terça-feira, 2 de junho de 2009

Quantidade & igualdade x qualidade & liberdade


O raciocínio quantitativo tornou-se sinônimo de ciência, e com tal sucesso que a metodologia newtoniana foi transformada na base conceitual de todas as áreas de atividade intelectual, não só científica, como também política, histórica, social e até moral. GLEISER, M.: 164.
Se vamos continuar a nos apoiar na ciência para criar e gerenciar organizações, para fazer pesquisa e formular hipóteses sobre desenho organizacional, planejamento, economia (finanças), a natureza humana, e mudanças de processos, então deveríamos pelo menos nos apoiar na ciência de hoje. Deveríamos parar de procurar modelos na ciência do século XVII e começar a explorar o que aprendemos com a ciência do século XX. WHETLEY, M., Leadership and the new science
J. LOCKE livrou a Inglaterra das barbáries cometidas especialmente na América e na Europa latinas, mas também na Alemanha, Rússia, seus satélites, e alhures.
O escrito de Descartes se difundiu amplamente no continente, em particular na França e nos Países Baixos, mas não teve o mesmo sucesso na Inglaterra. A filosofia experimental tal como ali se desenvolveu impedia uma aceitação fácil de qualquer sistema dedutivo, e o sistema de Descartes foi considerado tão gerador de dissensões, quanto o sistema extremamente materialista de Thomas Hobbes. HENRY: 71
Nem mesmo os EUA permaneceram livres do vírus platônico, especialmente com os ROOSEVELT, o último introdutor de cartas di lavoro no bolso da famosa estátua, em troca de toneladas de ouro.
O médico inglês propugnou pelo óbvio, pelo que há de mais elementar, mas raramente lembrado:
“Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar.” (RAWLS: XV)
No decorrer daquele distante 1688, o Parliament aprovou inúmeras leis, salvaguardas civis, proteções contra eventual ganância da Coroa. O Rei foi impedido de lançar impostos sem o consentimento da Câmara. Os inglêses cansaram de trabalhar para entregar seus frutos na forma de shipmoneys, à construção da Marinha Real. As verbas do Tesouro passaram a ser fixadas em orçamentos anuais.
O triunfo punha a termo definitivo a monarquia absoluta na Inglaterra. Nunca mais uma cabeça coroada desafiaria o legislativo daquele País; muito menos, qualquer ditadura, seja de esquerda, ou direita.

Na liberdade de credo e convivência civil, o Toleration Act introduziu o Bill of Rights, inspirador do nosso “Mandado de Segurança”, o mais eficiente remédio jurídico ao seu dispor, contra males causados pelo Estado:

Acresce que, para Locke, a força por si só não legitima o direito, dado considerar que o direito precede o Estado e que o povo é superior aos governantes. Aliás, o poder legislativo (legislature), apesar de ser um supream power, não é um poder absoluto, estando limitado pelo fim para que foi instituído o governo, que é a protecção da vida, da liberdade e da propriedade dos homens: the legislative being only a fiduciary power to act for certain ends, there remains stil in the people a supream power to remove or alter the legislative when they find the legislative act contrary to the trust reposed in them (...) thus the community perpetually retains a supream power.
http://farolpolitico.blogspot.com/2007/10/locke-john-1632-1704.html
O cidadão se integrava às responsabilidades decisórias. Ninguém, nem mesmo o rei, poderia lhe ser senhor dos destinos. Disso o rei, obrigatoriamente, haveria de entender:
“Se o governo se exceder ou abusar da autoridade explicitamente outorgada pelo contrato político torna-se tirânico e o povo tem então o direito de dissolvê-lo ou se rebelar contra ele e derrubá-lo.” (LOCKE, Second treatise of civil government: 184)
KARL POPPER (p. 159) reconhece:
De fato, o funcionamento da democracia depende, em grande medida, da compreensão do fato de que um governo que intente abusar de seu poder para estabelecer-se sob a forma de uma tirania se coloca à margem da lei, de modo que os cidadãos não só teriam o direito, como também a obrigação de considerar delituosos esses atos do governo e delinqüentes seus autores.
LOCKE se consagrou como fundamento da Revolução Gloriosa; e por decorrência, do Estado de Direito:
Na era dos direitos passou-se da prioridade dos deveres dos súditos à prioridade dos direitos do cidadão, emergindo um modo diferente de encarar a relação política, não mais predominantemente do ângulo do soberano, e sim daquele do cidadão, em correspondência com a afirmação da teoria individualista da sociedade em contraposição à concepção orgânica tradicional .
BOBBIO, N., 1995: 27.

