terça-feira, 31 de março de 2009

O socialismo de Adam Smith


O Liberalismo pode encontrar algumas de suas raízes no humanismo que se iniciou com a contestação da autoridade das igrejas oficiais durante a Renascença, e com a facção Whigs da Revolução Gloriosa na Grã-Bretanha, cuja defesa do direito de escolherem o seu próprio rei pode ser vista como percussora das reivindicações de soberania popular. Wikipédia

Eu sustento, por minha vez, que o excepcional, que a originalidade extrema do povo inglês radica em sua maneira de tomar o lado social ou coletivo da vida humana, no modo como sabe ser uma sociedade. Nisto sim é que se contrapõe a todos os demais povos e não é questão de mais ou de menos. Talvez, no tempo próximo, se me ofereça oportunidade para fazer ver tudo que quero dizer com isto. GASSET, José Ortega Y, Rebelião das massas

Afinal, parece ter-se cristalizado, na opinião pública e em muitos círculos intelectuais, a idéia de que o socialismo, se ainda tiver algo a dizer, só o fará se embebido das grandes e boas tradições do liberalismo WALQUIRIA DOMINGUES LEÃO DO RÊGO

Por milenar condensação ideológica a opinião pública  resiste,  mas nos círculos intelectuais chega a ser incompreensível a morosidade da assimilação - afinal há séculos ADAM SMITH preconizou pelo óbvio:
O esforço natural de cada indivíduo para melhorar suas própria condição constitui, quando lhe é permitido exercer-se com liberdade e segurança, um princípio tão poderoso que, sozinho e sem ajuda, é não só capaz de levar a sociedade à riqueza e prosperidade, mas também de ultrapassar centenas de obstáculos inoportunos que a insensatez das leis humanas demasiadas vezes opõe à sua atividade.
SMITH, Adam,
cit. DOWNS: 56
O desenvolvimento social só é possível mediante iniciativas individuais..
Os interesses dos indivíduos se compensam entre si e o produto final coincide com o interesse da comunidade. Em outras palavras, a consciência do indivíduo é árbitro e condutor tanto do interesse público quanto do privado que não é obra do acaso.  TOCQUEVILLE, 1997: 18
Eis o pleito da modernidade:
O terceiro princípio vital para a política do amanhã visa a quebrar o bloqueio decisório e colocar as decisões no lugar a que pertencem. Isso, que não é simplesmente um remanejamento de líderes, e o antídoto para a paralisia política. É o que chamamos de ‘divisão de decisão’. CHARDIN, Teilhard, cit. FERGUNSON, N.: 48
* * *

