terça-feira, 7 de setembro de 2010

Epistemologia da Ética - Introdução

  A comunidade fala-lhe com uma mesma voz, mas cada indivíduo fala partindo de um ponto de vista diferente; no entanto, estes pontos de vista estão em relação com a actividade social cooperativa e o indivíduo, ao assumir sua posição, encontra-se implicado, devido ao próprio carácter da sua resposta, nas respostas dos outros. HERBERT, A filosofia do ato: 153; cit. ABBAGNANO: 29 
Ética (do grego ethos, que significa modo de ser, caráter, comportamento) é o ramo da filosofia que busca estudar e indicar o melhor modo de viver no cotidiano e na sociedade. Diferencia-se da moral, pois enquanto esta se fundamenta na obediência a normas, tabus, costumes ou mandamentos culturais, hierárquicos ou religiosos recebidos, a ética, ao contrário, busca fundamentar o bom modo de viver pelo pensamento humano. [1][2]. Na filosofia clássica, a ética não se resume ao estudo da moral (entendida como "costume", do latim mos, mores), mas a todo o campo do conhecimento que não é abrangido na física, metafísica, estética, na lógica e nem na retórica. Assim, a ética abrangia os campos que atualmente são denominados antropologia, psicologia, sociologia, economia, pedagogia, educação física, dietéticapolítica, em suma, campos direta ou indiretamente ligados a maneiras de viver. Wikipédia
Já ouvimos falar nisso, mas surge oportuna a contribuição da valiosa Wiki. Ela procede pela abrangência, mas também imprecisão. Em que pese toda moral vir revestida como ética, ambas são até excludentes. Não há o menor elo entre a ética e a moral.  O campo moral se restringe à ideologia. O esteio da ética transcende fronteiras.  Curiosamente, porém, vemos raros viandantes na frondosa alameda, enquanto proliferam cascateiros, alhures:
Toda a teoria darwineana da luta pela existência é simplesmente a transferência, da sociedade à natureza viva, da teoria de Hobbes sobre a guerra de todos contra todos e da teoria econômica burguesa da concorrência, bem como da teoria da população de Malthus. WALLACE, A.R. & YOUNG, R., Sciences studies, 1971: 184; cit. JAPIASSÚ, H. 1978.
Há muito estou convencido da importância de aprofundar a teoria
das forças sociais que podemos comparar, em larga medida, às forças da dinâmica que agem sobre a matéria.
SOREL, G., Greve Geral Política: 195
Considerado isoladamente, o indivíduo era meramente nocivo, um animal governado por instintos bruscos, como dissera Rousseau, sem nenhuma norma de ação mais alta que impulsos, apetites e inclinções, e sem regra de pensamento mais importante que fantasias subajetivas. Os direitos e liberdades do indivíduo seriam aqueles que correspondessem aos deveres impostos pela situação que desfrutava na sociedade. Hegel fundiu a idéia da vontade geral incoerentemente formulada por Rousseau ROHDEN,  H., 1993: 160.
O embaixador O.M. PENNA, (O espírito das revoluções: 83) apresentou o fio-de-ariadne ao carma fundamental: “A afirmação mitológica da maldade inata na natureza humana encontra-se, como se sabe, na Bíblia. Ela está explicitada no episódio de Caim e Abel, como corolário da tese do Pecado Original; e foi filosoficamente elaborada por Santo Agostinho.” Daí se precipitam as mais dantescas insanidades, arrastando  povos e povos  às tragédias:
Marx explica que a força revolucionária do operário nas sociedades burguesas 'nasce da contradição entre sua natureza humana e sua existência vital que é a negação manifesta, decisiva e total dessa natureza'. SARTRE, Jean-Paul, O Fantasma de Stálin: 32   
Por tão ampla e certeira, paradoxalmente incalculável, mas indisposta a tergiversações, ainda que por vezes subvertida em função  da  necessidade, aviltada notadamente em Maquiavel, Hobbes, Malthus, Darwin,  ou em razão da pretensa ciência, do número, tal qual  Rousseau e especialmente Hegel, Bentham,  Marx, & Keynes, a ética suplanta com vantagem qualquer constituição  moral, que dirá leis comezinhas. 
