segunda-feira, 22 de março de 2010

Desnorteio


Meios de comunicação social parecem perdidos no espaço.

Só que hoje não sou eu que estou sem assunto - é o Brasil. O governo nos surrupiou, entre outras coisas, o 'assunto'.
JABOR, Arnaldo, cineasta, investido na função de jornalista de rede nacional.
O Sul, 23/3/2010
É verdade que o público acolhe romances policiais, dramas cinematográficos, novelas de TV, até gente encerrada em casa. Quiçá apenas por isso, pela potencialidade de audiência, sofríveis diretores se esmeram à produção artística sobre um fato banal. Este se distinguiu pelo modo inusitado da morte da criança - caída de um alto andar de um edifício. Quedas nem surpreendem, mas se tratando de tão doce criatura, ainda mais se por culpa de quem lhe cabia proteger, reconheço que é tão ou mais chocante do que o impacto que a vitimou. Mas querer transformá-lo em bomba atômica, de efeito interminável, este despropósito sim, é do tamanho que almeja. Na ocasião a cobertura da imprensa já foi avassaladora, de tal sorte que em seguida ao inédito evento houve uma onda de semelhantes atentados. Ora telas e impressos, e ondas de rádio, e todos veículos disponíveis à comunicação de massa resgatam o lamentável episódio, para a Nação voltar a participar.
Pois não. Interrompo minha programação, e atendo a besteira.
Que diferença fará minha opinião, ou a de vários, aos atentos jornalistas? O que pretendem medir? Grau de confiança oferecido ao pretenso protetorado, ou número de clicks?
Como se trata de um julgamento, é óbvio que mais uma vez o país se dividirá apaixonado, de novo por assunto totalmente mórbido, porém desta feita ainda completamente estranho a seu respeito. Exceto ao casal réu, que também duvido atingir, seja qual for a sentença de nada servirá para ninguém mais, nem mesmo aos parentes da inocente vítima, que dirá a mais de cem milhões que são empurrados ao acompanhamento da lamentável peça de roteiro tão real quanto medíocre, ainda que trágico. Será por satisfazer o alcunhado sadismo?
Informantes confessam a falta de assunto. Claro. O maciço deslocamento das focas para cobrir episódios particularizados, em detrimento à razão que lhes cabe, implica em desdém à sua própria matéria-prima. Ou seja: carecem de informação.
Se são anormais, não têm então nada a ver com o povo?
Não é assim: o povo tem necessidade das anomalias,
embora não exista por causa delas.

NIETZSCHE, F.
, O livro do filósofo: 74
O atual oferece o mesmo surreal:
"No caos não há eventos. Para haver acontecimentos tem de haver uma normalidade a ser rompida. Mas nada acontece, pois a normalidade ficou normal." (Idem)
Se precisam adicionar molho de sangue para causar impacto; tendo em vista que o governo "surrupiou" até o assunto; e por não contarmos com nenhum jornalista da estatura de um LACERDA, sugiro requentar aquele há muito derramado, mas que misturado pode satisfazer, preencher todas as expectativas elencadas. Que tal série comparativa entre o desempenho de GETÚLIO VARGAS e a performance do atual clone, dando ênfase à escolha derradeira feita pelo original? Poderia iniciar à moda de isenta e despretensiosa enquete:
A popularidade de LULA comparada a de GETÚLIO VARGAS é


Semelhante
Maior
Menor


A forma de LULA tratar os trabalhadores comparada com o proselitismo de GETÚLIO VARGAS é


Idêntica
Mais eficaz
Menos eficaz


LULA voltará em 2014, como GETÚLIO VARGAS voltou?


sim
não


Depois de passar a presidência, qual será o destino de LULA?


