quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Da judicialização da saúde


O Tribunal de Justiça (TJ) e a Secretaria estadual de Saúde assinaram um convênio com o objetivo de criar um plantão médico para atender a uma demanda que não para de crescer no Rio: ações ajuizadas pela população para conseguir remédios e internações na rede pública de saúde. Apenas nos sete primeiros meses deste ano, o TJ registrou 4.457 ações no estado de pacientes com esses pedidos, o que dá uma média de 637 por mês ou uma a cada hora. (O Globo, 22/8/2009)
Em São Paulo estão ajuizadas mais de 25 mil ações, desde 2002. A Secretaria da Saúde vem gastando cerca de R$ 25 milhões por mês, somente para cumprir ordens judiciais de distribuição de medicamentos que não constam da lista do SUS. No Rio Grande do Sul, onde foram impetradas 4,5 mil novas ações só no primeiro semestre do ano, o gasto é de R$ 6,5 milhões mensais. Em Minas Gerais, o governo estadual prevê gastos extraordinários de R$ 40 milhões em 2008..
O interesse do Estado na saúde de seus cidadãos tornou-se flagrante a partir do último quarto do XIX, início das grandes guerras.
No final do século XIX, a principal influência sobre a teoria acadêmica social e econômica era das universidades. A idealização bismarckiana do Estado, com suas funções previdenciárias centralizadas foi devidamente reestudada pelos milhares de ocupantes de postos-chave do meio acadêmico que estudaram em universidades alemãs nas décadas de 1880 e 90. SCHESINGER, ARTHUR M., The Crisis of the Old Order 1919-1933; 20; cit. JOHNSON, P.: 13
A guerra deixa ao Estado o encargo dos créditos das vítimas de guerra. Os governos adotam o princípio de que as vítimas de guerra fazem jus à solidariedade da nação. Direitos logo materializados pela carta de ex-combatente, pelo estabelecimento de pensões. Todos os anos parte apreciável do orçamento público se destina ao pagamento das pensões de guerra. RÈMOND, R., O Século XX, de 1914 aos nossos dias: 37
Desde então, ditadores e demagogos pelo mundo afora, valem-se deste primeiro exemplar de Estado Previdenciário. (Tampke, J., Bismarck's Social Legislation: a Genuine Break-through? :71) "Afinal, um povo sadio trabalha melhor, produz mais riquezas para o Estado e sua Corte, além de que, se reproduz mais, aumentando a população disponível para o alistamento militar. Povo bem cuidado, mais carne para canhão." (MASCARENHAS, E.: 90)
Ai do governante que assim não procedesse; teria que se confrontar com a adversidade aglutinada dos que nada tinham a perder, o grande receio dos chamados elitistas, prenunciado por Engels (On the History of Early Christianity, cit. Marx, K. e Engels, F., On Religion: 319) na década de 1890: “São atraídos pelos partidos trabalhistas, em todos os países, os que nada tem a esperar do mundo oficial, ou chegaram ao fim de seus vínculos imbecis honestos ou velhacos desonestos”.
EINSTEIN (Escritos da maturidade: artigos sobre ciência, educação, religião, relações sociais, racismo, ciências sociais /Albert Einstein: 9) assim lamentou: “De tudo isso, não restará nada além de uma poucas páginas deploráveis nos livros de história, que retratarão suscintamente para a juventude de gerações futuras os desatinos de seus ancestrais.”
Além do “honroso serviço militar”, muitos imbecis honestos saiam de perto da natureza por entenderem-na de difícil “doma”. De fato, as dificuldades operacionais advindas da chuva, do frio, do vento, acessos precários, falta de veículos, de roupas, escassez de recursos médicos a picadas de toda sorte (ou azar) e, principalmente, inclinações próprias de jovens levaram-nos a experimentar alternativas na aventura da vida nas cidades. E os “burgueses filantrópicos”, ao tratarem com pequenos favores lideranças operárias, inocentes úteis, ou velhacos de quadrilha, solidificavam a fabricada representação, evitavam a revolta contra si e mais - arranjavam, com isto, ativos parceiros, ao mesmo tempo anulando formações adversárias e ações desestabilizadoras. Era conveniente que pedidos e concessões político-sindicais assumissem a relevância, senha para a manutenção e ampliação do poder concedente e trava ao algoz socialismo revolucionário universalista. Donde provinham os recursos? O sofista e obsessivo Hegel (cit. Bobbio, Norberto, Estudos sobre Hegel, Direito, Sociedade Civil e Estado: 119) já havia cuidado de tudo ensinar: “Os impostos não são, em absoluto, lesões do direito de propriedade. O direito do Estado é algo mais que o direito do indivíduo a sua propriedade e a sua pessoa.”
Bastava lançá-los. Cada um que pagasse a conta por este “algo mais” tão difícil de qualificar quanto de mensurar.
Hume mencionara. Nietzsche mostraria a razão. Deus havia morrido; vivia o super-homem, a super-raça, a germânica, de conduta única, sob única batuta. O Império Romano no século XX dever-se-ia chamar Prussiano. E fim. "O todo da política interna de Hitler, até 1939, foi esboçado seguindo esses padrões: usar o imenso Estado paternalista para persuadir as massas a abrir mão da liberdade em troca da segurança." ( Johnson, P.: 108)
Como bem sabemos, de fato foi mesmo o fim.
* * *
"A saúde é um direito do cidadão ou um bem de mercado que deve ser comprado pelo paciente?" Eis como se coloca de um modo totalmente maniqueísta algo que simplesmente não pode ser adquirido, nem doado. No entanto, nossa "Constituição" assim estabelece:
"Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado...
O art. seguinte tenta emendar a pretensão:
"São de relevância pública as ações e serviços de saúde"
