domingo, 10 de junho de 2012

Paradoxos e prejuízos do regime presidencialista - I

A democracia é o pior regime, com exceção dos  demais. Winston Churchill
Abandonar a busca da realidade e do valor absoluto e imutável pode parecer um sacrifício. Mas esta renúncia é a condição requerida para se empenhar numa vocação mais vital - a procura dos valores que podem ser assegurados e compartilhados por todos, porque estão vinculados aos fundamentos da vida social. É uma busca em que a filosofia não encontrará rivais mas sim colaboradores em todos os homens de boa vontade. John Dewey (1859-1952)
Para cumprir o desígnio etimológico de democracia, poderia uma simples pessoa congregar a vontade geral da Nação,  assim fazendo jus ao regime que permitiu sua eleição? A negativa é óbvia.
Nem sequer um doutrinário da democracia como Rousseau, com a concepção organicista da volonté générale, princípio tão aplaudido por Hegel, pode forrar-se a essa increpação uma vez que o poder popular assim concebido acabou gerando o despotismo de multidões, o autoritarismo do poder, a ditadura dos ordenamentos políticos. BONAVIDES, P. : 56
E se, por tese, a presença de um moisés catalizasse todas as aspirações, o que faríamos com as representações partidárias? E sem partidos como haver democracia? Eis o paradoxo: o sistema que se diz democrático, sob o regime presidencialista na verdade só pode ser, e sempre será, no máximo, apenas parcialmente democrático. Dessarte a forma de exercício da democracia desce do seu áureo pedestal  para ser função destinada a parte do povo, e geralmente  ínfima parte, a parte que sobe à cabine de comando.. Ainda que militando em cátedras bastante distintas, o notável sociólogo Maurice Duverger e o célebre físico nuclear  Franz Oppenheimer vislumbraram semelhante perfil:
A idéia de que a política é por um lado uma luta, um combate entre indivíduos e grupos, pela conquista de um poder que os vencedores utilizam em proveito próprio e em detrimento dos vencidos e, por outro lado, ao mesmo tempo, um esforço no sentido de realizar uma ordem social em proveito de todos, é o fundamento essencial de nossa teoria de sociologia política. DUVERGER, M,, Sociologia Política: 27  
O Estado, totalmente na sua génese, essencialmente e quase completamente durante os primeiros estádios da sua existência, é uma instituição social, levada a efeito por um grupo vitorioso de homens sobre um grupo derrotado, com o único propósito de regular o domínio do grupo vitorioso sobre o vencido, defendendo-se da revolta interna e dos ataques do exterior. Teleologicamente, este domínio não seguia outro objectivo que não fosse a exploração económica dos vencidos pelos vencedores. OPPENHEIMER, F. (1861-1943) www.farolpolitico.blogspot.com
A definição do francês ainda contém mais um paradoxo: de que modo conciliar o "proveito próprio em detrimento dos vencidos" com a "ordem social em proveito de todos"? Evidentemente ambos são excludentes.
O quadro desenhado pelo norteamericano, todavia, choca não somente pela realidade constatada no Eua e alhures. O modelo se faz ideal para se perfilarem os mais capazes gatunos e vigaristas - afinal se o ladrão arrisca tudo para passar sua vida às custas do suor alheio, o que não fará para desfrutar do inimaginável  montante produzido pelo suor da Nação inteira, sendo ainda inalcançável, e até protegido pela lei?
Se pudéssemos retirar a cobertura turva da antiguidade e rastrear o princípio de suas origens, não encontramos nada melhor que o principal rufião de alguma quadrilha turbulenta cujos modos selvagens ou a astúcia superior lhe valeram o título de chefe entre os saqueadores e que, ao aumentar seu poder e estender o campo de suas depredações, intimidou as pessoas pacíficas e indefesas a comprar sua salvação em troca de tributos freqüentes. A pele não mudou nem com o tempo. TOM PAINE 
Outro flagrante paradoxo introduzido pelo presidencialismo dá conta que uma vez legitimamente eleito, caso não cumpra suas promessas de campanha, frustre o eleitor de um ou de outro modo, neste incluído até mesmo qualquer ato de corrupção, o presidente ainda assim mantém seu "direito" de continuar prejudicando a Nação a seu belprazer. À pioneira democracia tal ímpeto seria intolerável, porquanto o presidente estaria imbuído de maiores poderes do que os reis absolutista que substituia:
Se o governo se exceder ou abusar da autoridade explicitamente outorgada pelo contrato político torna-se tirânico e o povo tem então o direito de dissolvê-lo ou se rebelar contra ele e derrubá-lo. LOCKE, J., Second treatise of civil government: 184
Note-se que o farol iluminista não conjecturou processo judicial, a rigor nem mesmo parlamentar, posto não se tratar de uma ação que vise justiça, mas a conveniência do povo. Tratamos de uma questão simplesmente ética, não dialética. Voltaire  (cit. Chevallier, tomo II: 67) captou e transcreveu com maestria:
A Nação inglêsa é a única da terra que chegou a regulamentar o poder dos reis resistindo-lhes e que de esforço em esforço, chegou, enfim, a estabelecer um governo sábio, onde o príncipe, todo-poderoso para fazer o bem, tem as mãos atadas para fazer o mal; onde os senhores são grandes sem insolência e sem vassalos, e onde o povo participa do governo sem confusão
