Se antes as famílias ao estacionarem seus carros em cima das calçadas inibiam qualquer presença indecorosa, hoje as mariposas podem se colocar na ribalta. Elas viraram passarela de travestis, gays, achacadores, flanelinhas, zeladores e prostitutas de todos calibres.Aprecie as talentosas narrativas:
Retomo a caminhada. O sol é soberano. Lamento não ter trazido os óculos escuros. Vida que segue. Vou passando pelos quiosques, de decoração e formato duvidosos. São 22 ao todo, até o Posto 6. Olho para um imenso elefante branco. É o agora abandonado hotel Le Meridien, construído em 1975. Dizem que as negociações para a retomada do negócio de hotelaria são difíceis. São poucas as promessas de compra. O preço pedido é alto. Dele os cariocas e turistas se lembram é das cascatas de fogos no reveillon. Eram belas. Passa, a meu lado, uma senhora sessentona. Ela faz continuamente o sinal da cruz e reza. Escuto ela pronunciar a Ave, Maria. Que Deus a acompanhe a guarde. Reparo em mais turistas. Serão mineiros? De onde? Olho a placa de um dos três ônibus que trouxeram de... de... Ribeirão Preto! São meus conterrâneos. Eu, aqui, distante da terra natal, lá pelas barrancas do Rio Paranapanema, quase na divisa do estado de São Paulo com Mato Grosso do Sul e Paraná. São mais de 40 anos nesta cidade querida. E eles? Cumprimento algum? Pergunto pelo chope preto do Bar Pingüim? Pelos times de futebol, o Botafogo e o Comercial?
Acreditem que é verdade! Há cocô! Cocô, não coco, no calçadão! O índice de fifis, lulus, duques e luques em Copacabana é invejável. E a produção de cocô feita por eles, sem a maior cerimônia, é uma grandeza. Quase pisei numa dessas granadas intestinais. Como? É isso mesmo. E as madames e compadres que os levam por coleiras pouco se lixam para os passantes. Logo avisto uma senhora, entrada nos oitenta, que costuma conversar com sua cachorrinha. “Mas eu não disse para você não dar bola para esse buldogue? Ele é horroroso e muito maior do que você. Você é uma cadelinha delicada e não nasceu para brutamontes como ele...” A cadelinha, ao que parece, não dá mesmo a menor bola... à dona. Late e late sem parar, amedrontando até o cachorrão que é puxado pela outra caminhante dominical. Parece que este ponto do calçadão é dos caninos. Outros se aproximam, cruzando-se na pista. Latem. Na verdade, parece que se dão bom dia, como vai, como está passando?... Ando e reparo mais nos idosos. Homens e mulheres. Ou melhor, nas pessoas da terceira idade. Elas gostam de assim serem classificadas. É lógico isso. Copacabana tem uma alta concentração de gente com mais de 60 anos. Aspecto de quem é feliz. Muitos se conhecem, trocam palavras amigas, sorriem. Por onde caminho fica a estátua do soldado mortalmente ferido. É a esquina da Rua Siqueira Campos com a Avenida Atlântica. A estátua, que alguns consideram de mau gosto, mostra um homem dobrando as pernas, antingido por balas disparadas pelas forças legalistas. Ele ainda segura o fuzil com a baioneta calada. Quando esse fato histórico aconteceu? Foi no dia 5 de julho de 1922. Uma rebelião contra a posse do presidente Artur Bernardes, eleito pelas elites de então, paulistas e mineiros (os representantes da política “café com leite”) levou oficiais e soldados a deixarem o Forte de Copacabana, para se oporem, em armas, à ordem estabelecida. Esse pelotão suicida, inicialmente de 28 militares, escreveu um capítulo heróico e dramático da vida brasileira da primeira metade do século passado. Antes de deixarem o forte eles arriaram a bandeira nacional, a rasgaram em 28 pedaços iguais, um para cada um, e saíram pela Avenida Atlântica. Dez se perderam no caminho, em meio ao tiroteio. Alguns tombaram no asfalto, outros na areia da praia. Dois saíram com ferimentos graves, Siqueira Campos e Eduardo Gomes, este mais tarde ministro da Aeronáutica. Os cariocas que, como de resto todos os brasileiros conhecem pouco da história nacional, passam “batidos” pela estátua. Turistas a observam, sempre com vagar, certamente honrando a memória do soldado atingido por balas de fuzis. Lá vou eu pelo calçadão. No sentido inverso caminha um simpático senhor que vai falando alto, dirigindo-se a um e outro passante como ele. No andar ele mostra seqüelas de um derrame cerebral. É simpático. Sempre se refere de maneira jocosa a um time de futebol que ainda não consegui identificar. Será o Fluminense? Vasco da Gama? Flamengo? Penso, como já se notou, que ele torce pelo Botafogo. Diz sempre que a “molambada” vai se dar mal... Passo por ele e o cumprimento: como vai? Tudo bem? Ele sorri e mais uma vez se refere à “molambada”. Sigo e reparo num grupo de corredores que vestem a camisa de Furnas Centrais Elétricas. Eles agora caminham, por certo com o intuito de descansar um pouco e trocar idéias. Esses corredores de equipes organizadas são cada vez mais freqüentes no calçadão. Agora passam vários turistas, alguns estrangeiros, que vêm ao calçadão com suas bermudas enormes, camisas berrantes e... calçando sapatos! Serão do Texas? Da Flórida? Da Flórida não que lá tem praia. São alemães e italianos. Médicos que vieram para um congresso.
