domingo, 16 de agosto de 2009

A ilusão da competição


.A crença fundamental dos metafísicos é a crença na oposição de valores. NIETZSCHE, F., Além do bem e do mal: 10 
Domingo, dia de grandes emoções. Jornais e periódicos, e tvs, clubes e rodas, todos se ocupam em enaltecer ou depreciar contendores de todos os calibres. Alguns faturam muito, e muitos são os contribuintes. No cardápio de hoje, a desvairada apresenta até um concurso de aviões caseiros. Deve ser divertido essa, cada qual mais mirabolante.
Não tenciono o espírito de porco, mas alto lá! Estamos sendo embrulhados por metomínias que sóem perfurar todo o casco social. Nada que não for comparado obtém valor. E tome medições, em geral de força. Pois então afirmo: o Brasil é campeão das taxas de juros, do desemprego, da corrupção, dos meninos de rua, da cara-de-pau, de execuções, etc. etc. Onde estão as faixas correspondentes?
San Jose, California, USA:
A brasileira Cris Cyborg Santos massacra Gina Carano na luta de categoria peso-médio feminino.
A refrega acabou por nocaute, já no 1º round.
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Mas o Brasil também produz talentosos competidores intelectuais:
A equipe brasileira retornou com todos os seus cinco estudantes premiados da III Olimpíada Internacional de Astronomia e Astronáutica (IOAA, na sigla em inglês), que aconteceu entre 17 e 26 de outubro passado na capital do Irã, Teerã. Hugo Araújo e Daniel Soares, do Rio de Janeiro, Leonardo Stedile, de São Paulo, voltaram com medalhas de prata; Thiago Hallak, também de São Paulo, com bronze; e Otávio Menezes, de Porto Alegre, recebeu menção honrosa. Além disso, um dos medalhistas de prata (Daniel), recebeu também o prêmio especial de melhor prova observacional. A equipe que viajou para Teerã foi liderada por Thaís Mothé Diniz, professora do Observatório do Valongo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Tirante os que lhes rodeiam, mesmo envolvidos nessas competições, alguém ouviu falar nestas personalidades? Será que envergavam algum distintivo, tipo CCB - Confederação das Ciências do Brasil?
Brasil vence no voley. Os atletas são recebidos em palácio. Natação ganha medalhas. Somos sei-lá quantas vezes campeões do mundo. Haja carro-de-bombeiros. Mr. OBAMA foi adulado com a flamante canarinho, aliás vários presidentes. É o maior mimo que nosso intérprete muito além do jardim se orgulha em oferecer.
São disputas por audiências, ibopes, e tudo mais. Quem ficar em segundo... pronto: merece fechar, sumir do mapa. À sobrevivência, pois, vale-tudo. A vida de todos se ergue entre cordas. Que beleza!
Muito engraçado acontece na passarela do samba. Terminado os desfiles, o esteio vira ringue de combate. E componentes, e torcidas brigam todos os anos. O mais importante é definir os "erros" das escolas, e cada qual lista os defeitos da concorrência. Todas ficam injustiçadas, por isso seus integrantes voltam para casa frustrados, cabisbaixos, exceto a menos penalizada. E naqueles festivais de música... quantos não quebravam seus violões, outros choravam por causa das vaias? Nos de cinema, repete-se a cisma:
"Festival de Gramado termina com premiação de documentário e polêmicas
"" (Terra, 15/8/2009)
"Se a gente for pensar isoladamente os filmes, vai chegar à conclusão de que alguns poucos são melhores (muito...) que os outros..."(MERTEN, L.C., Folha de São Paulo, 15/8/2009)
Significa, pois, que os rotulados de menor expressão merecem o lixo?
As eleições, ah essa grande empulhação.... Logo se apresentam os competidores, com isso fechando a raia de antemão.
Na França, desde 1789, ou se era vermelho ou branco, padre ou leigo, burguês ou socialista, reacionário ou progressista. E entre os dois grupos inimigos, as pessoas se estripavam, cortavam-se em pedacinhos, insultavam-se, desprezavam-se.