Apenas a ameaça é forte para o povo exercer efetivamente a prerrogativa, em muitos episódios britânicos sobejamente comprovados.
Acresce que, para Locke, a força por si só não legitima o direito, dado considerar que o direito precede o Estado e que o povo é superior aos governantes. Aliás, o poder legislativo (legislature), apesar de ser um supream power, não é um poder absoluto, estando limitado pelo fim para que foi instituído o governo, que é a protecção da vida, da liberdade e da propriedade dos homens: the legislative being only a fiduciary power to act for certain ends, there remains stil in the people a supream power to remove or alter the legislative when they find the legislative act contrary to the trust reposed in them (...) thus the community perpetually retains a supream power. http://farolpolitico.blogspot.com/2007/10/locke-john-1632-1704.html
O Eua, contudo, desprovido da tradição real e parlamentarista, preferiu adotar a inovação de Montesquieu, introduzindo o Poder Judiciário: 
Quando na mesma pessoa, ou no mesmo corpo de magistrados, o poder legislativo se junta ao executivo, desaparece a liberdade; pode-se temer que o monarca ou o senado promulguem leis tirânicas, para aplicá-las tiranicamente. Não há liberdade se o poder judiciário não está separado do legislativo e do executivo. MONTESQUIEU, O Espírito das Leis, Livro XIX.
O barão de La Brède, todavia, cuidou de advertir: a democracia somente seria viável em pequenas extensões territoriais. A estabilidade política e mesmo econõmica do colosso se deve a original divisão espacial do poder 
Somente através da união federativa a república, que durante os séculos posteriores à República Romana foi considerada uma forma de governo adequada aos pequenos Estados, pode tornar-se a forma de governo de um grande Estado como os Estados Unidos da América. MABLY, cit. BOBBIO, 1987: 103) reconheceu a eficácia da solução Observações sobre o Governo e as Leis dos Estados Unidos da América (1784): 
Vejam com que arte, na comuna americana, tomou-se o cuidado, se assim posso me exprimir, de espalhar o poder, a fim de interessar mais gente pela coisa pública. O poder administrativo nos Estados Unidos não oferece em sua constituição nada central nem hierárquico; é isso que o faz não ser percebido. O poder existe, mas não se sabe onde encontrar seu representante. TOCQUEVILLE, 1998: 79
Com a faina pela justiça em lugar da simples conveniência, os norteamericanos se obgrigaram a regulamentar a salva-guarda inglesa instituindo o processo de Impeachment. Como todo o processo, a urgência da decisão fica de plano solapada, de maneira que em vez de simplesmente dissolvê-lo, ou derrubá-lo, o povo pode ser tentado à solução mais radical, trazida pelo contemporâneo de Locke:
Assentamos em que um príncipe não pode deixar de cumprir as leis sancionadas nas Cortes por ser maior o poder da república que o dos reis; e dizemos agora que se, apesar das nossas instituições e da força do direito, chegasse a violá-las, se poderia castigá-lo. Destroná-lo e até,exigindo-se as circunstâncias, impor-lhe o último suplício. SPINOZA, B., Tratado Político
Foi o que aconteceu em primeiro lugar na França, e depois na história de vários povos:
Essa contradição de idéias reproduziu-se, infelizmente, na realidade dos fatos na França. E, apesar de o povo francês ter-se adiantado mais do que os outros na conquista de seus direitos, ou melhor dito, de suas garantias políticas, nem por isso deixou de permanecer como o povo mais governado, mais dirigido, mais administrado, mais submetido, mais sujeito a imposições e mais explorado de toda a Europa. BASTIAT, Frèderic, A Lei: 63
Constitui um lugar-comum histórico relacionar o surgimento do nacionalismo moderno com a Rev. Francesa. A afirmação é válida, no sentido de que a Revolução Francesa evoluiu para uma espécie de totalitarismo democrático devido ao seu culto do povo sem restrições, o primeiro a instituir algo como o serviço militar universal, 'uma nação as armas'. LUCKÁCS, John, O Fim do Século 20: 226
Não poucas vezes os vice-presidentes mandam simplesmente assassinar os presidentes, causando um alvoroço de tal sorte que o ímpeto do populacho escorre de somenos importância, quando não lhe enche de júbilo. Não obstate parece ser regra comum que o aspirante desde a posse costuma "torcer contra", até conspirar contra o titular, ainda que da mesma grei, E se mandante do crime, por ascender ao comando supremo calará, ou obstaculizará, ou impedirá de uma ou outra forma que o processo investigatório curse os trâmites tipificados, obtendo, dessarte, conclusões no máximo especulativas. Esta chocante realidade, ainda que não por motivos populares, claro, e geralmente até ao contrário, repetiu-se algums vezes nos Eua, e várias alhuires. Quantos presidentes morreram precocemente, seja por tiro à queima roupa, de envenenamento, doença repentina, mesmo por suicídio ou estranho acidente?

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