quarta-feira, 9 de julho de 2008

O feriado de 9 de julho

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A história do poder político nada mais é do que a história do crime internacional e do assassínio de massa.
Karl Popper
UMA DAS MAIORES artérias da megacidade resgata a memória, e não poucas instituições ostentam a data como insígne. É o feriado mais importante do Estado de São Paulo. Seria dia de grandes comemorações, e certamente por toda Nação, não fosse o trágico desfecho reservado àqueles bravos paulistas..Assemelha-se mais a finados do que o renovar da esperança, como sói fulgurar em aniversários. Em respeito, o Autódromo de Interlagos silencia o ronco dos motores. Na pista haverá a lúdica 65ª edição da Prova Ciclística Internacional 9 de Julho.
O curioso é que nenhum dos maiores jornais daquela capital oferece uma linha, sequer, à antepassada proeza. As notícias divulgam teatros prisionais, contabilidades de fluxos de veículos, e naturalmente a vitória do Corinthians, ora comandado pelo meu honroso amigo Mano Meneses. O próprio Estadão se exime. Olvida que foi empastelado. Talvez lhes seja por demais dolorosa a lembrança. O silêncio se deve mesmo ao pesar? Uma forma de homenagem ao enorme contingente dizimado? Porventura cansaram de transcrever o sacrifício? Não dá mais ibope? Ou será receio das constantes censuras judiciais? Não posso crer que o mandamus percorra tão extenso EspaçoTempo. Aliás, foi justamente no afã do Estado de Direito que seus antigos leitores empunharam as armas, as quais mal sabiam carregá-las.

Uma senhora entrevista
Intrigado com tamanha lacuna, enviamos Foca Lisa para localizar alguma personalidade que pudesse espelhar o motivo da irrelevância. A competente repórter escolheu a notável professora Olgária Matos, legítima representante da nata intelectual paulistana. Eis a rápida entrevista:
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A senhora pode nos apontar alguma hipótese pela omissão jornalística sobre o significado desta data?
Bem. Em primeiro lugar temos que levar em conta que a fragmentação do indivíduo, o parcelamento do trabalho, a perda de valores, bem como uma temporalidade de rupturas bruscas e de mudança incessante nas sociedades produtivistas, (como é o caso de São Paulo), resultam no desenraizamento do indivíduo. O agente dessa racionalidade é a tecnologia, que 'torna a memória supérflua'.
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Certo, professora, mas cabe alguém resgatá-la, e ninguém mais apropriado do que os órgãos de comunicação. Ademais o momento seria oportuno. No entanto, o que vemos é a permanência da alienação. Ao quê se deveria a falta da pauta?
Não posso adivinhar. Busco socorro em Adorno. Para ele a indústria cultural arquiva o passado. O espírito e a prática da mídia têm sua lei: a da novidade... de ser imediatamente legível e compreensível pelo maior número de expectadores ou leitores. Eu concordo.
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Mas se não cabe à própria mídia esclarecer, como o povo irá saber?
A mídia evita a complexidade oferecendo produtos de interpretação literal, ou melhor, minimal. Espécie de caça à polissemia, ela se impõe na demagogia da facilidade - fundamento do sistema midiático de comunicação.
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De fato, hoje era mais impactante e mais palatável divulgar na manchete a prisão de alguns pilantras, mas as linhas debaixo poderiam contemplar a heróica jornada. Com isso ela não contribui para apagar a própria história?
A indústria cultural (na qual se inclui a mídia) veicula uma servidão que ignora a si mesma, pois submete o expectador ou o leitor a hábitos preestabelecidos. Seminformação é próprio da mídia.
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Mas professora, desculpe a insistência. Neste caso não foi seminformação, mas total sonegação da informação.
A cultura tornou-se venal. Quem e quantos consomem é a questão fundamental a ser respondida para avaliar qualquer produto cultural. Recordar demanda esforço... procedimento oposto à mídia.
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E a senhora concorda com esta filosofia?
Absolutamente. Contra essa rendição ao tempo, o reivestimento da recordação em seus direitos é uma das mais nobres tarefas do pensamento. Ocorre, todavia, que a vida desse modo reexaminada requer tempo, - à distância do dia industrial e do taylorismo do espírito.
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Bem professora, ninguém mais do que a senhora conhece os percalços e glórias de sua metrópole. Muito obrigado por sua magnífica exposição. Desejamo-lhe um proveitoso feriado.
Agradeço, mas queria deixar uma esperança, que importo de Schelling (1775-1854): lá onde a Filosofia (a informação, em palavra popular) desampara e não consola, aí vem o começo da arte.
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Parabéns, distinta mestre. Esperamos reencontrá-la. Se nos permite, contudo, vamos tentar atrasar o espetáculo artístico. A guerra civil derramou milhares de litros de sangue de verdadeiros mártires democráticos. Foram episódios bastante distintos das pueris cantorias ouvidas nos palcos dos espetaculares protagonistas das recentes "diretas já", cujo desdobramento contemplou os estelionatários do plano cruzado, e seu produto - a constituição vilã. Já tem havido arte em demasia. Arte da encenação, principalmente. Para haver conhecimento, por decorrência a ciência, mister se torna a consciência.-
Vocês sabem o que fazem. Eu tenho feito de tudo à consciência; entretanto, o povo prefere pauloscoelhos. Que mais posso fazer?
Está bem querida professora. A senhora já contribui bastante, temos que reconhecer. Ademais, sua participação elucida nossa indagação*. Só temos agradecimentos. Com o renovar de sua licença, e na carência dos dados sonegados pelos periódicos,  tomamos a iniciativa de fornecer um material aos jovens pesquisadores.
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A História
Em 1930, com a desculpa de depurar o sistema político, Getúlio e suas parcas forças lograram golpear o tênue processo brasileiro, já bastante abalado com o advento da República. Com um governo provisório, mas de amplos poderes, Vargas fechou o Congresso Nacional, aboliu a Constituição e depôs todos os governadores. Miguel Reale (cit. em Jorge, Fernando, Getúlio Vargas e Seu Tempo: Um Retrato com Luz e Sombra, P. 258) identificou o viés ideológico:
“Getúlio Vargas foi um projeção do castilhismo positivista no Rio Grande do Sul.”