Para captar as apostas, isto é, as contribuições de campanha, que nada mais são do que subornos antecipados, o pleito vai sendo narrado tal qual turfe. O favorito logo aparece, e com ele as chances de monumental arrecadação. As vezes é apenas um coelho, ou coelha, mas também é regiamente paga pelo papel. Os jornais lhes oferecem uma meia dúzia de indicações. E com tal guarida a turba fala alto, e buzina, e bate os tamancos.
O comerciante está convencido de que a lógica é a arte de provar à vontade o verdadeiro e o falso; foi ele que inventou a venalidade política, o comércio de consciências, a prostituição dos talentos, a corrupção da imprensa. Sabe encontrar argumentos e advogados para todas as mentiras, todas iniquidades. Somente ele nunca se iludiu sobre o valor dos partidos políticos: julga-os todos igualmente exploráveis, isto é, igualmente absurdos...
PROUDHON, P.-J., Filosofia da Miséria, Tomo I: 351.
Dizem que o capitalismo é isso - livre concorrência. Então, haja concursos - para trabalho público, licitações, vestibulares, e até de miss. Geralmente todos servem para legitimar falcatruas.
Livre iniciativa nada tem a ver com a livre concorrência. Aliás, no instante que quem quer que seja defina seu rumo em função de adversário, ou mesmo para dele se defender, evidentemente que está atrelado àquele ideal, e portanto, se não for uma coincidência, é alienação. A concorrência, como qualquer disputa, obedece ao cânone espartano; e a rigor, nada tem de humano.
“Na Idade Média, a dialética torna-se disputatio, isto é, um confronto de opiniões.” (ABRÃO, B.: 353)
Nenhuma chegava perto da mais tênue realidade.
À dialética o que menos importa é o sufixo. Pela semiótica, na sintaxe e na semântica do prefixo dial percebe-se o pragmatismo do adjetivo dual, ou seja, duplo, anunciante das duas éticas - uma, real, legítima; outra a que interessa, dissimulada. O que surge é a necessidade primeira de se estabelecer o confronto. Para tanto, parte-se o objeto em duas metades. De um lado, os ingênuos. Do outro, os que se acham espertos. Uns contra os outros é o ideal. Ambos se enfraquecem, para o engradecimento do introdutor.
Gosto de invocar Esparta, que a tudo antecipou. Para mim, é o exemplo mais fulgurante de como se aliena um povo inteiro. Seu brilho na história advém exclusivamente da forja de atletas.


A educação espartana, que recebia o nome técnico de agogê, apresentava as particularidades de estar concentrada nas mãos do Estado e de ser uma responsabilidade obrigatória do governo. Estava orientada para a intervenção na guerra e a manutenção da segurança da cidade, sendo particularmente valorizada a preparação física que visava fazer dos jovens bons soldados e incutir um sentimento patriótico. Nesse treinamento educacional eram muito importantes os treinamentos físicos, como salto, corrida, natação, lançamento de disco e dardo. Wikipédia
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Sócrates foi banido do meio ateniense, e seus discípulos não tiveram melhor destino. A reação do mais famoso foi se enamorar do arqui-rival. Tirante o apregoado regime escravocrata, de resto todas as recomendações de Platão infelizmente vem sendo seguidas à risca. A cidadela de Apolo ainda é glorificada como modelo de Estado. A apologia se reveste de louros. A América do Norte é atingida em cheio por várias incidências, entre as quais essa, de liderarem todas as competições olímpicas. Francamente, não quero ser polêmico a ponto de condenar a prática milenar, mas ao que leva tal propósito? Até os paraplégicos são envoltos por desafios. Dizem que contribui ao seu otimismo, que a superação de si traz benefícios, mas não é esta a busca, e sim suplantar o colega. Apenas um é vitorioso. O resto é perdedor.
E o que dizer das loucuras estimuladas pelo Guinness? São de fato curiosas, distrativas, mas a gente não mede nenhuma consequência para lograr tal brilhatura. Não são poucas as vítimas; aliás, exceto alguma rararidade, todos são vítimados, senão que por costumeiras tragédias, traídos pelo próprio ideal recordista, completamente desprovido de sentido, ou utilidade. Haja futilidade.