A inviolabilidade preconizada, ou o respeito à participação social advém da extensão da personalidade aos objetos produzidos. Ao dispender neles sua energia, ou mesmo captá-la, o trabalhador os transforma em partes de si mesmo, e assim pode oferecer algo ao meio que o acolhe:
“O homem tem direito natural as coisas com as quais 'misturou' o trabalho do seu corpo, tais como, por exemplo, cercar e lavrar a terra.” (LOCKE, J., cit. SABINE: 521)
Desse modo, que depende do talento, interesse, aptidão, capacidade, vontade, disponibilidade, até idade e vocação, é impossível, mas sequer essencial, a "igualdade de direitos". Pelo contrário:
"Aplicado aos outros domínios da vida em sociedade, o formalismo igualitário das regras coexiste mal com a exatidão das diferenças naturais." (GUÉHENNO: 37)
Até mesmo o minuto seguinte diverge do anterior:
A realidade física é concebida como uma teia dinâmica de eventos inter-relacionados. As coisas existem em virtude de suas relações mutuamente compatíveis, e tudo na física é tem de partir da exigência de preconceitos para modelos diferentes, sem dizer que é um mais que seus componentes sejam compatíveis uns com os outros.
CAPRA & STENDHAL: 129
Igualdade x Liberdade
“Existem tempos nos quais os homens são tão diferentes uns dos outros que a própria idéia de uma mesma lei aplicável a todos lhes é incompreensível.” (TOCQUEVILLE, A. 1997, Livro Primeiro, Capítulo III: 61)
Não há igualdade entre os homens, tampouco nos reinos animal, vegetal, e até no mineral. Se a procurarmos na teia cósmica, sequer nos anéis de Saturno. Não existe igualdade na natureza, nem entre os átomos que a compõem. O EspaçoTempo de cada partícula diverge da vizinha, seja por variações das órbitas dos elétrons pelos saltos quânticos, seja por deformar o espaço à sua volta pela simples passagem, ou por que o Universo, desde o Big-Bang, se expande, tornando-nos, ainda, peculiarmente complexos, originais, evolutivos, por tudo mutantes:
“Uma das conseqüências da ‘diversidade humana’ é que a igualdade num espaço tende a andar, de fato, junto com a desigualdade noutro." (SEN: 51)
“Sem homens livres não há possibilidade de um Estado livre.” (ROSSELLI: 149)