Secretário da ONU
Guarujá
Outro rumo
Certamente será coroada de intensa participação, além de alarmar os insonsos.
* * *
Francamente. Já não chega enorme contingente requisitado para atuar diretamente no processo em epígrafe, dezenas com "notável saber jurídico", e outras tantas ignorantes. Mister bombardeio midiático. O custo, ainda que diluído, recairá à própria sociedade na qual os órgãos se inserem. Não vem ao caso. Igualmente pouco importa o que sente a família enlutada: interessa sua mais comovida expressão. Pouco importa tumultuar o procedimento, aliás de preferência. Tampouco se acarretar afrontoso prejuízo à defesa dos acusados, condicionando o júri e demais integrantes por pressão popular. Comoção geral! Isso é o que interessa. E o que consagra.
A cobertura, de Oscar, de celebridade, tal qual fosse estupendo feito, exige fotos, e vídeos, e batalhões de repórteres, e câmeras, e flashes aos depoimentos de peritos, testemunhas, e parentes, e vizinhos, pesquisas de opinião, enquetes, apostas, sorteios, pedidos de comentários, entrevistas com experts jurídicos, psicólogos, psiquiatras, até padres. Como se fosse típico emblemático, caso de definir o rumo nacional, sujeito a desfecho de graves conseqüências aos brasileiros, e que por isso todos devem prestar atenção, de preferência se manifestando.
Maior absurdo jamais presenciei. Rodeio de hienas a versificarem em túmulo?
O êxito da gigantesca mobilização já está garantido. Vitória de Pirro.
A sensação que tenho é de que a violência vai crescendo como uma doença letal, uma verdadeira epidemia, que vai contaminando todos, aos poucos. As notícias de crime chegam diariamente, sem dó nem piedade. E, se a gente descuida, vira tudo número, estatística.
BARROS, Jorge Antônio, em 4/3/2009. - http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/reporterdecrime/#16533.
Pois esta ação não deveria correr por segredo de justiça, assim evitando a contaminação?
Responde-nos o criador da metonímia:
Se o justo aparecer na terra, será açoitado, atormentado, posto em cadeias, cegado de ambos os olhos, e, finalmente, depois de todos os martírios, pregado numa cruz, para chegar á compreensão que o importante neste mundo não é o ser justo, mas parecê-lo.
PLATÃO, República: 361c
Ah, tá. Adivinhão, ou projetista? Exemplo ao povo? Belo exemplo, especial à infância. Mostrar que a Justiça existe? Impossível. Nenhum veredicto compensa a morte.
A insistência chega na borderline à vingança. Submeter os já por demais apenados não tem a menor serventia. Ao contrário. Se absolvidos, traduzirá a injustiça de tê-los presos; e se condenados à longa prisão, à vista da sociedade e dos entes queridos, aplacará a fúria, mas a obrigatória recordação assim forçada aumentará o sofrimento de todos, inclusive do círculo íntimo à vítima. Nesta semana o sepulcro da pequenina criatura se tornou terminal de imensa romaria. Aviltam-se emoções à contrapartida ineficaz, e até prejudicial. Tudo leva a um climax de difícil reversão, especialmente aos mais próximos.
Por outro lado, se atendido o pleito generalizado de condenação, a própria sociedade arcará com o preço, ainda que inexpressivo, de manter indivíduos impedidos de cuidar da própria subsistência. Por fim, se a Justiça, neste caso, apenas pode se limitar à prisão, de novo qualquer julgamento será precipitado. Alguma jurisdição condenatória não atenderá, sequer, a um sentimento vingativo. Os réus já se encontram presos, tremendamente humilhados, e até pediram para não serem agora julgados. Preferem permanecer na cela.
Mas o povo, de fato, anda sedento pela Justiça. Quando se poderá julgá-la?
Tudo indica se tratar de argumento apropriado à promoção dos incontáveis agentes, em caleidoscópio, oportuno à comercialização publicitária. Pela quantidade de tempo e de profissionais envolvidos, até parece consagrar a Teoria da Conspiração. São inúmeras grades de massa que apresentam casts e scripts caprichosamente alocados em torno dos que por um ou outro motivo se desvirtuam. Vai ver, PLATÃO, NIETZSCHE e JABOUR tem razão. Meu espectro diverge. Alienando o povo em viés por completo negativo, a mesa de hoje até pode abundar; porém, de onde os comensais tirarão o sal de amanhã?

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