Casselton, do estado americano de Dakota do Norte, propugna ser recordista. A cidade pediu emprestado vários veículos às vizinhas, e assim logrou reunir 181 carros-de-bombeiro na parada do Festival de Verão do Condado de Cass, ontem ocorrido. (Associated Press)
E as escalações são rememoradas à exaustão, de modo que todos saibam de cor e salteado todos os scratchs dos últimos cincoenta anos. Ninguém diz o nome de um cientista, de um autor literário, muito menos de teatro, ou de uma música mais clássica. Pintura? Um goal de Pelé.
As conseqüências do analfabetismo científico são muito mais perigosas
em nossa época do que em qualquer outro período anterior.
SAGAN, C., O Mundo Assombrado pelos Demônios: 21
O mundo como vontade e representação, de SCHOPENHAUER, demonstra como a plataforma metafísica impulsiona o meio social para qualquer lugar a esmo.
As refregas são assim estimuladas ao máximo, em detrimento de todos nós. A emoção do jogo, a discussão estéril, e a tervigersação contumaz refletem-se no dia-a-dia de cada um, turvando todas as relações. Pessoas passam a não mais dialogar, mas a argumentar, sempre de olho no galardão. Elas sonham com o podium, e acordam para as disputas. E oferecem títulos, honrarias, currículos. Vestem gravata, brilhantina no cabelo, Cartier no pulso, ICA na gasosa. Las Vegas pulula de desesperados. Na década de trinta Wall Street se encarregou da nobre missão. Ultimamente, também. No Brasil o jogo é semiproibido, mas castelos se erguem no mato e mansões trocam de mãos, quase sempre com dinheiro mais mal-havido do que nos cassinos. É uma sede que não pode ser nunca mitigada. A pleonexia exige mais e mais. Tentam encher um tonel sem fundo. Nada lhes satisfaz, mas impressionam. Querem status, um lugar no podium. Vendem ilusão.
No trânsito aflora a mais notável consequência do vírus platônico. O motorista está sempre pronto a corrigir o outro, a levantar a bandeira da justiça, a disputar espaço, a correr, correr, correr, mais do que o adversário. A emulação lhe indica que precisa adquirir um veículo mais potente, mais luxuoso do que o do rival. Pensa ser mais respeitado, credencial à garagem da felicidade. Sempre haverá, todavia, alguém em sua frente a lhe obstaculizar a entrada, de modo que sua vida se torna uma eterna luta, cuja causa é impossível de vê-la realizada. Por uma espécie de retroalimentação, a frustração lhe indica que necessita de mais força, e então se agarra em outras espécies. Uns, de tão desrespeitados, incorporam Napoleão. O risco aumenta na proporção do mito. Outros preferem invocar o exército supraterreno. O combate aos fracos abate e aos fortes nada acrescenta, mas quem não precisa de adversários para se impor? Então eles vem com a força máxima:
"Se Deus é por nós, quem será contra nós"?
Porém, se todos somos seus filhos, onde arrumar contendor?
Infelizmente continuamos na célere marcha, tão estéril quanto fatal, rumo a uma felicidade impossível de ser alcançada, porque ela não se restringe, aliás é contrária ao poder, à competição, à dominação. Temos aí outra trivial realidade a sobrepujar a miragem, a utopia: para haver o poder, mister adversário, e daí à conquista. A vitória requer derrotado. A glória se reveste de luto.
Não são insígneas que garantem a honra, ou ratificam uma vida digna. Elas costumam ser apenas simbolismos, a tentar preencher a falta de uma eloquência natural.
Platão e seus retransmissores - Maquiavel, Hegel, Hobbes, Descartes, Rousseau, Darwin, Bentham, Mill, Comte, Sorel, Marx, Freud e Keynes - abordaram a ética e a ciência por ângulos de aproximação e desenvolvimento invertidos: quanto mais acreditavam em suas verdades, mais longe delas ficaram. Bando de loucos. Foram à “Marte", justo por não amar-te, acompanhados de milhões que ainda embarcam, por ingenuidade, imitação, interesse, mas geralmente desinteresse, justificativa, desespero ou comodidade, nesta nave onírica de perfídia sideral.

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