funciona mecanicamente, segundo as leis matemáticas.’
A influência do paradigma cartesiano, reducionista e mecanicista sobre o pensamento médico resultou no chamado modelo biomédico, que constitui o alicerce conceitual da moderna medicina científica. O corpo humano é considerado uma máquina que pode ser analisada peça a peça; a doença é vista como um mau funcionamento dos mecanismos biológicos, que são estudados do ponto de vista da biologia celular e molecular, e o papel dos profissionais de saúde é intervir, física ou quimicamente, para consertar o defeito no funcionamento de um específico mecanismo enguiçado.Quatro séculos depois de Descartes, a medicina ainda mantém esse paradigma dominante e centrado numa abordagem hospitalocêntrica, curativista e verticalizada. Ediara Rabello Girão Rios, Senso comum, ciência e filosofia - elo dos saberes necessários à promoção da saúde
Não seria logo a Psicologia o mar apropriado para inventar outros métodos de averiguação; ao contrário - afinal - , sensibilidade e emoção, desde Pitágoras & Platão, passando por Bacon , Hobbes & Descartes, já tinham virado número; tudo seria possível medir, e projetar. A verificação dos processos emocionais evidenciava semelhantes mecanismos. “Não apenas os vegetais e os animais, mas também o próprio corpo humano eram máquinas”. (Lemkow, Anna: 84)
O Homem-máquina, de Julien De La Mettrie (1709-1751), reduzira a memória à função mecânica; paixões e experiências afetivas só se diferenciariam em termos quantitativos. Voltaire, com a ironia que lhe foi peculiar, jurou que o artífice morreu vítima de seus próprios remédios.
G. T. Fechner e Ernst Weber (1860 - cit. Penna, Antônio Gomes: 133) estenderam a esteira da psicologia à “Psicofísica - a ciência exata das relações funcionais ou de dependência entre corpo e alma e, em geral, entre o mundo corporal e espiritual, entre o mundo físico e psíquico”.
Fraissè (cit. idem: 32) destaca a sutileza:“A história da psicologia, depois de Descartes, poderia ser escrita como seguindo um movimento dialético entre a ciência da psiquê e uma ciência naturalista do homem que recusara tanto o dualismo metafísico quanto o metodológico.”
"Só se escolhe a dialética quando não se tem mais nenhuma saída" (NIETZSCHE, 2000:20), mas em seguida, embarcou a prima rica, a psiquiatria, pelas mãos de embusteiros, desculpe, não deixo por menos:
O mesmo se sucede com as questões relativas à mente, ao cérebro e ao corpo, em relação as quais o erro de Descartes continua a prevalecer. Para muitos, as idéias de Descartes são consideradas evidentes por si mesmas, sem necessitar de nenhuma reavaliação.
Damásio, Antônio R.: 113
Por causa desta flagrante falha epistemológica, ainda que não reconhecida pelo senso comum, o esteio não merece credibilidade. Popper (cit. Oliva, Alberto, Popper, Da atitude crítica à sociedade aberta. - Pereira, Julio Cesar R., Organizador, textos de Oliva, Alberto; Caponi, Gustavo A.; Carvalho, Maria Cecilia M.; Barros, Roque Spencer Maciel de: 92) não poupou críticas à ilusão vendida:
A psicanálise é uma metafísica psicológica interessante, mas jamais foi uma ciência. O que impede suas teorias de serem científicas é que não excluem qualquer comportamento físico possível. Mas qual era seu método de argumentar? Freud dava exemplos: analisava-os e mostrava que se encaixavam em sua teoria, ou que sua teoria podia ser descrita como sendo uma generalização dos casos analisados. Por vezes apelava aos seus leitores para que suspendessem suas críticas, e indicava que iria responder a todas as críticas sensatas em ocasiões posteriores. (8)
O projeto psicanalítico como toda edificação montada em cima da plataforma dialética, contém pontal positivista, no fito de suportar a alta carga metafísica. A artimanha exige a separação do objeto a ser esmiuçado. Desse modo, pela mescla entre objeto e o ser, o próprio ser tornado objeto lavra a mais completa impossibilidade não só científica, como fática:
A especificidade do conhecimento psicanalítico aponta dificuldades consideráveis à epistemologia na tarefa de dar conta dos andaimes da construção teórica da psicanálise. Com efeito, a invenção freudiana do inconsciente vem abrir uma fenda no sujeito da consciência, sujeito, justamente, que faz ciência. A psicanálise, por sua vez, ao tomar como objeto o desejo inconsciente enquanto condição de possibilidade da ação humana e, portanto, também do discurso científico ou filosófico, situa-se, do ponto de vista desses discursos, como uma metalinguagem.Rebello, Jaime Parera
No caso em tela, a cisão é generalizada: o corpo da consciência, e esta dividida em vários departamentos hierarquicamente sobrepostos - egos, superegos, tataraegos, inconscientes, planos, teses e antíteses - no mecanicista e reduzido universo cerebral transformado em eterno ringue de combate. Haja revoltas.
