quinta-feira, 4 de março de 2010

A utopia da democracia

Para emprestar significado preciso ao modelito grego, de pouca serventia é conhecer a formação etimológica. Lógica igualmente de lá procede: ἔτυμον (étimo, o verdadeiro significado de uma palavra, de 'étymos', verdadeiro) e λόγος (lógos, ciência, tratado). E o pior é que ambas - a lógica e a democracia - para "o mais fiel lacaio de PLATÃO", requer confusão. A HEGEL logo é o sufixo que denota escolha arbitrária sobre um dos dois vértices chamados “intercambiáveis” (na verdade contraditórios) para colocá-lo em confronto com o outro, daí restando despojos cognominados síntese:
A lógica de Hegel contém três termos: a afirmação (a tese), a negação (a antítese) e a síntese, que resulta da negação da negação. O último termo, uma dupla negação, é também outra afirmação, mas engendrada pelo confronto dos dois termos anteriores. Hegel chama essa estrutura lógica de dialética. ABRÃO B.: 353.
Poderíamos elencar centenas de obras de sucesso que se dedicam a discorrer sobre o conceito de Democracia. A intensa produção e a enorme demanda espelham a falta de entendimento.  Aliás, ela em si mesma, como o corpo e a alma, o concreto e o abstrato, a idéia e a forma, essas interioridades aferidas na caverna, são contraditórias. A rigor, seu propósito é impossível.
A composição tem no prefixo o povo, e no sufixo cabeça, isto é governo. Ela se destaca do povo, que é o corpo. Ou seja: é impossível todos governarem todos. O povo pode ser do governo; mas o contrário, não. Em qualquer lugar do mundo, entretanto, afirma-se categoricamente: "Democracia quer dizer governo do povo, pelo povo, para o povo". Em cada lugar, todavia, ela é praticada de modo diferente. Não há dois países com o mesmo padrão.
Dois fundamentos, contudo, logram unanimidade: a democracia requer eleições dos governantes pelo próprio povo, em sufrágio universal; e requer a divisão dos poderes, entre Legislativo, Executivo e Judiciário. Particularmente entendo que a rigor nesta arquitetura existe apenas um poder - o Legislativo - donde derivam os outros; porém não é isso que pretendo abordar, e sim o primeiro fundamento - a forma de designação dos titulares, em especial do Executivo.
Não só nos países autocráticos, como naqueles supostamente mais livres - como a Inglaterra, a América, a França e outros - as leis não foram feitas para atender a vontade da maioria, mas sim a vontade daqueles que detêm o poder. TOLSTÓI, Leon, A escravidão de nosso tempo, 1900, cit. WOODCOCK, G.:106
Durante a maior parte da existência humana a briga por território, sua defesa ou ampliação, constituiu a excelência dos governos. Em função disso, é que, conforme o resultado objetivado ou alcançado, se adequavam os ordenamentos internos. Desse modo, os generais de batalha sempre foram os preferidos de todo o povo, quase como aclamação, de maneira que não suscitavam maiores dúvidas, e exerciam seus poderes até a morte.
Com o advento de um pouco de civilização, esses generais tiveram o privilégio de passar o bastão aos herdeiros, porque junto com ela veio a idéia de paz, esta garantida pela disseminação da postura cristã. O clero, tido como o mais sábio, e de fato monopolizava a cultura, ditava quem deveria ser o elo de ligação entre a Terra e o Céu, entre as Nações e DEUS. Deste modo os escolhidos ganhavam o reino, o qual passava aos herdeiros, por vontade divina. Não havia nem força nem razão à contestação. O expediente a todos satisfazia. TOM PAINE assim retratou:
"A chave de SãoPedro e a chave do Tesouro ficavam guardadas uma sobre a outra, e a multidão, atônita e ludibriada, adorou tal invenção."
Quando se descobriu que o Sol não girava sobre a Terra, como apregoava Roma, houve uma tentativa de retorno aos generais por escolha terráquea, mas a emenda se mostrou ainda pior:
Através da vontade geral, o povo-rei coincide, miticamente, de
agora em diante, com o poder; essa crença é a matriz do totalitarismo.

COCHIN, Auguste, cit. FURET: 1989: 191
Depois de CROMWELL, e principalmente após NAPOLEÃO, a pergunta se tornou fundamental: que tipo de sábio poderia governar? Os próprios ingleses minimizaram o problema, compondo uma salada de frutas - mantiveram o Rei, mas o Legislativo passou a ser determinado pelo povo, através de votos individuais. Desse modo inverteram a situação: em vez de escolherem um sábio para governar, elaboraram uma série de regras para refreá-lo, se possível, ou para se livrar dele, se incontrolável.
"Se o governo se exceder ou abusar da autoridade explicitamente outorgada pelo contrato político torna-se tirânico e o povo tem então o direito de dissolvê-lo ou se rebelar contra ele e derrubá-lo." (LOCKE, J. Second treatise of civil government: 184; cit.BURNS: 490)
Para melhor identificar os representantes, eles deveriam informar, antes de se candidatarem, se estavam mais ao lado do povo, ou do Rei, o qual também tinha lá seus partidários. O Executivo seria, como até hoje é, fruto de um consenso desses representantes do povo. Talvez tenha sido a fórmula mais sábia à escolha dos dirigentes, minimizando os erros de avaliação tão comuns à grande massa. O modo parlamentar, todavia, hoje, é raridade. Em geral, os países elegem, de modo direto, seus presidentes, por causa de dois argumentos: quase não há mais monarquia; e o povo não precisa delegar representantes para que este escolha o que lhe parece mais conveniente.
O homem bom também quer ser verdadeiro
e crê na verdade de todas as coisas.
Não só da sociedade, mas também do mundo...
De fato, por que razão o mundo deveria enganá-lo?
NIETZSCHE, F., O livro do filósofo: 55
"Tudo é duplo no homem, tudo se joga entre o tempo e a eternidade. Só o amor (...) pode rasgar o reino da necessidade." (CHÂTELET, F.: 43)
Então o povo escolhe direto seu "amor", e assim tem feito: elege o que lhe parece melhor, e alija quem merece a a exclusão. Será? Quase. Eis o grande dilema: o quase significa frustração:
O comerciante está convencido de que a lógica é a arte de provar à vontade o verdadeiro e o falso; foi ele que inventou a venalidade política, o comércio de consciências, a prostituição dos talentos, a corrupção da imprensa. Sabe encontrar argumentos e advogados para todas as mentiras, todas iniquidades. Somente ele nunca se iludiu sobre o valor dos partidos políticos: julga-os todos igualmente exploráveis, isto é, igualmente absurdos...
PROUDHON, P.-J., Filosofia da Miséria, Tomo I: 351.
Um homem vota em um partido e permanece infeliz; ele conclui que era o outro partido que traria o período de felicidade e prosperidade. No momento em que estivesse desencantado com todos os partidos, já seria um homem idoso, à beira da morte. Seus filhos teriam a mesma crença de sua juventude, e a oscilação contínua.
RUSSELL, Bertrand, Ensaios céticos: 121.

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