A democracia fala de um governo comandado pelo povo e sujeito às suas leis; na realidade, entretanto, os regimes democráticos são dominados por elites que planejam maneiras de moldar e dobrar a lei a seu favor. O totalitarismo aspira ao extremo oposto da democracia: ele luta para pulverizar a sociedade e estabelecer um controle completo sobre esta [...] O objetivo último do totalitarismo é a concentração de toda a autoridade nas mãos de um corpo autodesignado e autoperpetuado de eleitos que se denominavam 'partido', mas parece uma ordem, cujos membros devem lealdade a seus líderes e uns aos outros. Esse objetivo pressupõe controle, direto ou indireto, conforme as circunstâncias, dos recursos econômicos do país.
PIPES, R., 2001:251
VON MISES compreende o processo, cruzador dos séculos:
O principal erro do pessimismo tão alastrado é a crença de que as idéias e as políticas destrutivas de nossa era emergiram do proletariado e são uma 'revolta de massas'. Na verdade, as massas, precisamente por não serem criativas e não desenvolverem filosofias próprias, seguem líderes. As ideologias que produziram todos os danos e catástrofes de nosso século, não são uma façanha da turba. São proezas de pseudo-intelectuais e pseudo-estudiosos. Foram propagandas das cadeiras das universidades e dos púlpitos; foram disseminadas pela imprensa, pelos romances, pelo rádio. Os intelectuais são responsáveis pela conversão das massas ao socialismo e ao intervencionismo. Para reverter o processo, é preciso mudar a mentalidade dos intelectuais. Então as massas os seguirão.
As principais características do indivíduo no grupo são, portanto, o desaparecimento da personalidade consciente, o domínio da personalidade inconsciente, a orientação de pensamentos e sentimentos em uma só direção mediante a sugestão e contágio, a tendência à realização imediata de idéias sugeridas. O indivíduo não é mais ele mesmo, é um autômato destituído de vontade. Ademais, pela mera participação num grupo, o homem desce vários degraus na escada da civilização.
LE BON
cit. KELSEN, HANS, A Democracia: 315
Pois este mais reverenciado jurista do século XX tardou trinta anos, mas dobrou-se à grande diferença:
“É o valor de liberdade e não o de igualdade que determina, em primeiro lugar, a idéia de democracia.” (Idem: 141)
Os soviéticos demoraram o dobro, mais dez. Na implosão da Perestróika, o que se viu foi uma casta encastelada, a Nomenklatura dissipando-se no buraco-negro do blefe. A faina era utópica, do vírus platônico, apenas ideológico; e, como tal, estéril:
“Aparentemente a desigualdade – não a igualdade – é uma condição natural da humanidade.” (DAHL: 77)
Tudo muda. Tudo flui, disse HERÁCLITO. O rio nunca é o mesmo - são outras águas, em novas margens. Universo é movimento. Vivemos num caldo de energia cósmica fluente do caos atômico. As aspirações e necessidades de cada ser mudam constantemente. A flecha do tempo se distancia de si mesma. Somos diferentes de ontem, e de tudo o mais, na estupenda dança universal. A riqueza da Terra aí reside. E no entanto, ardemos de paixão pela justiça, pela igualdade!
As sociedades globais atuais compõem-se duma pluralidade quase infinita de agrupamentos particulares: famílias, comunas, municipalidades, departamentos, regiões, serviços públicos, Estados, seitas, congregações, ordens religiosas, conventos, paróquias, igrejas, sindicatos, operários e patronais com suas federações e confederações, cooperativas de consumo, de venda, de produção, sindicatos de iniciativa, caixas de segurança social, classes sociais, profissões, produtores, consumidores, usuários, partidos políticos, sociedades científicas e de auxílio, equipes esportivas e de turismo e assim ao infinito.Todos esses grupos se entrecruzam e se limitam, se unem e se opõem, se organizam e permanecem inorganizados, ora formam blocos maciços, ora se dispersam. A trama da vida social sob o aspecto macrossociológico não é menos complexa que sob o aspecto microssociológico, permanecendo caracterizada por um pluralismo inextricável.
GURVITCH, G., cit. GOLDMAN, L.: 46
A natureza não tem um nível simples. Quanto mais tentamos nos aprofundar, maior a complexidade com que nos defrontamos. Nesse universo rico e criativo, as supostas leis de estrita casualidade são quase caricaturas da verdadeira natureza da mudança. Há uma forma mais sutil de realidade, uma forma que envolve leis e jogos, tempo e eternidade. Em lugar da clássica descrição do mundo como um autômato, retornamos ao antigo paradigma grego do mundo como uma obra de arte.
PRIGOGINE, I., cit. FERGUNSON, M.: 164
Onde concretizar a faina? Por arranjos? Bem, pode ser. Então não venha com ciência do direito, mas sim com técnica, com estratégia juridica. E mesmo assim, fadada a esterelidade, como todo artifício:
Querer encerrar todo o direito de um tempo ou de um povo nos parágrafos de um código é tão razoável quanto querer prender uma correnteza numa lagoa. Cada um desses códigos estará superado necessariamente pelo direito vivo, no momento em que estiver pronto, a cada dia ainda mais antiquado.
ERHTICH, EUGEN, cit. COELHO, LUIZ FERNANDO, Teoria Crítica do Direito: 286
A justificativa dos tais direitos sociais supõe conter lógica em função matemática: o maior deve se sobrepor ao menor. Lêdo engano, o mais crasso dos equívocos. De plano utilizar a lógica como único guia já é estupenda burrice; ademais, mesmo ela não é propriedade exclusiva de ordenamentos numéricos. No Universo nada é maior do que o espaço. No entanto, ele se contrai na presença radiante do corpo. Portanto, pelo menos neste caso, mas posso estendê-lo alhures, é a qualidade, e não a quantidade que determina a importância, o valor.
Dir-se-á: mas queres um regime elitista, uma aristocracia, oligarquia, ou o quê?
Pois digo sem o menor constrangimento: é mais fácil, mais conveniente, lucrativo, e prazeiroso mirar um exemplo mais elevado do que preferir um chão-de-fábrica, não parece óbvio? Ou, por outro lado: qual razão teriam os generais para seguirem a batuta de soldados? Só se fosse um castigo. Não seria o mais completo non sense? E se ainda assim a inversão for preferida, por que cargas d'água deve existir cursos superiores?
No Brasil, não em Portugal, esta anomalia é tão comum que a plebe se refastela, mal sabendo que ela própria, a base da pirâmide, ao elevar um dos seus, transporta seu próprio mundo como ideal. Convenhamos, não me parece nem um pouco inteligente.
Como por aqui, no tempo em que circulava uma moeda chamada cruzado, o boi gordo valia menos do que o magro, e o carro usado era mais caro do que o novo, parece que não só continuamos, mas elevamos à máxima potência a mais notável capacidade portuguesa, com certeza. (Com o perdão dos queridos amigos do belo Além-mar.)
O ser humano per se é elitista. O livre-arbítrio lhe concede a prerrogativa da escolha.
A prevalência da qualidade sobre a quantidade é trivial em obras de arte. Será que não podemos nos incluir como notáveis criações, em vez de sermos apenas macacos, em primeiro instante, e depois autômatos, produtos de uma falida revolução industrial?
Eis a maior incoerência do fascismo e do comunismo: eles conservaram os nomes próprios de seus infelizes cidadãos, em vez de numerá-los, simplesmente, já que tratavam gente como gado.
A balança, instrumento eminentemente mecanicista, não é capaz de aferir qualidades, só quantidades, porque apenas numerais podem ser iguais.
BERTRAND RUSSELL (cit. FADIMAN, C.: 266) condena a possibilidade, tantas vezes tornada realidade:

