sábado, 29 de agosto de 2009

Emblema e dilema da Democracia.

Democracia é um regime de governo onde o poder de tomar importantes decisões políticas está com os cidadãos (povo), direta ou indiretamente, por meio de representantes eleitos — forma mais usual. Uma democracia pode existir num sistema presidencialista ou parlamentarista, republicano ou monárquico. Wikipédia
A Wiki reflete o senso comum, mas nem na democracia o povo decide algo, sequer indiretamente:
Um homem vota em um partido e permanece infeliz; ele conclui que era o outro partido que traria o período de felicidade e prosperidade. No momento em que estivesse desencantado com todos os partidos, já seria um homem idoso, à beira da morte. Seus filhos teriam a mesma crença de sua juventude, e a oscilação contínua.
RUSSELL, Bertrand, Ensaios céticos: 121.
A única diferença dos totalitarismos é que o povo pode escolher entre um ou outro quem irá lhe governar. Isso pouco tem de democrático: ."A idéia de democracia implica ausência de chefes." (KELSEN, H., 1993:88)
Vejamos aquela outra oração mais impactante, no costumeiro conceito: "Democracia é o governo do povo, exercido pelo povo e voltado aos interesses do povo."
Também não dá. É sofisma. E dos piores. Povo não tem interesse. Quem tem são as pessoas. Os interesses são tão difusos quanto elas. Dessarte, a democracia consagra o governo de algumas pessoas, dizem que da maioria, exercido por algumas pessoas, (em alguns países, porque no nosso é por apenas uma) no interesse de algumas pessoas. Isso parece, e a história me confirma, admitindo apenas uma exceção, a maior armadilha pela qual somos envoltos:
Nossos contemporâneos imaginaram um poder único, tutelar, onipotente, mas eleito pelos cidadãos; combinam centralização e soberania popular. Isso lhes dá um pouco de alívio. Consolam-se do fato de estarem sob a tutela pensando que eles mesmo escolheram os tutores. Num sistema desse gênero, os cidadãos saem por um momento da dependência, para designar o seu patrão, e depois nela reingressam. CONSTANT, Benjamin, 1767-1830, cit. Bobbio, 1993: 59
Tudo depende, portanto, de se fazer com que os súditos acreditem que o governo é bom e justo, e de os cidadãos sentirem-se felizes em obedecer às suas ordens - daí todo conjunto de medidas draconianas, aniquiladoras de toda liberdade de pensamento, sugeridas por Platão tanto na República quanto nas Leis, a fim de produzir e conservar nos súditos essa crença. KELSEN, H.: 501
Democracia não é objeto. Por não ser suscetível de apropriação, não lhe cabe a designação do povo. De outra parte, nenhuma democracia é exercida pelo povo, sequer indiretamente, e isso nem requer maior controvérsia. Por fim, o povo, uma entidade totalmente abstrata, não tem interesse exclusivo, já mencionamos, mas tantos quantos forem os seus integrantes, milhões de interesses, o que, evidentemente, é impossível de contentar. Portanto, nestes termos, ela é apenas uma forma mascarada, na melhor hipotese, na hipótese mais democrática, de uma oligarquia:
A democracia fala de um governo comandado pelo povo e sujeito às suas leis; na realidade, entretanto, os regimes democráticos são dominados por elites que planejam maneiras de moldar e dobrar a lei a seu favor. O totalitarismo aspira ao extremo oposto da democracia: ele luta para pulverizar a sociedade e estabelecer um controle completo sobre esta [...] O objetivo último do totalitarismo é a concentração de toda a autoridade nas mãos de um corpo autodesignado e autoperpetuado de eleitos que se denominavam 'partido', mas parece uma ordem, cujos membros devem lealdade a seus líderes e uns aos outros. Esse objetivo pressupõe controle, direto ou indireto, conforme as circunstâncias, dos recursos econômicos do país. PIPES, R., 2001:251
Tentemos uma definição catedrática:
Democracia hoje é considerada uma forma de Aquisição ao Poder, exemplos: Nossa Forma de Estado é (Estado Federal), Forma de Governo (República), Sistema de Governo (Presidencialismo), Forma de Aquisição ao Poder ou Regime ( Democracia Representativa). http://forum.jus.uol.com.br/73649/democracia-forma-regime-ou-sistema-de-governo
Esta me parece bem confusa. Seu foco se restringe ao modo de aquisição e conservação do poder. Como o poder é do povo, não podendo ser apropriado por ninguém, nem por grupo ou partido, parece claro que a disposição é escassa, Por ela é melhor ser vítima de conto-de-vigário do que ser assaltado. A rigor, dá no mesmo:  "Muitos dos terroristas de ontem são hoje presidentes ou ministros na América do Sul." (Vereadora eleita Lucía Pinochet Hiriart, filha mais velha do ditador chileno Augusto Pinochet 1915-2006, em Folha de S.Paulo, 2/11/2008)
O show eleitoreiro voltou à carga em toda a América Latina e, quase como denominador comum, se oferece como panorama uniforme para a ressurreição do velho caudilhismo militar latino-americano, ao ascenso das aristocracias sindicais e à estréia eleitoreira de ex-guerrilheiros arrependidos. Toda essa fauna responde a uma tática fascista... Mais uma vez, milhões de cartazes pelas ruas, múltiplos comerciais televisivos com personagens que esboçam sorrisos hipócritas ao carregar crianças maltrapilhas em falso gesto protetor. Sucedem chamadas radiofônicas apregoando repetitivamente as mesmas promessas de mais trabalho e desenvolvimento. Enormes avisos publicitários portam rostos cínicos nas ruas; batalhões de adventícios entoam o nome de seus futuros verdugos, enquanto politicastros — uns mais demagogos ou mafiosos que outros — chegam, erguidos nos ombros de fornidos mercenários, em enormes palanques instalados nas praças das principais cidades da América Latina. Multidões famélicas assistem ao vivo e em cores os supostos redentores em quem depositam vãs esperanças ou de quem receberam, como prebendas baratinhas,
algum dinheirinho ou miseráveis sacolas com mantimentos.
SABA, Pablo, www.anovademocracia.com.br
O que caracteriza a democracia como mais prudente, e por isso mais querido, ou praticado sistema de governo não é quem irá exercer o comando, mas o modo de exercê-lo.

Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que
nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar.
Rawls, J., Justiça e Democracia, p. XV
Pelo que entendo de democracia, embora na sociedade deva haver hierarquia, ela deve ser consensual,n atural, e portanto, per se desprovida de poder. Considerando a tradição, entretanto, é certo que não há democracia se não houver, no mínimo, dois poderes, e o comum são três. Esta estratégia na origem se à divisão entre Executivo e Legislativo - visando justamente a salvaguarda popular da Inglaterra, precisamente em 1689. Até então os reis, em combinação com o Vaticano, enfeixavam todos os poderes sobre os habitantes, de todos os países.
JOHN LOCKE arquitetou esta modalidade na qual todos poderiam sair ganhando, inclusive o rei, exceto aquele intermediário, claro. O soberano poderia continuar exercendo o comando, mas as leis seriam elaboradas por assembléia. "Assinalando o triunfo final do parlamento sobre o Rei, punha a termo definitivo a monarquia absoluta na Inglaterra. Nunca mais uma cabeça coroada desafiaria o legislativo daquele País." (BURNS: 529)
BOBBIO (1992: 3) retrata:

Na era dos direitos passou-se da prioridade dos deveres dos súditos à prioridade dos direitos do cidadão, emergindo um modo diferente de encarar a relação política, não mais predominantemente do ângulo do soberano, e sim daquele do cidadão, em correspondência com a afirmação da teoria individualista da sociedade em contraposição à concepção orgânica tradicional.-
O Estado Absolutista virou Estado Democrático, Liberal, ou de Direito, critério tão bem explicado por MABLY (Doutes Proposes aux Philosophes Economistes sur l'Oredre Naturel et Essentiel des Societes Politiques; cit. idem:144):

Em política, os contrapesos são instituídos não para privar o poder legislativo e o executivo da ação que lhes é própria e necessária, mas para que seus atos não sejam convulsos, nem irrefletidos, apressados ou precipitados. Criam-se dois poderes rivais para que as leis tenham poder superior ao dos magistrados, e para que todas as ordens da sociedade tenham protetores com quem possam contar. Forma-se um governo misto a fim de que ninguém se ocupe só com seus próprios interesses; para que todos os membros do Estado, obrigados a ajustar-se aos interesses alheios, trabalhem para o bem público, a despeito das suas próprias conveniências.
A inovação logrou imediato êxito: a Inglaterra trocou os confrontos internos e internacionais, por uma estupenda produção, cujo resultado a elevou muito acima dos países continentais.
A França, contudo, por século inteiro permaneceu no ancien règime, e quando precipitou a catarse, teve que dividir o povo inteiro.
Nem sequer um doutrinário da democracia como Rousseau, com a concepção organicista da volonté générale, princípio tão aplaudido por Hegel, pode forrar-se a essa increpação uma vez que o poder popular assim concebido acabou gerando o despotismo de multidões, o autoritarismo do poder, a ditadura dos ordenamentos políticos.
BONAVIDES, P. : 56
"Através da vontade geral, o povo-rei coincide, miticamente, de agora em diante, com o poder; essa crença é a matriz do totalitarismo." (COCHIN, AUGUSTE, cit. FURET: 1989: 191)
Apurou-se o terror jacobino (1792-94), a oligarquia do Diretório (1794-99), e o despotismo napoleónico (1799-1814). O resultado foi a permanência do comando supremo, não mais de um rei, mas de um psicopata imperador, que levou a força popular à potência máxima, para dizimar a vizinhança e alhures.
Da Revolução Gloriosa, poucos tiveram notícia. Mas da afamada Francesa, graças ao sofístico lema de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, somada à sua estratégica posição geográfica, e a pujança de seus campos, todos ainda festejam como ápice dos direitos humanos.
Os bairristas franceses acabaram parcialmente rejeitando ROUSSEAU, mas buscaram adaptá-lo à conjugação dos dois outros maiores expoentes - DESCARTES e MONTESQUIEU. Graças à maior incidência dos apelos greco-romanos no seio latino, o ideal de Justiça tomou maior vulto, e o autor do Espírito das Leis elevou a metonímia à condição de Governo, formando, destarte, a mais clássica modalidade, assentada em très poderes, em princípio independentes mas harmônicos, em funcionamento mecânico de freios e contra-pesos, check- and-balance, porque “como o despotismo humano causa à natureza humana males espantosos, o próprio mal que o limita constitui um bem.” (MONTESQUIEU, Livro Quinto, Vol I: 74)
Nada disso, infelizmente, tem brecado a volúpia da procissão:
Criminalidade no Congresso Nacional configura crise institucional
Complacência do Senado e da Câmara dos Deputados frente aos indícios de crimes cometidos em massa por muitos de seus integrantes leva a perda de confiança da população nas instituições parlamentares e no processo eleitoral, o que configura uma crise institucional.
www.transparencia.org.br

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