sábado, 30 de agosto de 2008

Ditadura & Direito Positivo


O alfa e o omega da teoria política é a questão de poder: como conquistá-lo, como conservá-lo, e perdê-lo, como exercê-lo, como defendê-lo e como dele se defender. BOBBIO, N., Teoria Geral da Política: A Filosofia Política e a Lição dos Clássicos: 252
AO JURISTA, quiçá para o acadêmico, e de resto a muitos leigos, é trivial reconhecer o Direito Positivo como maior e mais eficaz veículo utilizado pelas ditaduras às suas elevadas funções. O brutal instrumento tem várias serventias. Primeiro, elas mantém o povo enfeixado, sob a ameaça do chicote, assim minimizando a probabilidade de algum foco de incêndio. Ademais, ao distraí-lo com regrinhas bisonhas, os opressores operam livremente pelas lacunas. Não obstante, na garupa viajam milhares de pelegos e apaniguados. Na sombra do guarda-chuva, em nome da moralidade, a grei saboreia a fartura extraída manu militaire da produção.
E nada confere tanta honra a um 
príncipe novo quanto as novas leis 
e as novas instituições que estabeleça.
Maquiavel
Nosso renomado jurista Alfredo Buzaid (Conferências:139) entende que “as leis positivas estão sujeitas às contingências da vida política, e organizar um povo significa determinar-lhe a ordem jurídica.” Povo mais organizado do que o nazista vai ser difícil encontrar. "O New Deal de Hitler era muito mais coerente do que o de Roosevelt e muito mais bem-sucedido quanto a acabar com o desemprego." (SKIDELSKI, R.: 118)
Que fontes mais modernas sustentam esta antiga capacidade, a produção do chamado "direito" positivo? Existiria algum negativo?  E o próprio, por acaso, emerge de alguma nascente popular, da vida da polis, como propalava aquele ex-ministro da ditadura? As duas questões podem ser respondidas por breves constatações. A segunda é mais simples: em nenhum lugar, a qualquer tempo, a positivação resulta de vontade geral, senão que expressão de quem a impõe: "A democracia fala de um governo comandado pelo povo e sujeito às suas leis; na realidade, entretanto, os regimes democráticos são dominados por elites que planejam maneiras de moldar e dobrar a lei a seu favor". (PIPES, R.:251).  Os talheres denunciam o o prato que lhe apetece:
O surgimento do Direito Positivo, longe de negar, reforçou o poder, pois lhe deu um conteúdo preciso e um sistema de garantias em forma de sanções, também definidas e precisas. O direito, uma vez positivado, torna possível ao Estado encabeçar e dirigir o fenômeno que Harold Laski descreveu concisamente como o processo de organização do poder coativo. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo, Teoria do poder, sistema de Direito Político, estudo juspolítico do poder: 258
Ao catedrático das Universidades de Zurique e Colônia, professor Renè Konig, (Soziologie heute, cit. GOLDMAN, Lucien, Ciências Humanas e Filosofia - Que é a Sociologia: 40),  ela se constitui em “elemento do processo de autodomesticação social da humanidade”. Suprimiria o auto, para acompanhar o Prof. A. PAIM (UMA LÚCIDA ANÁLISE DO MARXISMO, 9/5/2010**):
Comte, como mais tarde faria Marx, falava em 'ditadura'. Ambos entendiam, por tal regime, uma estrutura governativa em que o poder executivo forte se pautasse pela ciência social, com total recusa à representação política e com o banimento de qualquer oposição.
O eminente Professor paranaense Luíz Fernando Coelho se reporta a Jacques Lenoble e Fançois Ost (Droit, Mythe e Raison, cit. Teoria Crítica do Direito: 128) : “A racionalidade jurídica é uma imagem ideológica para legitimar o sistema jurídico positivo a partir de uma aparência de racionalidade, cujo fundamento é mais mítico do que racional, ou seja 'mitológico'.” J. F. Lyoard (cit. MAFESOLI, Michel, Para navegar no Século XXI) percebe essas “grandes narrativas legitimadores”,
tais como o marxismo, o freudismo ou o funcionalismo baseados numa visão positivista, teleológica e material da evolução humana. Sistemas ministas, igualmente, na medida em que assentam sobre um casualismo exclusivo e excludente. Daí o fideísmo rigoroso, com seu cortejo de fanatismos, de dogmatismos, de escolásticas de todas as espécies, sem esquecer,naturalmente, as intolerâncias, exclusões e demais excomunhões.
Em História da Loucura, Michel Foucault (cit. ROHMANN, C.: 168) demonstra: “O tratamento da demência constitui uma forma de domínio social”.
A mais completa definição encontramos através do inesquecível Norberto Bobbio (1997: 87):