O que ocorreu foi que as premissas tecnocráticas quanto à natureza do homem, da sociedade e da natureza, deformaram-lhe a experiência na fonte, tornando-se assim os pressupostos esquecidos de que se originam o intelecto e o julgamento ético. LEONI, B.: 66
Se os seres humanos observassem rigorosamente os óbvios, tradicionais e vantajosos preceitos, na ótica de Kant  um imperativo categórico, quiçá não fosse necessário poderes legislativos, e mesmo judiciários.
O remédio não está em nenhum cataclisma heróico, mas nos esforços individuais em direção a uma visão mais sã e equilibrada de nossas relações com nossos vizinhos e com o mundo. É na inteligência, cada vez mais disseminada, que devemos buscar a solução das doenças de que nosso mundo sofre. RUSSELL, B., Ensaios céticos: 53
Acabando com as doenças, porém, de que se ocupará o médico? Como receberiam os profissionais operadores do Direito uma comunicação de dispensa? Ética não lhes vem ao caso, muito menos  interessa ao soberano. E como ela é frágil a qualquer vento, tal qual o ser humano adoentado, sói facilmente abatida.
A idéia errada de que vivemos num mundo de recursos escassos tem feito mais que impedir a maioria das pessoas a atingir o sucesso econômico. Ao longo dos séculos esta visão negativa de escassez do mundo tem sido responsável por guerras, revoluções, estratégias políticas e sofrimento humano de imensas proporções. PILZER: 14.
A dialética é o canal, o tufão que estabelece o confronto, sempre covarde, cá entre nós, para inverter a posição.
O que caracteriza os primeiros estudos sobre a sociedade é, precisamente, um ponto de vista finalista e normativo: finalista, isto é, tendo unicamente em consideração o ideal a realizar, a investigação do que deve ser a 'melhor' organização social e política; normativo, quer dizer, a preocupação imediata de estabelecer normas, regras de ação para a vida coletiva. É este, particularmente, o ponto de vista dos filósofos. Bastará recordar, quanto à antiguidade, a República e as Leis de Platão, a Política de Aristóteles... CUVILLIER, A., Introdução à Sociologia – OS PROBLEMAS SOCIOLÓGICOS
O conceito de justiça é o primeiro conceito democrático mistificado por Platão. A justiça surgiria como uma propriedade do Estado. Seu totalitarismo é disfarçado sob a capa de 'verdadeira justiça', e se legitima teoricamente mediante a subversão doutrinária do humanitarismo em três frentes: defendendo o privilégio natural, postulando o coletivismo, advogando a tese de que o indivíduo existe para o Estado. Platão sutilmente instituiu uma sinomia entre individualismo e egoísmo: apelando para o sentimento humanitário, subverteu o conceito de individualismo, conceito que se opõe ao coletivismo não implicando, portanto, na adoção do egoísmo como padrão moral, tentando tornar a alternativa coletivista como a única moralmente compatível com o altruísmo. PEREIRA, J.C., Epistemologia e Liberalismo - Uma Introdução a Filosofia de Karl R. Popper:116
A partir de Platão e Aristóteles, a proclamada supremacia do Estado foi encontrada em suas visões nas quais 'moralidade não era separada da religião e nem a política da moral; e em religião, moralidade e política havia apenas um só legislador e uma única autoridade'. DALBERG-ACTON, John Edward Emerich, Essays on Freedom and Power (Glencoe, Ill.: Free Press, 16
Conseqüentemente, a permanente necessidade da ideologia persuasiva sempre levou o Estado a utilizar os intelectuais formadores da opinião nacional. Em épocas remotas, os intelectuais eram invariavelmente os sacerdotes, e, por conseguinte, conforme indicamos, tínhamos a antiga aliança entre a Igreja e o Estado, o Trono e o Altar. Hoje em dia, economistas 'científicos' e 'livres de juízo de valor' e conselheiros da 'segurança nacional', entre outros, desempenham uma função ideológica similar em prol do poder do Estado. Vimos claramente porque o Estado necessita de intelectuais; mas porque os intelectuais necessitam do Estado? Colocando de maneira simples, porque os intelectuais, cujos serviços não são muito freqüentemente desejados pela massa de consumidores, podem encontrar um "mercado" mais seguro para seus talentos nas costas do Estado. O Estado pode proporcionar a eles poder, status e riquezas que eles geralmente não poderiam obter em trocas voluntárias. ROTHBARD, Murray, A Ética da Liberdade
Aos cientificistas platônicos ética concerne ao amor platônico,  preferência socrática, totalmente utópica - coisa do espírito, do devaneio, da metafísica, realidade pintada:
Enquanto estivermos presos ao corpo e a nossa alma estiver conglutinada. com este mal, nunca poderemos atingir plenamente a verdade do que buscamos. Pois, mil e uma inquietações nos causa o corpo, pelas exigências de sua nutrição, sem falar ainda em toda espécie de paixões eróticas, desejos, temores, e um sem número de imaginações e infinitas ninharias. Em suma, ele nas coloca num estado no qual não temos um momento de quietação. Pois, também as guerras, as revoltas e batalhas são conseqüências do corpo e das suas concupiscências. Porque todas as guerras nascem do desejo de adquirir haveres e bens. E haveres e bens somos forçados a adquirir por causa do corpo, cujas exigências devem ser satisfeitas. PLATÃO, Fédon-, 66.