Insatisfeita, a população iniciou protestos e manifestações:
“A crise político-militar de 1932 foi um questionamento profundo do próprio caráter da república brasileira, um confronto aberto entre a democracia, defendida pelos constitucionalistas, e o autoritarismo, praticado por Vargas e apoiado pelos tenentes.” (Pontes, José Alfredo Vidigal, 1932, o Brasil se revolta)
A situação se exasperara com a nomeação do tenente João Alberto, ainda em finais de 1930, como interventor no Estado, em vez de Francisco Morato, (nome de outra importante avenida) ligado ao Partido Democrático.
No início de maio de 1932, Getúlio prometera eleições em um ano, mas os paulistas já conheciam o caráter mentiroso do oportunista caudilho. Pressupunham as más intencões. Um lustro confirmou a certeza da predição. O golpe da Polaca
O dia 23, denominação de outra momumental avenida paulistana, terminaria em grave conflito armado*.
A revolução acabou eclodindo precisamente em 9 de julho, sob o comando dos generais Bertolo Klinger e Isidoro Dias. O "Eixo" mantinha na ponte de comando um tal de Espírito Santo Cardoso. De "santo" evidentemente só continha o prenome, mas não me pergunte se era ancestral de Fernando Henrique.
Alistaram-se ao combate perto de cincoenta mil paulistanos, mas era pouco, ínfimo diante das forças enfeixadas pela ditadura. Ademais, os paulistas não tinham prática alguma no manuseio das armas. Eles esperavam pelas tropas do Sul e de Minas achando que viriam como aliadas para marcharem até o Rio e derrubarem o governo. Lêdo engano. O interventor Flores da Cunha não titubeou, e levou a gauchada de roldão à traição. Os primeiros confrontos se deram em Passa Quatro, no Vale do Paraíba, quando tropas federais comandadas por Eurico Gaspar Dutra (o qual pela perpetuação do maquiavelismo, seria presidente 14 anos depois) sufocaram os rebelados das cercanias, enquanto em Itararé, na divisa com o Paraná, as tropas do Rio Grande do Sul esmagaram o flanco. Em vez do apoio prometido, os paulistas ganharam chumbo grosso.
Getúlio mantinha um contingente três vezes maior, requisitado de todos quadrantes da República, armamento à vontade, infindável estoque alimentício, e ainda por cima contava com a a "logística"de Mussolini:

Torturaram-se de maneira selvagem milhares de pessoas, prendeu-se indiscriminadamente, criaram-se viúvas de maridos vivos, baniram-se adversários, cometeram-se inomináveis torpezas. O Getúlio dos charutos, das piadas e dos sorrisos ante uma nação de basbaques foi simplesmente o mais hipócrita dos ditadores.
(Muniz, Edmundo, cit. Jorge, Fernando, p. 7/8 )
Na ditadura Vargas, todos os direitos e garantias individuais foram suspensos. O livro Falta Alguém em Nuremberg, de David Nasser, elenca várias formas de torturas, como: esmagamento de testículos com alicates, extração de unhas e dentes, introdução de duchas de mostarda na vagina de mulheres, queima de seios com cigarros, introdução de arame nos ouvidos, aquecimento de órgãos genitais com maçarico e outras torturas cruéis, só superadas no Regime de 1964.
(www.expo500anos.com.br/painel_11.html)
O levante se estendeu por três meses. Ao cabo, restou o bizarro:
O país ficou entregue, como não é segredo para ninguém, a uma quadrilha de assassinos e torturadores e de gatunos profissionais, que tinham carta branca para a consumação dos crimes mais hediondos contra os adversários do regime.
(Silva, Hélio, A Crise do Tenentismo, p. 112/119; cit. Andrade, Manoel Correia de, A Revolução de 30 - Da República Velha ao Estado Novo, p. 86)
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Notas
* Matos, Olgária, Filosofia a polifonia da razão: filosofia e educação. - São Paulo: Scipione, 1997.
** O confronto que resultou na morte dos jovens Mário Martins de Almeida, Euclides Bueno Miragaia, Dráusio Marcondes de Souza e Antônio Américo de Camargo Andrade, e acirrou ainda mais os ânimos. A sigla MMDC, de Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo, passou a denominar uma sociedade secreta contra o governo central. O Parque Ibirapuera abriga um monumento em homenagem aos jovens heróis. Ele coroa a tumba onde eles estão enterrados, juntamente com outros artífices da memorável insurreição.

Veja:
A introdução do fascismo no Brasil

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