"Se o assunto foi constitucionalizado, pode ser judicializado", diz o site especializado, voltado aos seus afazeres juridicos, evidentemente, mas exime da responsabilidade em missão impossível:
Em regra cabe ao Poder Público cumprir a decisão judicial (fazendo-se os devidos ajustes orçamentários). Mas quando não há nenhuma possibilidade para isso, cabe à Administração Pública demonstrar, de modo inequívoco, a sua impossibilidade, visto que somente assim estará escutada no princípio da 'reserva do possível'.
As definições são vagas, ambíguas, em anêmicas designações. No meu modo de interpretar, a Constituição consagra o direito à saúde tal qual o direito à vida e à propriedade, não significando com isto que ao Estado cumpre satisfazer essas prerrogativas.
Não me apraz abordar essas aberrações jureivindicantes, tipo "direito ao trabalho" "à saúde", quilates do "direito" à moradia, à alimentação, às férias, e tudo o mais que a vida pode oferecer, mas também sou atingido, de modo que não me escuso. Estas abstratas e inconsequentes estipulações não passam de metonímias, metafísicas cada vez mais invocadas, mas completamente apartadas da cruel realidade.
Para se ter direito, mister um dever que lhe corresponda, mas "o Judiciário tem privilegiado quem primeiro aporta na Justiça e não o sistema de saúde”, diz Luiz Duarte de Oliveira, procurador do Estado de São Paulo.
Quem tem este dever? É obrigação da coletividade conceder a saúde a todos seus integrantes? Isso é uma utopia, evidentemente, mas os interessados alegam:
O direito à saúde, aí compreendida a assistência farmacêutica, tem status de direito fundamental em nosso ordenamento e como tal merece e exige plena eficácia.
Uma vez que o Estado nada produz, a quem cabe essa obrigação?
A intervenção neste campo onera quem não invoca seu "direito", e adquire a medicação de acordo com suas expensas. A razão é pueril: a enxurrada de compra pelo Leviathan inflaciona o segmento, ao gáudio das farmacêuticas.
Existem remédios caríssimos, e raros. Não poucas vezes, pertencem ao estrangeiro. Poderemos subtraí-lo com a tabuleta de nossos mandamentos? Como estender o "direito" à sua utilização?
Brasileiros dependentes do Sistema Único de Saúde (SUS) estão virando clientes dos tribunais, fenômeno que avança em proporções geométricas e já impacta as contas dos governos. Em quatro anos, os gastos do Ministério da Saúde com medicamentos comprados por ordem de juízes cresceram 3.675%, alimentados pelas falhas na assistência ao cidadão e pelo lobby da indústria farmacêutica sobre médicos e pacientes. Em 2005, as sentenças custaram ao ministério R$ 2,5 milhões. Este ano, o valor já era de R$ 94,38 milhões até outubro e, conforme previsão oficial, deve atingir os R$ 150 milhões em dezembro.
O Globo, 15/11/2009
O que colhemos são gastos sem fim, pagos, naturalmente, pelo próprio paciente, e tornando o hígido desprovido dos frutos de seu trabalho, conseqüentemente induzindo-o à todas as doenças:
Para demonstrar o impacto financeiro das ações judiciais no âmbito da Assistência Farmacêutica, demonstra-se o ano de 2007, no qual foram gastos na via judicial R$ 22.586.183,27 (vinte e dois milhões, quinhentos e oitenta e seis mil cento e oitenta e três reais e vinte e sete centavos) para compra de medicamentos e R$ 27.736.962,73 (vinte e sete milhões, setecentos e trinta e seis mil, novecentos e sessenta e dois reais e setenta e três centavos) para bloqueios/depósitos, e na via administrativa R$ 99.295.754,46 (noventa e nove milhões, duzentos e noventa e cinco mil, setecentos e cinqüenta e quatro reais e quarenta e seis centavos).
Janaína Barbier Gonçalves, Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul
Não se pense que essas leis inventadas e a assistência reivindicada são provenientes das tacanhas mentalidades socializantes, que presumem que todos sejam iguais a todos, portanto que todos produzam a mesma coisa, e que nada tenha valor individual. Nada disso. Antes de tudo, há o grosso faturamento em jogo.
O Estado de bem-estar era um ardil político: uma criação artificial do Estado, pelo Estado, para o Estado e seus funcionários.
SELDON, A. : 60
A História é pródiga em demonstrar que os pastores cuidam das ovelhinhas porque elas são seu alimento:
A ética dominante na História da Humanidade foi uma variante da doutrina altruísta-coletivista, que subordinava o indivíduo a alguma autoridade superior, mística ou social. Conseqüentemente, a maioria dos sistemas políticos era uma variante da mesma tirania estatista, diferindo apenas em grau, não em princípio básico, limitada apenas pelos acidentes da tradição, do caos, da disputa sangrenta e colapso periódico.
RAND, A.: 118
E quem não se candidata a uma fatia?
Nem todos os colegas sabem, mas a AJURIS e a magistratura gaúcha tem sua parcela de responsabilidade pela inclusão do parágrafo 1º do art. 5º da CF, que confere a aplicação imediata aos direitos fundamentais. Nos trabalhos prévios à elaboração da Constituição, a AMB realizou um congresso que visava a elaborar uma proposta da magistratura brasileira, a ser enviada ao congresso nacional. A delegação da AJURIS, da qual participei junto com muitos colegas, foi a maior e creio que mais ativista no congresso e, a questão da aplicação imediata dos direitos fundamentais, incluídos os direitos sociais, apesar da grande resistência inclusive doutrinária da época - 1986 - foi um de nossos carros-chefe. Foram intensos os embates e nossa tese foi vitoriosa no congresso e no texto final da Constituição.
Denise de Oliveira Cezar, presidente da Associação dos Juízes do RS 2006/7

