terça-feira, 2 de outubro de 2007

A queda


Newton, perdoa-me; descobriste o único caminho que na tua época era possível para um homem com os mais elevados padrões de pensamento e criatividade. Os conceitos que criaste guiam ainda hoje o nosso pensamento em física. Sabemos, no entanto, que tem de ser substituído por outros, mais afastados da esfera da experiência imediata, se aspiramos a uma compreensão mais profunda das relações. A.Einstein 1
POIS FOI “APOIADO NO OMBRO DE GIGANTES” 2, entre os quais o traíra ateniense vulgo Platão 3; o herege italiano Galileu; o carrasco inglês Francis Bacon; e o pretensioso francês Renè Descartes, que o rev. Isaac Newton (1643-1727) assumiu a guarda da Casa da Moeda. Com sua chave-inglesa lo astuto ogrou acesso à gerência  da  valorosa casa; e com seu sintético arranjo, o gajo abriu as portas da Royal Society, aí sentando praça até falecer.
Newton vira a queda da maçã. Embevecido, não cogitou que ele próprio poderia despencar daqueles ombros. O polonês Copérnico (Châtelet, F.: 49) lhe revendera o bilhete:
E no meio repousa o Sol. Com efeito, quem poderia no templo esplêndido colocar essa luminária num melhor lugar do que aquele donde pode iluminar tudo ao mesmo tempo? Em verdade, não foi impropriamente que alguns lhe chamaram a pupila do mundo, outros o Espírito, outros ainda o seu reitor.
Ao adquirir o premiado, saiu às entrevistas. Tudo era suscetível de explicação, desde que combinado com a explicação mecânica. O mote platônico remetia o homem a descobrir a prova pela matemática. O Verbo não teria nada a influenciar. ou a mistificar . Ou, por outra, conforme Copérnico, o Verbo se mostrava, logicamente, pelo número. Pobre Shakespeare, relegado à vã filosofia. Número se faz provado e provável. Célebre se tornou a premissa “Hypoteses non fingo”:
Sobre isto, Newton foi bastante claro: tudo que não é deduzido dos fenômenos deve ser chamado de hipótese; e as hipóteses, sejam as metafísicas ou físicas, digam respeito às qualidades ocultas ou às mecânicas, não têm lugar na filosofia experimental.
Thuillier: 69
Toda a natureza foi transformada em palco de impulsos e atrações, de dentes, alavancas, e solavancos. A cientista da Nasa, Barbara Ann Brennam, Master em Física Atmosférica na Wisconsin University, compreende:
A mecânica newtoniana descreveu com êxito os movimentos dos planetas, das máquinas mecânicas e dos fluidos em movimento contínuo. O enorme sucesso do modelo mecanicista levou os físicos do século XIX a acreditarem que o universo, com efeito, era um imenso sistema mecânico que funcionava de acordo com as leis básicas da natureza. Considerava-se a mecânica newtoniana a teoria definitiva dos fenômenos naturais.Tudo podia ser descrito objetivamente. Todas as reações físicas tinham uma causa física, como bolas que se chocam numa mesa de bilhar. (p.43)
A pesquisadora ainda lembra: “essa maneira de ver as coisas era muito confortadora.”
Além de confortadora, era muy interessante, como vimos. Newton parece ter sido um grande marketeiro. Com tal furor, sobrepujou as críticas de Locke e Shaftesbury, passou por cima da mais correta teoria ondulatória do holandês Christiaan Huygens, não sem antes se servir do cálculo diferencial de Leibniz, de quem se aproximou. Em seu epitáfio, na Abadia de Westminster, a mando sabe-se lá de quem, está escrito:
"É uma honra para o gênero humano que um tal homem tenha existido."
Na verdade foi uma lástima. Só depois de séculos de engano, tudo foi desvendado. Depois de Einstein, muitos, entre os pioneiros Alfred North Whitehead, perceberam o grave deslize:
"Por mais que tenham sido ditas com orgulho, as palavras de Newton repousam num completo equívoco sobre a capacidade da mente humana para lidar com a natureza externa." (Matemática, cit. Fadiman, p.333.)
