domingo, 5 de outubro de 2008

A metonímia* da democracia

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Como em Esparta, só à classe governante é permitido portar armas, só ela tem direitos políticos ou de outra espécie, só ela recebe educação, isto é, um  adestramento especial na arte de manter em submissão suas ovelhas humanas, ou seu gado humano. POPPER, K., 1998, Tomo I, p. 60

Órgãos de comunicação narram a emocionante reta final. Conclamam à festa cívica. Fazem bonito papel. Todos se sensibilizam. Leitores adquirirem  jornais ´para se interarem  dos favoritos e zebras. Enformados, ora eleitores, vão-se às apostas. Muitos se quedam às indicações dos percentuais projetados no céu. Os que desejam vitória, optarão pelo óbvio. Presumem seguir a correnteza; portanto, a voz de Deus. Alguns preferirão contestá-lo; e os mais revoltados irão com os azarões. Coincidentemente, mas não por acaso, e sim por uma questão de lógica, diante de tantos esforços, e a julgar pelas consagradas experiências, tenderia a vingar a lógica querida. Dessa vez, contudo, pode haver supresa, especialmente no campo dos votos brancos, nulos e abstenções, caso em que chocaria os numerólogos, mas não os filósofos: "A lógica como único guia conduz à mentira: pois ela não é o único guia." (NIETZSCHE, F., O livro dos filósofos: 37)
Com certeza este fenômeno atingirá o record, malgrado os esforços do tribunal eleitoral, que em vez se ocupar com sentenças, para cujas funções é investido, ora usa o aparato da comunicação para tentar dourar a pílula, através de ridículos gingles, graças às agências de publicidade completamente desconectadas com a sociedade, embora eficientes nos comerciais. Aliás, a participação dessas entidades de comércio, especialmente a partir do grande líder Marcos Valério, dá bem conta para onde derivou nosso sistema jurídico-político.
Ao eleito pela artimanha estatística, depois da festa recairá pagá-la,; todavia, não com seus recursos. Se os esforços não forem suficientes, o prejuízo é de todos, porém nem tanto assim: o contrato é de risco, mas pode envolver compensações não-locais.
As pesquisas se dizem fotógrafas de um momento. Nada mais abstrato. Elas não sinalizam os feômenos supra mencionados, e dos indecisos nunca se teve notícia, exceto por irrisórios. Pois mais da metade dos paulistanos deixou a decisão sobre o voto em um candidato a vereador para a última hora, apurou o Datafolha,  (íntegra do texto)
Diante da óbvia impossibilidade daquele pretenso instantâneo, justo apenas metáfora, os institutos apresentam impressionantes gravuras. Não espelham a realidade, mas tentam compô-la. Não poucas vezes, carregam nas tintas; outras tantas, simples rabisco já atrapalha a concorrência, ao tempo em satisfaz o (en)comendador. As "pesquisas" são indutivas, não dedutivas; por isso fazem por merecer a recompensa dos mecenas.
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O homem bom também quer ser verdadeiro e crê na verdade de
todas as coisas. Não só da sociedade, mas também do mundo...
De fato, por que razão o mundo deveria enganá-lo?
NIETZSCHE, F., O livro do filósofo: 55
Por muitos anos o povo brasileiro sequer sabia quem cuidava das coisas públicas, e isso nem lhe fazia diferença. Cada qual se empenhava no próprio trabalho, nos estudos, nas relações familiares e sociais, cuidados com a saúde, prática de esportes, recreação, e compromissos financeiros. Tudo isso já era o bastante para lhe exigir presença. Havia, e ora muito mais, entretanto, quem nada tenha com que se ocupar, e vislumbre naquelas funções excelentes "profissões":
Para Michaël Zöller, sociólogo alemão da universidade de Bayreuth, o que se chama de Estado é certamente um sistema de interesses pessoais organizados, uma Nova Classe. Como todos nós, sua ambição é aumentar a remuneração e a autoridade. Como classe, ocupam-se, pois, a desenvolver seus poderes. SORMAN, Guy, A nova riqueza das nações.
Para desenvolvê-los é que a sociedade foi convocada às diretas já. Isso era, e infelizmente ainda é, totalmente impossível. Jamais houve eleições diretas, em nenhuma democracia contemporânea. Elas são, na melhor das hipóteses, totalmente indiretas. Toca às grandes corporações, denominadas partidos, a designação de quem irá ao partidor. Seus perenes chefes traçam o destino de milhões, mas dão a impressão de que são milhões os responsáveis, de modo que eles podem ser irresponsáveis. De fato são. Ao povo cabe acatar, restrito aos dois blocos, um à esquerda, outro à direita, só não se sabe do quê, ou de quem, mas isso não vem ao caso. O que interessa aos contendores é desviar o povo para um lado qualquer, para que ele não incomode.
Se são anormais, não têm então nada a ver com o povo?
Não é assim: o povo tem necessidade das anomalias,
embora não exista por causa delas.

NIETZSCHE, F., ob. cit.:74
No dia das eleições, acontece o insólito: o povo se despede do poder, para entregá-lo a um tutor.
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A democracia foi ideal cultivado, e parcamente realizado. Nos recreios os colegiais de Atenas se reuniam no páteo, para decidirem com quem brigariam na saída, se com os persas, ou entre si. Como isso não é coisa de mulher, elas se mantinham caladas. Cada qual emitia diretamente um qualquer palpite, assim exercendo sua mínima força para desviar o transatlântico à rota de suas aspirações. Se a voz solitária se coadunasse com as demais, a expectativa poderia se efetivar, mas jamais contemplar: assim como o preto é a reunião de todas as cores, e por isso não pode a nenhuma cor preferir, o som enfeixado pelas milhares de cordas vocais dissipava a tênue gravidade de cada eleitor. A cor de cada ser se misturava no caldeirão, e formava um preto, que não traduzia nenhuma cor. Por estéril, o mito permaneceu submerso por exatos dois milênios, até ser resgatado na costa italiana.
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A Constituição vilã, coincidentemente, completa vinte aninhos. Jovem, mas já perdida, posto nascer desvirtuada. Todas as cores que lhe compuseram, umas oriundas do parlamentarismo, outras do presidencialismo, algumas até do moribundo socialismo, mas a maioria do finado fascismo tornaram-na de tal maneira confusa, que ninguém de nada pode reclamar! Obra de gênio, sem dúvida, tanto que seus autores se agadanharam do poder, e jamais foram despedidos, em que pese incontáveis momentos à justa-causa:
A democracia fala de um governo comandado pelo povo e sujeito às suas leis; na realidade, entretanto, os regimes democráticos são dominados por elites que planejam maneiras de moldar e dobrar a lei a seu favor. O totalitarismo aspira ao extremo oposto da democracia: ele luta para pulverizar a sociedade e estabelecer um controle completo sobre esta [...] O objetivo último do totalitarismo é a concentração de toda a autoridade nas mãos de um corpo autodesignado e autoperpetuado de eleitos que se denominavam 'partido', mas parece uma ordem, cujos membros devem lealdade a seus líderes e uns aos outros. Esse objetivo pressupõe controle, direto ou indireto, conforme as circunstâncias, dos recursos econômicos do país. (PIPES, R., 2001:251)
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Pelas diretas atenienses a democracia era constante. E o preto, também. No advento do Império Romano o preto foi trocado pelo vermelho-sangue, de modo que sequer a reunião das cores era mais necessária. Do fim da prolongada noite surgiu a Estrêla Cristã, promendo de ora em diante garantir a paz na Terra a todos os homens, inclusive aos de má-vontade. O acerto com esses viria ao cabo, em temível julgamento sem direito à apelação ou sursis. O céu visivelmente passava por nossas cabeças. A Fiscalização garantia nosso domínio. Escravos, pecadores e quaisquer "inimigos" se revestiam com as cores do Diabo, assim abdicando das prerrogativas humanas, sendo tolerado, e recomendável, também serem subjugados.
No fim do Cinquecento os "renascentistas" descobriram que a "civilização" havia sido vítima de um engôdo. Sua filha mais preciosa, a adolescente Florença, exigiu nova metafísica, mas a parte do subjugo se manteve; e por mútuo interesse, exceto dos subjugados, ela se alastrou numa velocidade compatível com as vertiginosas descobertas científicas e geográficas.
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A dita dura romana, e a demo cracia grega eram paradoxais na forma de governo; mas ambas expressavam o anseio popular:
A sociedade grega e romana se fundou baseada no princípio da subordinação do indivíduo à comunidade, do cidadão ao Estado. Como objetivo supremo, ela colocou a segurança da comunidade acima da segurança do indivíduo. Educados, desde a infância, nesse ideal desinteressado, os cidadãos consagravam suas vidas ao serviço público e estavam dispostos a sacrificá-las pelo bem comum; ou, se recuavam ante o supremo sacrifício, sempre o faziam conscientes da baixeza de seu ato, preferindo sua existência pessoal aos interesses do país. TOYNBEE, Arnold J., Estudos de História Contemporânea - A civilização posta a prova, p. 196.
A Renascença não poderia escapulir desta lógica, única conhecida. Assim é que a civilização ressurgiu bipolar, transexual: de um lado cultivava as artes, o luxo, a benemerência, e o amor, provado ainda presente, em que pese a ausência do Grande Fiscal. Do outro vingava a eficácia das novas armas, concebidas através da identificação das forças naturais que regiam o Universo cogitado mecânico. A luneta desvendava a genialidade divina do maior dos relojoeiros:
E no meio repousa o Sol. Com efeito, quem poderia no templo esplêndido colocar essa luminária num melhor lugar do que aquele donde pode iluminar tudo ao mesmo tempo? Em verdade, não foi impropriamente que alguns lhe chamaram a pupila do mundo, outros o Espírito, outros ainda o seu reitor. (CHÂTELET: 49)
Tal dialética tornou o cientista louco, a ponto de se considerar ao res de símio; e os governantes, semi-deuses, porque o semi-símio lhes assegurava o passe aos segredos do Grande Arquiteto.
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Sempre que penso nas alianças e disputas na política libanesas, me lembro do filme
'O Poderoso Chefão'. Inimigos se tornam aliados, antigos amigos passam a se matar e,
após inúmeras baixas, todos se sentam à mesa para definir a nova divisão do poder.
(CHACRA, Gustavo, Diário do Oriente Médio http://blog.estadao.com.br/blog/chacra)
Hoje temos a oportunidade de "escolha", a manu militaire. Se nas empresas há milhares de candidatos para uma vaga, assim confundindo o gerente, em nossa democracia tudo é facilitado. O fotochart, se necessário, só enquadra as duas cabeças finalistas, e torna mais fácil as combinações. Pela "instituição" do segundo turno, por uma ironia, decidem o disco os papagaios-de-pirata, os derrotados que ficam fora do placê. O mais grave, antes de tudo, ou além disso: a parceria enseja a ascenção dos louros ao poder, ao arrepio das urnas que originalmente lhes remeteram ao ostracismo.
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Não obstante, em todo lugar, em qualquer democracia, o povo vara sobre trilhos, compostos pelas duas guias, empacotadinho nos containers, ao gáudio das alcatéias. Os Estados Unidos, essa pátria da liberdade, nem ela escapa da dicotomia: de um lado tem o preto, ou azul marinho; e do outro, o vermelho. E não me acusem de racista, por favor!
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Como escapulir da chicana?
Mas só para morte ainda não há solução. Por certo, falta apenas imaginação, ora adstrita pelas vendas laterais.
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* Chama-se de metonímia ou transnominação uma figura de linguagem que consiste no emprego de um termo por outro, dada a relação de semelhança ou a possibilidade de associação entre eles. (Wikipédia)
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