sábado, 24 de novembro de 2007

No Rastro do Leviathan

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Perdendo a pátria o antigo perde tudo, bens, família, liberdade e religião, pois além dos muros urbanos cada homem passa a ser estrangeiro, sem defesa, exposto à ira dos inimigos e de seus deuses, sem direitos, podendo ser morto ou reduzido a escravidão.
Fustel de Coulanges-
DUAS estratégias de domínio da natureza, específicamente domínio sobre uma parte da natureza, a dos seres humanos, surgiram de modo simultâneo e complementar. A primeira, Seis Livros da República, de Johannnes Althusius (1557-1638) até hoje obtém êxito:
"Assim como o navio não é mais do que madeira, sem forma de embarcação, quando lhe tiramos a quilha, que sustenta o costado, a proa, a popa e o convés, também a República, sem um poder soberano que una todos os seus membros e partes, e todos os lares e colégios, num só corpo, não é mais República." (3)
A metáfora nem era original; saíra da Grécia com o ásno volante, Platão:
"Do mesmo modo que o piloto, estando sempre atento ao que é melhor para a nau e para os navegadores, sem necessitar de leis escritas, tendo por norma apenas a arte, salva os companheiros de navegação, assim não se deverá igualmente esperar que aqueles que possuem aptidão para o governo possam, mediante a arte, obter resultados melhores, na forma de governo, do que a mera aplicação da lei?" (4)
Jehan Bodin (1530/1596) nascera ainda antes de Althusius, a tempo de ser cognominado “pai” do governo absoluto. Na respeitável observação do senador italiano Norberto Bobbio, o francês é mais relevante do que Althusius e até mesmo do quase contemporâneo Maquiavel:

“A obra mais importante do período de formações dos grandes Estados territoriais é De La Republique, de Jean Bodin. (5)
O rigor e a lógica da soberania de Bodin só se põem verdadeiros na relevância da indivisibilidade (6) do poder, algo que seria revivido pelo vizinho Hobbes, pelo patrício Rousseau e sua criação prática, Napoleão; depois desta dupla, pelo filósofo da catástrofe, Hegel e seus exterminadores Lenin, Stálin, Hitler e Mussolini.

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Acima do bem e do mal
"Dividir o poder é dissolvê-lo":
“A responsabilidade absoluta do soberano exige e pressupõe a dominação absoluta de todos os sujeitos.” (7)
"É necessário que os soberanos não estejam, de forma alguma, sujeitos às ordens de outrem e que possam dar leis aos súditos, quebrando ou aniquilando as leis inúteis para fazer outras." (8)
A legislação de outrora, quase toda lastreada nas formulações do Direito Romano, de Aristóteles e de Santo Tomás de Aquino, se esvaiam execradas, pisoteadas. Tornavam-se, pois, inúteis. Legislar, verbo originário de legere - leitura daquela natureza - pela pena racionalista virava facere, agere, refrão positivista. Ética, se alguma, foi envolta pela interessante mística:
Mesmo os ateus estão de acordo acerca de que não há coisa que mais mantenha os Estados e as Repúblicas do que a religião, e que esse é o principal fundamento do poderio dos monarcas, da execução das leis, da obediência aos súditos, da reverência dos magistrados, do temor de proceder mal e da amizade mútua para com cada qual; cumpre tomar todo o cuidado para que uma coisa tão sagrada não seja desprezada ou posta em dúvida por disputas; pois deste ponto depende a ruína das Repúblicas.(9)
Bodin carregou o vagão platônico no qual viajaria Descartes:

“A idéia cartesiana de um Deus legislador, por exemplo, aparece somente depois da teoria de Jean Bodin sobre a soberania.” (10)
No esquema infalível do Vaticano, a França recebeu o absolutismo aperfeiçoado na ascendência do Rei Francisco I (1515-1547), seguido pelo duque de Guise - chefe da fação católica mais fanática; depois, Catarina de Médici, pupila de Maquiavel, a regente responsável pelo extermínio de milhares de huguenotes na famosa noite de São Bartolomeu, em 24 de agosto de 1572. Na Guerra dos Cem Anos, sobrou um aumento sempre crescente de poder. Richelieau, outra versão francesa do maquiavelismo, levou a idéia da razão de Estado na busca de fazer da França a maior potência européia, no que o seguiu Colbert, ambos responsáveis diretos pelo mercantilismo francês.
Na Guerra dos Trinta Anos o objetivo se pensara alcançado e o reinado viu-se mais forte.
Há sempre que se considerar, além da costumeira má-fé de inúmeros aspirantes, a óbvia ignorância dos responsáveis pela sobrevivência das gentes, os operadores do festival de barbarismos apontados pela história. Embora embriões da sociedade civil, já vimos sobejamente que os sistemas se baseavam na força bruta. Governos não podiam titubear, discutir. Suas respostas, levando sempre em conta as invasões, deviam ser prontas e objetivas. O “inimigo comum” estava perfeitamente identificado; imperioso liquidá-lo.

A insegurança disseminada, de propósito ou não e a necessidade premente de união para enfrentar a ficção ou a circunstância faz a teoria absolutista girar pelo tempo e espaço. Sagazes dela se locupletam para sedimentarem escusos arquétipos.
Bodin continuou saboreando homenagens:
“Suas teorias tiveram grande repercussão na França e na Inglaterra, perdurando ainda hoje. Sua obra exerceu influência nos escritos de Hobbes e Filmer.” (11)
Que crédito científico pode merecer essa sociologia, essa ciência política amante de “divindades” reais e lucros irreais?

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Notas
1.Cit. Bastos, Wilson de Lima, Nos Meandros da Política, p. 18.
2.Tolstói, Leon, cit. Fadiman, Clifton org., p. 163.
3.Frase de Althusius, criador do método qualificado como "genético"; considerava a família como última instância, desprezando o interesse do indivíduo, porque submisso à causa maior. Cit. Chevallier,Tomo I, p. 316.
4.Platão, cit. Bobbio, N., em Cardim, C.H., p. 117.
5.Bodin, cit. Bobbio, N., A Teoria das Formas de Govêrno, p. 95.
6.Bodin, cit. Chevallier, p. 56.
7.Bodin, Jean, République, 1576; cit. Perelman, C., p. 325.
8.Koselleck, Reinhart, p. 22.
9.Bodin, cit. Chevallier, Jean Jacques, p. 55.
10.Japiassú, Hilton, A Revolução Científica, p. 173.

11.Bodin, J..; Hobbes, T.; Filmer, R., cits. Bastos, W. L., p. 172

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