Infelizmente os estelionatários do plano cruzado ensejaram esse saco de gatos.
A pergunta cabível é singela: por que cargas d' água a classe dos juízes se perfila à pedir ainda mais carga de trabalho? Alguém lhe encarregou de tão nobre tarefa? Que preparo sociológico, ou econômico lhe é ministrado além das parcas disciplinas que lhe confere o diploma, a ponto de se arvorar capacitado a emitir dogmatismos de cunho social? A corporação responde por orçamentos ou tributações? Sabe, pelo menos, o que significa E=MC2? O que é gravidade? Como e o quê gera inflação? As diferenças mais elementares entre fascismo e marxismo? Avalia a importância do espírito e da relatividade das leis? Nada disso é de sua alçada; porém, todas tem relação com a sociedade. Como não se trata de conhecer todo o Universo para o exercício profissional, a"função" jurisdicional deve se ater aos autos dos processos e nada mais! Ao que pode lhe interessar a alteração da lei? Seria apenas candente altruísmo? Patriotismo? Ora ao defender um segmento, automaticamente de plano está responsabilizando outro. De outra forma: a manifestação supra elencada tem caráter partidário, ideológico. Enveredaram pelo viés político? Mas então a classe deve ser impedida de julgar!
Inadmissível, sob qualquer ângulo, mas não foi só nesse episódio que apreciamos a "desinteressada" e "despreendida" participação do judiciário. Na regulamentação dos cartórios EXTRA-judiciais a ribalta togada arrebatou enorme contingente, veemente, candente, a pleitear a supervisão e regulamentação sobre essas atividades, eminentemente privadas. O que vimos foi uma proliferação de concursos de cartas marcadas, efetivadas por empresas terceirizadas, cujos beneficiários tem ligações diretas com os "normatizadores".
Como se não bastasse, invoca-se a justiça até mesmo em concorrência. Pacientes que aguardam um transplante de fígado estão recorrendo à Justiça para ter direito ao órgão sem respeitar a lista de espera definida pelo Ministério da Saúde. Para o presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos, Valter Duro Garcia, "a pior situação é ter de trabalhar por meio de liminares, pois muitas vezes elas beneficiam só quem tem posse, conhecimento. É o sistema mais injusto."

Do erro médico

Infelizmente a humanidade se retorce na dupla perfídia platônica: da Academia, e da Justiça.
Legisladores e operadores do Direito, e os políticos, frequentemente aquinhoados por altos percentuais sobre as gigantescas compras de medicamentos, vacinas, e outros quetais  nada reclamam; apenas festejam.

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