– “Como vai, seu Rodrigues?” – saúdo um senhor parado junto ao meio fio.
– “Tudo bem? Caminhando, hein? Não pára, não. Segue seu destino. Pense na saúde em primeiro lugar.”
Eu aceno e vou em frente. O seu Rodrigues é um militar reformado. Oficial general do Exército, serviu durante décadas na Amazônia, região que conhece tanto quanto o calçadão de Copacabana. Conversamos pela primeira vez durante a última meia maratona, corrida que assistimos como espectadores privilegiados. Os corredores passavam diante dos nossos narizes. Foi ele quem me contou um pouco da história do bairro e revelou a origem do nome Copacabana. Há duas versões para esta última. Uma nasceu da devoção de católicos por uma imagem de Nossa Senhora Morena de Copacabana, a santa da devoção dos bolivianos. No século XIX foi construída uma capela perto do Arpoador e nela colocada uma imagem trazida de La Paz. Copacabana, segundo o idioma quéchua, que foi lingua geral do antigo Império Inca, vem de copa e caguana, que quer dizer lugar luminoso, resplandecente. A segunda versão dá como origem do nome o encontro, na praia, de uma imagem da santa peruana Kjopac Kahuana. Já me aproximo do Posto 6. Turistas daqui e de fora estão ao redor da estátua de Carlos Drummond de Andrade. Inaugurada em 2002, quando do centenário de nascimento do poeta maior, ela tem sido muito maltratada. Vândalos arrancaram cinco vezes os seus óculos. Se energúmenos causam danos lamentáveis a esse patrimônio, centenas e centenas de pessoas o reverenciam todos os dias. Eu, que tive a honra de conhecer o poeta em vida, numa assembléia da ABI, Associação Brasileira de Imprensa, vejo que o artista que a modelou foi extremamente feliz em seu trabalho. Drummond está sentado com seu jeito simples, de costas para o mar e olhando a calçada. Mas eis que chega um senhor que pára diante dele. Aparenta ter idade superior a 70 anos, ainda é esbelto e simpático com seus cabelos inteiramente brancos. O homem não se dirige às pessoas e sim ao poeta:
– Você é brilhante, Carlos Drummond de Andrade! Brilhante! Mas Vinícius de Moraes é maior, maior do que você!
Ele olha para as pessoas, como que num desafio.
- Vininha (tratamento íntimo de Vinícius. Só uns poucos o tratavam assim) não foi maior? Hein? Hein? Digam lá, diga lá, Drummond!
E ele recita, em gesto condoreiro, para o grupo admirado.
“Meu Deus, eu quero a mulher que passa
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!
Oh! como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pelos leves são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.
Meu Deus, eu quero a mulher que passa!”
Aplausos. Um grito de bravo! Uma bela jovem se sente homenageada. Suspira. O homem sai, dando adeusinho.
Vou na direção da peixaria do Posto 6, fim da primeira parte da minha caminhada no calçadão de Copacabana, naquele domingo. Nem paro. Só dou meia volta e ando. Recordo então as palavras de um de meus mestres, Rubem Braga, deixadas numa crônica imortal: “Ai de ti, Copacabana”, escrita e publicada em janeiro de 1958: “Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite. Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o Arpoador, e tu não viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tuas iniqüidades e de tua malícia.” Ao longe um carro de som toca o hino do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa, de André Filho, escrita e musicada em 1934, e cantada por Aurora Miranda como marchinha de carnaval. “...Berço do samba e das lindas canções Que vivem n'alma da gente És o altar dos nossos corações Que cantam alegremente” Eloy Santos Eu adoro o Rio, e já disse isso aqui milhões de vezes. Morei no Rio, em Copacabana, e tenho daqueles anos as lembranças mais doces. Mas o Rio de hoje, putz… Pegue a Linha Amarela, atravesse a ridícula Barra, que quer ser Miami, passe pelo moribundo autódromo de Jacarepaguá e saia da cidade por Campo Grande para ficar deprimido. Cada vez mais, só sobra a Zona Sul clássica — Leblon, Ipanema, Copa, Lagoa, Leme, Urca, Botafogo, Gávea. A cada dia que passa mais cercada pela incúria de seus governantes, que simplesmente não conseguem conter o crescimento das favelas, do crime, da violência, da miséria, da esculhambação. Jornalista Flávio Gomes, http://colunistas.ig.com.br/flaviogomes/tag/rio-de-janeiro
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