Surge um grave perigo quando esse hábito de manipulação com base em leis matemáticas é estendido ao nosso trato com seres humanos, uma vez que estes, diferentemente do cabo telefônico, são suscetíveis de felicidade e infortúnio, de desejo e aversão. Seria, portanto, lamentável que se permitisse que hábitos mentais apropriados e corretos para o trato com mecanismos materiais dominassem os esforços do administrador no plano da construção social.
O numerário subverte a sociedade. A ética se torna dialética; e a política, espoliação.
O cérebro do Universo é capaz de contar acima de dois. Os dilemas do intelectual-artista e do teórico -político tem mais de dois chifres. Entre a torre de marfim, de um lado e a ação política direta, de outro, existe a alternativa da espiritualidade. Do mesmo modo, entre o fascismo totalitário e o socialismo totalitário existe a alternativa da descentralização e do empreendimento cooperativo - o sistema político-econômico mais natural à espiritualidade.
WELLS H.G.
O distintivo da democracia é a partilha, não a igualdade entre as gentes:

A difusão de poder, nas esferas política e econômica, em lugar da sua concentração nas mãos de agentes governamentais e capitães de indústria, reduziria enormemente as oportunidades para adquirir- se o hábito do comando, de onde tende a originar-se o desejo de exercer a tirania. A autonomia, para distritos e organizações, daria menos ocasiões para que os governos fossem chamados a tomar decisões nos assuntos alheios.
RUSSELL, B.: 24


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