Prigogine endossa:
A natureza não tem um nível simples. Quanto mais tentamos nos aprofundar, maior a complexidade com que nos defrontamos. Nesse universo rico e criativo, as supostas leis de estrita casualidade são quase caricaturas da verdadeira natureza da mudança. Há uma forma mais sutil de realidade, uma forma que envolve leis e jogos, tempo e eternidade. Em lugar da clássica descrição do mundo como um autômato, retornamos ao antigo paradigma* grego do mundo como uma obra de arte.
Ferguson: 164
O paradigma 4 da arte foi privilégio de Atenas, mas não de Esparta, para onde mirava o "coração" de Aristocles. É compatível com a democracia liberal, não com o totalitarismo bestial. Não são poucos os que até se penitenciam. Sir James Lightill (cit. Coveney, Peter e Highfield, Roger: 242) é dos mais notáveis:
Hoje em dia todos nós estamos profundamente cônscios de que o entusiasmo que nossos precursores tinham em relação aos feitos maravilhosos da mecânica newtoniana levou-os a fazer generalizações nesta área de previsibilidade, na qual de modo geral talvez tenhamos tendido a acreditar, antes de 1960, mas que hoje reconhecemos que era falsa. Queremos nos desculpar coletivamente por haver confundido o público instruído em geral, fazendo-os acreditar em idéias sobre o determinismo de sistemas que satisfazem as leis de movimento de Newton, as quais, a partir de 1960, foi provado serem incorretas.
A locomotiva newtoniana puxa enorme plêiade, ávida em reconhecimento científico. Eis a lista dos passageiros mais salientes: Rousseau, Hegel, Bentham, Mill, Marx, mesmo Darwin, Sorel, Comte, Weber, Durkheim, Freud, Skinner, Keynes, Galbraith. No vagão verde-amarelo ainda predominam os corais de Pontes de Miranda e Celso Furtado, acompanhados de desafinadas orquestras sociológicas embarcadas na Sorbonne. A platéia se perfila. Urge alertá-la: o trem da carochinha chegou no fim-da-linha. Ao desembarque, please.
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Notas
1.Cit. Pais, A. p. 15.
2.Célebre oração de Newton: "Se fui tão longe foi porque estava apoiado no ombro de gigantes." Arthur Koestler analisa alguns “gigantes”. Johannes Kepler: "Uma mente para a qual toda a realidade última, a essência da religião, da verdade e da beleza estava contida na linguagem dos números." Depois, Galileu Galilei e René Descartes, que "prometeu reconstruir o universo inteiro a partir apenas de matéria e extensão e que inventou a mais bela ferramenta de raciocínio matemático, a geometria analítica". (The Sleepwalkers, 1978, cit. Lemkow, p. 84)
3. Aristocles era seu nome verdadeiro. Ainda: "Durante seu desenvolvimento pelo pensamento grego, a filosofia da natureza enveredou por um caminho equivocado. Esse pressuposto errôneo é vago e fluído no Timeu de Platão. (Whitehead, Alfred North: 31)
4. O termo faz-se corriqueiro até em comentários esportivos. Do grego paradeigma, significa “modêlo” ou “padrão”; foi reintroduzido por Thomas Kuhn (1922-1996) no fim dos anos sessenta. The structure of scientific revolutions caracteriza como uma base para a edificação científica. Pelo reintrodutor (p.13): "Considero paradigmas as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência.”
FONTES
CHÂTELET, François, História da Filosofia, 2. Ed. - 4 V., 2. V: De Galileu a J.J.Rousseau. - Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995.
COVENEY, Peter e HIGHFIELD, Roger, A Flecha do Tempo. Tradução J. E. Smith Caldas. - São Paulo: Ed. Siciliano, 1993.
FADIMAN, Clifton org., O Tesouro da Enciclopédia Britânica - O Melhor do Pensamento Humano desde 1768. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges, 2. Ed. - Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1994.
FERGUSON, Marilyn, A Conspiração Aquariana. 10. edição.Tradução Carlos Evaristo M. Costa. - Rio de Janeiro, Ed. Record, 1995.
PAIS, Abraham, Sutil é o Senhor, A Ciência e a Vida de Albert Einstein. Tradução Fernando Parente e Viriato Esteves. - Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1995.
THUILLIER, Pierre, De Arquimedes a Einstein: a face oculta da invenção científica. Tradução Maria Inês Duque-Estrada; revisão técnica César Benjamim. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.
WHITEHEAD, Alfred North, O conceito da natureza.Tradução Julio B. Fischer. - São Paulo: Martins Fontes, 1993.