Meu caro Sr. Smith, tem paciência; tranquiliza-te; mostra-te na prática tão filósofo como és na profissão; pensa na vacuidade, aridez e futilidade dos juízos comuns dos homens: como são poucos governados pela razão, notadamente nas questões filosóficas, que tanto excedem a compreensão do vulgo. Voltaire, cit. Stewart, D., in Smith, Adam, Teoria dos Sentimentos Morais: XLVI., em carta ao escocês endereçada
O que melhora as circunstâncias da maior parte nunca pode ser considerada como uma inconveniência para o todo. Nenhuma sociedade pode ser florescente e feliz, dos quais a parte muito maior dos membros são pobres e miseráveis. A Riqueza das Nações, Livro I Capítulo VIII
Poderíamos divisar o célebre liberal com a comenda surreal? Responde-nos BOBBIO. ( Locke e o Direito Natural: 197)
Adam Smith só não se qualificou como anticapitalista porque o século XVII era basicamente capitalista, mas sua posição a respeito da ideologia e da prática capitalista era marcada por boa dose de ceticismo. As idéias de Humbolt e de Smith se relacionavam com a tradição socialista-anarquista - a crítica libertária de esquerda ao capitalismo. Tudo isso foi pervertido de forma grosseira, ou simplesmente esquecido, na vida intelectual moderna; no entanto, penso que todas essas idéias derivam diretamente do liberalismo clássico do século XVIII.  
ROSSELI (p. 128) compreenderia o aparente paradoxo:
O socialismo nada mais é do que o desdobramento lógico do princípio de liberdade, levado às suas conseqüências extremas. Compreendido na acepção mais substancial, e julgado pelos resultados, o socialismo – movimento de emancipação concreta do proletariado - é o liberalismo em ação, a liberdade que se apresenta aos pobres.
GOBETTI (cit. RÊGO, W.D.L.: 73) aderiu a GAETANO MOSCA, CARLO ROSSELI e BENEDETTO CROCE: “O socialismo é a mais ativa das idéias com as quais temos operado na realidade com o impulso da autonomia; e também um dos maiores fatores de liberdade e liberalismo no mundo moderno.” Para maior conforto,  o economista premiado Nobel A. SEN (p.191)  ratifica. "Eu acho que o Adam Smith é um economista de esquerda; os líderes da Revolução Francesa eram grandes discípulos de Adam Smith." (O Estado de S. Paulo, 23/7/2000: B9).
Precisamos começar observando que Smith era profundamente cético quanto aos princípios dos ricos - nenhum autor (nem mesmo Karl Marx) criticou com tanta veemência as motivações dos economicamente privilegiados contra os interesses dos pobres. SEN :191
 ANTHONY GIDDENS (2000: 48): "Por exemplo, os defensores de filosofias de livre mercado eram vistos no século XIX como na esquerda, mas hoje são normalmente situados na direita.” A "direita"  tratou de eliminar a "subversão", em nome da ordem e do progresso de todos:
Para Lukács, o liberalismo – que se inspirava na doutrina econômica clássica; que supunha suficiente a garantia de liberdade jurídico-formal para ação do homo economicus engendrar automaticamente um estado social e cultural de felicidade – foi desmoralizado, na prática, pela intervenção do Estado na vida econômica, pelo contrôle alfandegário, pelo protecionismo e sobretudo pelos monopólios.  KONDER, 1980: 80
O colosso marxista requer a mão visível do Brucutú. Sem ela MARX não tem sentido:
Enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do Estado - e, portanto, com o objetivo de limitar o poder - os direitos sociais exigem, para sua realização prática, precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado. BOBBIO, Norberto, A Era dos Direitos: 72
Esquerdistas de vanguarda, finalmente, recebem a luz do novo milênio; por sinal, a mesma daquele passado em tela:
Ao destacar os limites de um liberalismo que tangencia, mas nunca incorpora devidamente, o socialismo, Perry Anderson deposita suas esperanças em um marxismo renovado, capaz de aprofundar, em seu projeto de socialismo, os valores e as instituições da democracia liberal. Afinidades seletivas; Seleção e apresentação, EMIR SADER; tradução, Paulo Cesar Castanheira. - São Paulo : Boitempo, 2002; cit. MUSSE, Ricardo, Um marxismo renovado; Folha de São Paulo. 9/11/2002.
M. FERGUNSON (p. 181) há meio século já apontava: “A idéia de que a harmonia social decorre em última análise do caráter do indivíduo aparece através de toda a História.”