O que caracteriza a sociedade tecnocrática não é o homem escravo, o homem servo da gleba, o homem súdito, mas o não-homem, o homem reduzido a autômato, à engrenagem de uma grande máquina da qual não conhece nem o funcionamento, nem a finalidade. Pela primeira vez, encaramos com angústia não um processo de servidão ou de proletarização, mas, de modo mais geral, um processo de desumanização. Também a potência que caracteriza a sociedade tecnocrática é diversa de todas as potências anteriores: não é a potência que se serve das idéias, nem a que se serve da dominação econômica, nem a que se serve da força coercitiva. É a potência científica, a potência do conhecimento que assegura o domínio mais irresistível sobre a natureza e sobre os outros homens, e, ao mesmo tempo, é a potência mais impessoal e, por isso, mais despersonalizadora; mais universal e, por isso, mais niveladora; mais racional e, portanto, mais racionalizadora.
O resultado costuma ser  barco naufragado:

O curso natural das coisas não pode ser inteiramente dominado pelos esforços impotentes do homem, pois a corrente é demasiada rápida e forte para que a interrompa; e posto as regras que a orientam aparentem ter sido estabelecidas para os melhores e mais sábios propósitos, às vezes produzem efeitos que escandalizam todos os nossos sentimentos naturais. SMITH, Adam, 1999: 204
A faina de revestir o direito positivo com o galardão democrático é desprovida de argumento: “Existem tempos nos quais os homens são tão diferentes uns dos outros que a própria idéia de uma mesma lei aplicável a todos lhes é incompreensível.” (TOCQUEVILLE, A., 1997, Livro Primeiro, Capítulo III: 61)
A justificação da democracia, ou seja, a principal razão que nos permite defender a democracia como melhor forma de governo ou a menos ruim, está precisamente no pressuposto de que o indivíduo singular, o indivíduo como pessoa moral e racional, é o melhor juiz do seu próprio interesse. BOBBIO, N. Teoria Geral da Política: a Filosofia Política e as Lições dos Clássicos: 424
A distinção de Glück, (cit. BOBBIO, 1995: 21), datada de 1888, permanece de pé:

O direito se distingue, segundo o modo pelo qual advém à nossa consciência, em natural e positivo. Chama-se direito natural o conjunto de todas as leis, que por meio da razão fizeram-se conhecer tanto pela natureza, quanto por aquelas coisas que a natureza humana requer como condições e meios de consecução dos próprios objetivos... Chama-se direito positivo, ao contrário, o conjunto daquelas leis que se fundam apenas na vontade declarada de um legislador e que, por aquela declaração, vêm a ser conhecidas.
E quanto aos fatos nos quais prevalecem essas vontades unilaterais? O que poderia tornar uma palavra escrita por alguém de tal maneira vigorosa a ponto de suplantar a soma das tradições jurídicas, filosóficas, antropológicas, econômicas, e sociais, e por conseqüência solapar conceitos éticos e morais sedimentados de modo secular? Que Zenith pode ser tão atraente? Que fontes e deltas encorpam o positivismo a ponto de torná-lo hegemônico, insuscetível a reparos, mas não isento de dúbias e capciosas interpretações? E quais as consequências de tão venerada artimanha?
O comtismo serve então de fundamentação doutrinária a uma facção política conservadora e anti-democrática, que durante quarenta anos dominou o Rio Grande do Sul, e daí se irradiou para todo o país. Da Silva, Prof. Nady Moreira, Universidade Federal do Maranhão, Positivismo no Brasil
Antônio Paim estabelece o liame estendido::
A evolução da elite política brasileira no sentido de uma tendência abertamente fascista, com o Estado Novo, não poderia ter ocorrido sem trabalho prévio, ao longo de várias décadas, seja do castilhismo, no meio político, seja do positivismo, no meio militar. A base comum que possibilitou o trânsito de uma a outra das posições pode ser apreendida na análise de uma obra que expressa melhor que qualquer outra essa evolução: o Estado Nacional de Francisco Campes (1891/1968).
Aprecie a genial composição de Ramiro Barcelos, que bem dá conta do convencimento do povo à novidade:
Nas trevas da negra noite
O gaúcho destemido
Corre, seguindo o ruído,
Sem medo ou temor da morte;
E vai, sem rumo e sem norte,
Guiado só pelo ouvido.

O povo é como boi manso
Quando novilho atropela
Bufa, pula e se arrepela,
Escrapeteia e se zanga;
Depois...vem lamber a canga
E torna-se amigo dela.

Home é bicho que se doma
Como qualquer outro bicho;
Tem às vezes seu capricho,
Mas logo larga de mão,
Vendo no cocho a ração,
Faz que não sente o rabicho.

Pobre Estância de São Pedro
Que tanta fama gozaste!
Como assim te transformaste
Dentro de tão poucos anos,
De destinos tão tiranos
Não há ninguém que te afaste!

Na mão do triste Chimango,
O arvoredo está no mato;
O gado... é só carrapato;
O campo... cheio de praga,
Tudo depressa se estraga,
No poder de um insensato.

E tudo o mais em São Pedro
Vai morrendo, pouco a pouco,
A manotaços e a sôco
Rolando pelo abismo;
Pois com o tal positivismo,
O home inda acaba louco...

Ramiro Barcelos
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 Bibliografia


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