E por conta de tanta exigência, legislar, nobre missão originária de legere - leitura da natureza - pela lógica ideológica se traduz em facere, agere, al primo-canto positivista: "Pouco a pouco, os soberanos compreenderam que a justiça podia ser também pretexto para a extensão de seu poder e a afirmação de sua autoridade." (BOBBIO, N. e VIROLLI, M.: 130)
É representado pelas pressões exercidas pelo regime napoleônico sobre os estabelecimentos reorganizados de ensino superior do direito (as velhas Faculdades de Direito haviam sido substituídas pelas escolas centrais por obra da República, transformadas posteriormente sob o Império em Escolas de Direito e colocadas sob o contrôle direto das autoridades políticas) a fim de que fosse ensinado somente o direito positivo e se deixasse de lado as teorias gerais do direito o jusnaturalismo porque inútil e perigoso aos olhos do autoritário governo napoleônico. BOBBIO,  N., 1995: 81.
Para RENÈ KONIG (Soziologie heute, cit. GOLDMAN, L., Ciências Humanas e Filosofia - Que é a Sociologia: 40), professor das Universidades de Zurique e Colônia, isso nada mais é do que “elemento do processo de autodomesticação social da humanidade”
Ao exumarmos tiranias e ditaduras mais ou menos democráticas, podemos constatar que as modalidades agiam de acordo com a lei. É certo que ela, sempre prêt-à-porter, entra na moda através de decretos, mas as maiores barbaridades antes obtiveram o consentimento das populações.
Não é fruto de ato discricionário, não nasceu por geração espontânea nem se desenvolveu apenas por obra da fragilidade da oposição. É produto de uma criação coletiva. Da tolerância de informados e bem formados que puseram atributos e instrumentos à disposição do deslumbramento, da bajulação e da opção pela indulgência. Gente que tem pudor de tudo, até de exigir que o presidente da República fale direito o idioma do País, mas não parece se importar de lidar com gente que não tem escrúpulo de nada. DORA KRAMER Estadão, 8/9¹2010:
A exceção recaiu aos próprios alemães orientais, porque sujeitos escravos, cercados nos farpados de Berlim. Qualquer sistema gerenciado obedece ao cânone gerencial, obviamente:
O imoralismo de Maquiavel é simplesmente lógica. Do ponto de vista em que ele se colocou, a religião e a moral são apenas fatores sociais. São fatos que é necessário saber utilizar, com os quais é preciso contar. E só. Dentro do cálculo político, cumpre levar em conta todos os fatores políticos: que peso pode ter um juízo de valor sobre a soma? De nenhum modo a modificar o resultado. KOYRÈ : 11
Com muita pertinência D. KRAMER  por fim qiuestiona: "Só porque é popular uma pessoa pode escarnecer de todos, ignorar a lei, zombar da Justiça, enaltecer notórios malfeitores, afagar violentos ditadores, tomar para si a realização alheia, mentir e nunca dar um passo que não seja em proveito próprio?" São os fins, a metafísica projetada, que vem ao caso:
A filosofia política de Hobbes culmina na conclusão de que might is right - poder é direito, sendo o Governo suprema norma ética, não havendo ética contrária a ele. O chefe de governo paira acima do bem e do mal. Tudo o que favorece o nacionalismo é bom; o que o desfavorece é mau. RODHEN, H., Filosofia Contemporânea: 53
Como vinga, assim, por milênios, a eloquente omissão, esta aberração social, ou descaso, ou desídia, talvez ignorância, para mim escandalosa falta de consciência?