É uma questão que atualmente deve ser reconsiderada, tendo em vista que a fragmentação já se espalhou completamente, não apenas na sociedade, mas especialmente em cada indivído; e isso conduz a um tipo de confusão generalizada da mente, que por sua vez cria uma série infinita de problemas, interferindo com a nossa clareza de percepção de maneira tão grave a ponto de bloquear nossa capacidade de resolver a maioria deles. BOHM, David, Totalidade e ordem implicada: 17
Para Karl Jaspers (Psicopatologia Geral, Ed. Atheneu, 1987, Vol I, p. 40; cit. Araújo, Bohmila, A Voz da Harmonia, A Tarde, Salvador, 7/10/1995) o método é totalmente desqualificado e desqualificador:
A ênfase excessiva na análise (na parte) conduz ao reducionismo escotomizante, enquanto a focalização unilateral na síntese conduz ao globarismo obscurecedor. Existe uma polaridade onde a totalidade é vista pelos elementos, e vice-versa, formando um círculo que determina a reciprocidade da parte e da totalidade.
Ferguson (p. 77) reforça: “O conhecimento do cérebro na sua totalidade é muito mais do que a soma de suas partes, é diferente de ambas."
René Dubos (Man, medicine e environment: 64) diagnostica o que já pode ser considerado de domínio popular:“Sejam quais forem suas causas precipitantes e suas manifestações, quase todas as doenças envolvem o corpo e a mente e esses dois aspectos estão de tal modo inter-relacionados que não podem ser separados um do outro.”
Para Freud (cit. Zohar, Danah: 194), contudo, o movimento da libido deveria ser o único elemento capaz de gerar (ou gerir) nossas construções. A imaginativa argumentação, até hoje por muitos tomada como científica, é do próprio criador do mito:“Os animais, incluindo os seres humanos, têm seu comportamento movido pelos inseparáveis instintos do sexo e da agressão. Nos humanos, estes instintos controlam as forças escuras e hidráulicas do id, e são a causa subjacente, inconsciente de tudo o que fazemos.” Nietzsche antecipou a tática: "Para falar em termos fisiológicos: na luta com o animal, torná-lo doente é talvez o único meio de enfraquecê-lo." (Crepúsculo dos ìdolos, ou como filosofar a marteladas: 54) Freud, certamente, julgava seus pares depois de olhar para si, mas onde estariam as forças claras? Donde vem? Será que sabia Freud a composição de “hidráulico”? Será que ele sabia o que estava dizendo? Retrucamos na carona de Bachelard (La Poétique de l'espace, cit. José Américo Motta Pessanha, O Direito de Sonhar: xxix):
A imagem poética não está submetida a um impulso, Não é o eco do passado. É antes o inverso: pela explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos a imagem poética existe sob o signo de um ser novo. Esse ser novo é o homem feliz. Feliz na palavra, portanto infeliz no fato, objetará imediatamente o psicanalista. Para ele a sublimação não passa de uma compensação vertical, de uma fuga para o alto, exatamente como a compensação é uma fuga lateral. E logo o psicanalista deixa o estudo ontológico da imagem; aprofunda a história de um homem; vê, mostra os sofrimentos secretos do poeta. Explica a flor pelo estrume.
Na esteira de Bacon, Descartes, Hegel e Darwin, esqueceu o austríaco (ou desprezou), qualquer compromisso com a natureza, ou com valores espirituais:
Sua 'psicologia científica' procura uma compreensão do ser como entidade biológica semelhante a plantas e animais, mas sua interpretação mecanicista da própria biologia empresta um aspecto determinista e algo brutal, tanto para nós mesmos quanto para nossos camaradas biológicos.
Zohar, Danah: 194
Michel Polanyi (Personal Knowledge: 262; cit. Roszac, Theodore, A Contracultura: 232) encontrou o comum viés:
A neurologia baseia-se na premissa de que o sistema nervoso - funcionando automaticamente segundo as leis conhecidas da física e da química - determina todas as operações que normalmente atribuímos à mente do indivíduo. O estudo da psicologia revela uma tendência paralela no sentido de se reduzir o objeto a relações explícitas entre variáveis mensuráveis; relações que sempre poderiam ser representadas pelos desempenhos de um artefato mecânico.
Abraham Maslow (Toward a Psycology of Being, Van Nostrand, Reinhold, 1962: 5) por fim contabiliza: “Freud forneceu-nos a metade doente da psicologia e devemos agora preencher a metade saudável”..
Pois cabe à Filosofia reencontrar a nascente,  fio-de-ariade para escapulir do labirinto platônico.
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