A participação de todos no sistema liberal não significa  igualdade de rateio, mas a excelência social. Depende do agente calibrar o grau de sua contribuição, de acordo com suas expectativas, os valores que cada um privilegia.
Houve uma ruptura mundial com a tradição do ‘fordismo’, na qual a produção em massa reinava suprema e os trabalhadores individuais eram um fator de custo a minimizar. A nova abordagem da manufatura valoriza o indivíduo e as equipes de trabalhadores qualificados, constantemente treinados, capazes de assumir responsabilidades, de usar redes e de se organizarem em regime de autogestão os empregados terão, graças ao aumento de seus conhecimentos, uma fatia maior dos meios de produção. DERTOUZOS: 270
ADAM SMITH (Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, vol. I.: 98) ofereceu a solução cento e cinqüenta anos antes de MARX, sem requerer nenhum confronto, muito menos mortandade:
Contudo, estas diferentes raças de animais, embora da mesma espécie, não têm praticamente qualquer utilidade umas para as outras. A força do mastim não encontra qualquer apoio na rapidez do galgo, ou na sagacidade do lulu, ou na docilidade do cão de pastor. Devido à falta da capacidade ou propensão para a troca, os efeitos destes diferentes talentos e faculdades não podem tornar-se num valor comum da espécie, e em nada contribuem para o seu melhor aprovisionamento ou maior conforto. Cada animal continua a ver-se obrigado a manter-se e defender-se a si mesmo, isolada e independentemente, e não tira qualquer vantagem da variedade de talentos com que a natureza dotou seus companheiros. Entre os homens, pelo contrário, as capacidades mais dissemelhantes são úteis umas às outras; os diferentes produtos dos seus respectivos talentos são, graças à predisposição geral para cambiar, permutar ou trocar, levadas, por assim dizer, a um fundo comum, onde cada homem pode adquirir aquelas parcelas da produção dos outros de que tiver necessidade.
GEORGE HERBERT MEAD (1863-1931, A filosofia do ato: 153; cit. ABBAGNANO: 29) e JOHN DEWEY bem souberam captar:
A comunidade fala-lhe com uma mesma voz, mas cada indivíduo fala partindo de um ponto de vista diferente; no entanto, estes pontos de vista estão em relação com a actividade social cooperativa e o indivíduo, ao assumir sua posição, encontra-se implicado, devido ao próprio carácter da sua resposta, nas respostas dos outros.
A natural difusão pode ser verificada nas interações subatômicas - “cada partícula ajuda a gerar outras partículas, as quais, por sua vez, a geram”:
A realidade física é concebida como uma teia dinâmica de eventos inter-relacionados. As coisas existem em virtude de suas relações mutuamente compatíveis, e tudo na física é tem de partir da exigência de preconceitos para modelos diferentes, sem dizer que é um mais que seus componentes sejam compatíveis uns com os outros. Chew escreve num de seus primeiros artigos: ‘Alguém que é capaz de olhar sem preconceitos para modelos diferentes, sem dizer que um é mais fundamental do que o outro, é, automaticamente, um bootstrapper.' Em outras palavras, essa filosofia bootstrap, ou filosofia de rede, leva a atitude de tolerância. CAPRA & STEINDHAL: 129
Tudo excede a padronização, a centralização, a concentração da energia, do dinheiro, do poder: "Essa nova civilização tem sua própria e distinta concepção de mundo, maneiras próprias de lidar com o tempo, o espaço, a lógica e a relação de causa e efeito." (ORMEROD,Paul, 1996: 194)
O novo Individualismo – a serviço do qual, quer queira, quer não, está o socialismo – será a harmonia perfeita. Será o que o Grego buscou, mas não pôde alcançar completamente, a não ser no plano das Idéias, porque tinham escravos, e os alimentava; será o que a Renascença buscou, mas não pôde alcançar completamente, a não ser no plano da Arte, porque tinham escravos e os entregavam à fome. Será completo e, por meio dele, cada homem atingirá a perfeição. O novo Individualismo é o novo Helenismo. WILDE, Oscar : 86
Há mais de meio apregoava o socialista BERTRAND RUSSELL (Ideais Políticos: 10)"Não um único ideal para todos os homens, mas um ideal diferente para cada homem é o que deve ser alcançado, se possível." "Isto faz dos seres vivos elementos numa vasta rede de inter-relações que abarca a bioesfera de nosso planeta – que em si mesma é um elemento interligado dentro das conexões mais amplas do campo psi que se estende pelo cosmos." (LASZLO: 198)
Do lado da sociologia, sabe-se que mesmo um autor como Luhmann acabou por se ver compelido a introduzir uma mudança radical no paradigma das relações entre a pessoa e o sistema social. Deixando de ser categorizada como mero ambiente do sistema social, a pessoa passa a valer, também ela própria, como sistema. A pessoa vê-se, assim, chamada - e legitimada - a desafiar permanentemente o sistema social, como fonte de 'contingência', 'irritação', mesmo desordem. De acordo com o 'novo paradigma luhmanniano', na construção de sistemas sociais, a complexidade opaca dos sistemas pessoais aparece como indeterminabilidade e contingência. Não sobrando para o sistema social outra alternativa que não seja 'interiorizar a complexidade' irredutível, emergente da pessoa. O que bem justificara a pretensão de apresentar a nova teoria de Soziale Systeme (1984) como uma Zwang zur Autonomie. ANDRADE, M.: 26
BRUNO LATOUR (Das Sociedades Animais às Sociedades Humanas; cit. WITKOWSKI: 207) apresenta sua contribuição:
Depois do livro do americano Edward O. Wilson, Sociobiology e dos ensaios do inglês Richard Dawkins, os geneticistas das populações, assim como os especialistas em insetos sociais, procuraram compreender a organização social a partir dos interesses individuais. Não existe o formigueiro; só existem as formigas. Não existe a espécie; só existe o indivíduo. Falar de um sacrifício pelo grupo é, portanto, uma impossibilidade - pelo menos se estudarmos a evolução darwiniana dos caracteres sociais. Era preciso repensar a sociedade animal como a resultante do cálculo dos indivíduos e não mais como um vasto sistema dentro do qual os animais nascem e morrem. Esta revolução entre os animais assemelha-se às revoluções que as ciências políticas conheceram duzentos anos antes.
“Ninguém duvida de que os indivíduos formam a sociedade ou de que toda sociedade é uma sociedade de indivíduos.” (ELIAS, A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1994: 16)
Existe uma acentuada complementariedade entre a condição de agente individual e as disposições sociais: é importante o reconhecimento simultâneo da centralidade da liberdade individual e da força das influências sociais sobre o grau e o alcance da liberdade individual. Para combater os problemas que enfrentamos, temos que considerar a liberdade individual um compromisso social. Essa é a abordagem básica que este livro procura explorar e examinar. A expansão da liberdade é vista, por essa abordagem, como o principal fim e o principal meio do desenvolvimento. O desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condição de agente. SEN, A. 2000:10-
"O capitalismo é essencialmente produção de massa para preencher as necessidades das massas. Mas Marx sempre trabalhou sob a concepção enganosa de que os trabalhadores estão labutando para o benefício exclusivo de uma classe alta de parasitas ociosos." (MISES, L., Teoria e História .- A luta de classes)
O que as viúvas de MARX de fato não podem admitir é que tanto as teorias de EINSTEIN, quanto as de ADAM SMITH e JOHN LOCKE são tão ou mais socialistas do que as suas:
Mas a implicação geral da teoria do equilíbrio competitivo é que o papel do governo deve ser o menor possível e um setor público pequeno implica que os custos de manutenção serão pequenos, assim como os impostos necessários para financiá-los. Na medida do possível, segundo esse modelo, as funções do Estado devem desaparecer. Para melhor servir aos interesses do povo, não deveria existir Estado. Essa é, evidentemente, uma conclusão muito semelhante aquela a que Karl Marx chegou em seus escritos políticos: sob a ótica do socialismo, o Estado desapareceria. Pode parecer irônico que o modelo econômico do livre-mercado afirme que, sob o capitalismo de livre-mercado esse fenômeno também deve acontecer; mas existem mais semelhanças do que se poderia imaginar entre a teoria econômica de uma sociedade socialista e a teoria econômica de uma sociedade baseada exclusivamente na livre iniciativa. ORMEROD, PAUL, 1996: 86
Veja
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Marxismo Neoliberal



Bibliografia



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