A grande epopéia das Luzes incluía no mesmo movimento o justo e o belo. Organizava um afresco tranquilizador da natureza e da sociedade. Os romances de aprendizagem diziam como se conduzir e se comportar. Ora, as indicações foram se desagregando nas sociedades industriais contemporâneas. Como poderiam ter consciência? DESCAMPS, C., As Idéias Filosóficas Contemporâneas na França: 27
Isso nos torna indiferentes e, em última análise, ajuda a que o político que está na televisão consiga o que quer, já que não nos opomos a ele" (RIBEIRO, João Ubaldo, Política - Quem Manda, Por Que Manda, Como Manda. -Ed. Editorial, 2010) Pois se a ética é inimiga dos governos, de que modo será praticada nas relações sociais? Quem enfatizará sua relevância frente a dialética - digo doilética - esta hydra aparecida tanto na Seleção Natural, em forma de primata, quanto no Paraíso, em forma de serpente?

O cruzeiro se estenderá pela semana, creio, podendo até vará-la, caso palpite. Mas o desfecho já está definido. Na apoteose aguardam as bandas mais tradicionais, ora contando com o reforço da Física, sim, exuberante em nova roupagem e formação. Desde o início do XX ela aderiu ao rock'n roll, em vez daquele manjado toque marcial*:
Em nosso século, o estudo da constituição atômica da matéria revelou que a abrangência das idéias da física clássica apresentava uma limitação insuspeitada e lançou nova luz sobre as demandas de explicação científica incorporadas na filosofia tradicional. Portanto, a revisão dos fundamentos para aplicação inambígua de nossos conceitos elementares, necessária à compreensão dos fenômenos atômicos, tem um alcance que ultrapassa em muito o campo particular ciência física. BOHR, Niels, Física atômica e conhecimento humano: Introdução

Chegamos a uma situação que envolve uma imagem diferente da natureza e, portanto, também da ciência. Não acreditamos mais na imagem do mundo como uma imensa peça de relojoaria. Chegamos ao fim das certezas. Estava implícita na visão clássica da natureza a idéia de que, sob condições bem definidas, um sistema seguiria um curso único e de que uma pequena mudança nos parâmetros produziria igualmente uma pequena mudança nos resultados. Hoje sabemos que isso só é verdade no caso de situações simplificadas e idealizadas.
MAYOR: 12
Procederemos o costumeiro pit-stop das ilhas gregas, no fito de reabastecer a Nave.. No estádio olímpico surgiu um gajo atômico que ninguém tomou conhecimento - nem EINSTEIN, nem PLANCK, o formulador quântico, nem mesmo Atenas, onde esteve. Pois o macedônio forneceu a senha para as proposituras não só da moderna física, como de todas as disciplinas e condutas humanas. Seu tapete ensejou consagrar SPINOZA, LOCKE, MONTESQUIEU, TOCQUEVILLE, ADAM SMITH e de resto aos iluministas em geral: 
Melhor (educador) para a virtude mostrar-se-á aquele que usar o encorajamento e a palavra persuasiva, do que o que se servir da lei e da coerção. Pois quem evita o injusto apenas por temor a lei, provavelmente cometerá o mal em segredo; quem, ao contrario, for levado ao dever pela convicção, provavelmente não cometerá o injusto nem em segredo nem abertamente, Por isto, quem agir corretamente com compreensão e entendimento, mostrar-se-á corajoso e correto de pensamento. A Epistemologia e a Ética de Demócrito
______________


* Nota
O dia seguinte confirmou a incrível coincidência da metafísica com a própria física, na realização da metáfora:
Antes que as marchas militares tomassem conta do tradicional desfile em comemoração ao feriado da Independência em Brasília, a banda dos Dragões da Independência apostou em músicas pop, como as de Lady Gaga, Shakira e Beyoncé. "Gosto de executar o que o povo gosta, eu toco para o público", justifica o regente, o tenente Almeida Machado da Costa. Terra, 8/9/2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário