sexta-feira, 31 de outubro de 2008

A cisão entre ciência e filosofia

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Quando a filosofia vier a cooperar com o curso dos acontecimentos e tornar claro e coerente o significado dos pormenores diários, a ciência e a emoção hão de interpenetrar-se, a prática e a imaginação hão de abraçar-se. JOHN DEWEY,

A CULTURA ASIÁTICA percebe os polos complementares. Confúcio, a vertente do Tao, e o Budismo consagram a integração. A "civilização" ocidental adotou o confronto. O sabre coloca o povo à serviço do Império:

A sociedade grega e romana se fundou baseada no princípio da subordinação do indivíduo à comunidade, do cidadão ao Estado. Como objetivo supremo, ela colocou a segurança da comunidade acima da segurança do indivíduo. Educados, desde a infância, nesse ideal desinteressado, os cidadãos consagravam suas vidas ao serviço público e estavam dispostos a sacrificá-las pelo bem comum; ou, se recuavam ante o supremo sacrifício, sempre o faziam conscientes da baixeza de seu ato, preferindo sua existência pessoal aos interesses do país.
TOYNBEE, Arnold J.:196.
Depois da queda, a ameaça do diabo já era suficiente para manter o povo nos eixos. Na Idade Média os trabalhos do egípcio Cláudio Ptolomeu (90-168 D.C.), de Santo Tomás de Aquino (1250), o folclore da Divina Comédia, de Durante Aldighieri de Ferrara* garantiam a Pax Benedictina:

Mesmo os ateus estão de acordo acerca de que não há coisa que mais mantenha os Estados e as Repúblicas do que a religião, e que esse é o principal fundamento do poderio dos monarcas, da execução das leis, da obediência aos súditos, da reverência dos magistrados, do temor de proceder mal e da amizade mútua para com cada qual; cumpre tomar todo o cuidado para que uma coisa tão sagrada não seja desprezada ou posta em dúvida por disputas; pois deste ponto depende a ruína das Repúblicas. BODIN, Jean, cit. CHEVALIER, Jean Jacques: 55
O Criador postara a Terra imóvel, no centro do Universo, ao deleite do homem, feito à Sua imagem e semelhança. Tudo girava em nosso redor:
Ptolomeu partiu do pressuposto de que a Terra era o corpo central e tratou as órbitas dos planetas como ciclos e epiciclos superpostos. Isso lhe permitiu prever eclipses do Sol e da Lua com muita precisão; tanta precisão que, durante 1500 anos, sua doutrina foi considerada a base segura da astronomia. HEISENBERG, W., A parte e o todo: 43
A propagação da temática
As assertivas de Aristóteles não destoavam da cristã. Na adolescência do XV, contudo, a Renascença haveria de conhecer a droga platônica, importada de Constantinopla através de Marcino Ficino (1433-1494). Em 1462 o grato Cosme de Medici lhe deu presenteou com uma vila inteira.
A doutrina órfica colocara a dialética em epígrafe ao cingir o homem em corpo e alma, aquele mundano, esta divina. Platão adotava todo o tipo de dialética, e isso encaixava perfeitamente. Pode-se afirmar, com toda segurança, que o elemento se constituiu na base primordial de suas proposituras; e tal metafísica revestia como luva os preceitos cristãos. O Gênesis oferece vários contrastes:
No Princípio Deus criou o céu e a terra. A terra, porém, estava informe e vazia, e as trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre as águas. E Deus disse: Exista a luz. E a luz existiu. E Deus viu que a luz era boa; e separou a luz das trevas. E chamou a luz de dia, e as trevas noite. E fez-se tarde e manhã: o primeiro dia.
"Platão se harmonizava, perfeitamente, com a doutrina cristã, porque tanto nele quanto na Igreja, tudo procede da mesma fonte, a saber, do 'logos' divino."
Por 250 distintas localidades mil tipografias divulgavam o Novo Testamento:
“De todas as revoluções tecnológicas do milênio, a de maior alcance ocorreu um pouco antes da metade dessa era. Em 1455 Gutemberg escreve a Bíblia.”
(Veja, n. 51, Especial do Milênio)
Entretanto, o cortejador dos espartanos ainda prescrevera (Epinomis): "A ciência dos números, dentre todas as artes liberais (?!) e ciências contemplativas, (ou seja, apenas especulações, isentas de responsabilidade porque improváveis) é a mais nobre e excelsamente divina."
Ao ser questionado porque o homem se diferenciava dos animais, Platão fora categórico: "Porque sabe lidar com números."
A própria razão se baseia por cálculos. O designativo vem de ratio, latim, significando ratear, contar, dividir, multiplicar. Presumia-se quem soubesse contar fosse senhor de razão, mesmo que não tivesse nenhuma:
Racionalização significa a transformação do mundo dominante em nome de um plano racional: a organização construída sobre um método e uma seleção racionais, que é totalmente onipotente (...) Sabemos por experiência (...) que o totalitário não é propício à tolerância.
GALLAS, Z StW, 1963, cit. ANDRADE, Manuel da Costa: 27
Na virada do século o mundo viu publicados duzentos e quatorze livros de matemática. (RONAN, Colin A., História Ilustrada da Ciência, Vol. III - Da Renascença a Revolução Científica: 61)   Os Toffler (p. 41) relatam o pitoresco: “Um conselho sem dúvida bem-intencionado, atribuído a Santo Agostinho, advertia os cristãos a manter distância das pessoas que sabiam somar ou subtrair. Era óbvio que haviam firmado um 'pacto com o diabo'.”
Os números continham o germe pela qual o edifício eclesiástico seria abalado, mas nos Descobrimentos vinham a calhar. Ademais, propiciavam segurança aos artesãos, tornavam as atividades concretas, lógicas e práticas, enfim, poderiam solidificar as ciências. A matemática se tornou cimento, segura vedação contra qualquer tentativa de acolher, “com distorções de palavras”, proposições de variadas e incompatíveis procedências:
Na matemática não há fatos fora do seu próprio campo que exijam comparação. Por causa dessa certeza, os filósofos de todos os tempos sempre admitiram que a matemática propicia um conhecimento superior e mais confiável do que o reunido em qualquer outro campo do saber.
RUSSELL, B., 2001: 137
Copérnico e Giordano Bruno confirmaram os cortes, logo estancados pela imediata ação do Vaticano. Como não se pode enganar a todos, durante todo o tempo, veio Galileu desferir o golpe fatal à teoria geocêntrica, a pérola do catolicismo. Deus fizera a Terra em sete dias, e colocara o homem para dominá-la, à sua imagem e semelhança. Como supor que não estivéssemos no centro do Universo? Era só olhar ao céu, às nuvens para verificar o flagrante: era Deus que passava, e não a Terra que se mexia!
A luneta despiu o
santo-do-pau-ôco; mas era possível readaptá-lo. Johanes Kepler (1571-1630) anunciou: "Deus geometriza. A geometria é o próprio Deus."
Sequer o Inferno, de Dante
escapou do crivo. (Palestra na Academia Florentina, A Geografia do Inferno de Dante Tratada Matematicamente, 1588; cit. GEYMONAT, Ludovico, Galileu Galilei: 10)
Tornou-se Galileu o “pai da física matemática”.
(Idem, 318 ) Poderíamos dizer, sem querer ofendê-lo, mas completá-lo, que sua idéia foi a “mãe da pretensão científica”.
Quanto ao homem, estava provado: não estando mais no centro do universo, poderia ser, quanto muito, uma inexpressiva peça de toda a engrenagem do reino solar.
A faculdade de conhecer o verdadeiro se resumia ao que os braços ou olhos podiam confirmar, mas o acesso ao completo texto da geometria euclidiana estava plenado. Este é o engano basilar de Galileu e Kepler, e da produção científica empilhada nos séculos que lhe sucederam - a premissa pintada como conclusão de pensamento, a subversão numérica das letras:

A filosofia está escrita neste grande livro que permanece sempre aberto diante de nossos olhos; mas não podemos entendê-la se não aprendermos primeiro a linguagem e os caracteres em que ela foi escrita. Esta linguagem é a matemática e os caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas.
GALILEU, cit. CAPRA, Fritjof, O ponto de mutação: 50
Os caracteres nasceram deformados pela carga genética: “Não tenho dificuldades para admitir, identificando o platonismo com matematicismo, o caráter platônico da ciência galileana”. (GEYMONET, Ludovico: 42)
“A grande idéia de Koyré, justamente, é que Galileu encarnava a herança do platonismo. Em outras palavras: Galileu acreditava que, graças à matemática, os físicos conseguiriam apreender a estrutura íntima da realidade”.
(THUILLIER, P., :128)
Foi uma lástima, à ciência e à humanidade: “Em alguns aspectos importantes, embora de maneira alguma em todos, a Teoria Geral da Relatividade de Einstein está mais próxima da teoria de Aristóteles do que qualquer uma das duas está da de Newton.”
(KUHN, T.S., Estrutura das Revoluções Científicas: 253)
Complementa Koyré (
Considerações Sobre Descartes: 81):

Ocorre que para Aristóteles a geometria era apenas uma ciência abstrata. Por isso, a geometria nunca poderia explicar o real. As suas leis não dominam o mundo físico. O estudo da geometria não precede o da física. Uma ciência do tipo aristotélico não se apoia numa metafísica. Conduz a ela, em vez de partir dela. Uma ciência tipo cartesiana, que postula o valor real do matematismo, que constrói uma física geométrica, não pode dispensar uma metafísica. E tem mesmo que começar por ela. Descartes sabia-o. E Platão, que fora o primeiro a esboçar uma ciência desse tipo, sabia-o igualmente.
A ética se tornou dialética. O numerário subverteu as ciências, depois a própria filosofia; e por fim, contaminou todo mundo ocidental: "Uma ilusão geral constitui uma força social, que serve potentemente para cimentar a unidade e a organização política de um povo, como de uma inteira civilização." (MOSCA, Gaetano, Scritti politici (Teorica dei governi-elementi di scienza política) vol.II, 633; cit. REGO, W.D.L.: 88)

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