domingo, 10 de fevereiro de 2008

A mecânica hegeliana

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DE QUE MANEIRA a estratégia de Hegel pode ser acolhida,
ainda mais como manifestação científica, embora repleta de
carências e absurdos? Como a dialética recebe tão cobiçado galardão?
De que modo uma simples lei positiva, essa expressão de vontade
unilateral e comumente paranóica, brilha tal qual pura
expressão da ciência, e até da democracia?
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Com a palavra o abalizado Gaetano Mosca:
"Uma ilusão geral constitui uma força social, que serve potentemente para cimentar a unidade e a organização política de um povo, como de uma inteira civilização." (1)
E de que modo se impregnam as ilusões?
Que fale o ilusionista-mór:
“A cisão é a fonte da exigência da filosofia”, diz Hegel no Differenzschrift.(2)
Tartufo não traz nada de novo.
"A crença fundamental dos metafísicos é a crença na oposição de valores." (NIETZSCHE, F, Além do bem e do mal: 10)
Desde os primórdios da civilização vinga o prático e animalesco princípio de dividir para conquistar, dominador (não denominador) generalizado (não o comum), caminho mais curto ao usufruto do poder e da riqueza.
A marca da filosofia platônica é um dualismo radical. O mundo platônico não é um mundo de unidade, e o abismo que, de diversas formas, resulta dessa bifurcação, surge em inúmeras formas.
KELSEN, H., 2001:81
O arguto Tocqueville antecipou, mas aristocrata nunca foi popular:
Essa contradição de idéias reproduziu-se, infelizmente, na realidade dos fatos na França. E, apesar de o povo francês ter-se adiantado mais do que os outros na conquista de seus direitos, ou melhor dito, de suas garantias políticas, nem por isso deixou de permanecer como o povo mais governado, mais dirigido, mais administrado, mais submetido, mais sujeito a imposições e mais explorado de toda a Europa. (3)
É vedado dar-se conta:
Com efeito, quase todos os vícios, quase todos os erros, quase todos os preconceitos funestos que acabo de pintar deveram seu aparecimento, ou sua duração, ou seu desenvolvimento à arte da maioria de nossos reis de dividir os homens para governá-los mais absolutamente! (4)-
O rastro da perfídia
Mutatis mutandis, o instrumento sectário platônico, já utilizado com êxito por Maquiavel, Bacon, Hobbes, Newton, Rousseau e, principalmente, Descartes, encantava o ariano. Desde então, a formação eficaz enforma o estudante:
O abandono da universidade da Idade Média deve-se a uma iniciativa de um pequeno país chamado Prússia, no começo do século XIX, que criou uma universidade de maneira inovadora, dividida em departamentos: de Ciências, de Química, de Matemática. (5)
Dentre elas, a grande vedete era a última:
Na matemática não há fatos fora do seu próprio campo que exijam comparação. Por causa dessa certeza, os filósofos de todos os tempos sempre admitiram que a matemática propicia um conhecimento superior e mais confiável do que o reunido em qualquer outro campo do saber. (6)
Só enganchando suas elucubrações na locomotiva científico-filosófico-mecanicista é que Hegel poderia alcançar o status almejado. Na má temática mistificada, o venerando caia bem:
“Hegel tem Descartes na conta de um herói." (7)
A Coruja aproveitou a carona, mas reconheceu:
“Como ele cruzamos propriamente o umbral de nossa filosofia independente. Aqui, podemos dizer, estamos em casa e podemos, como o navegante após longo périplo por mar proceloso, exclamar ‘terra’!” (8)
Sinceramente, era preferível ter ficado no mar.
O olvidado Newton emprestara ainda maior certeza. A terceira parte dos Principia quer demonstrar, de modo cabal, os fenômenos de ação e reação, fenômenos mensuráveis, por isso com carga científica. Vinha bem a calhar:
“Na natureza, nenhuma coisa muda senão pelo encontro das outras”. (9)
Agora demonstrarei a estrutura do Sistema do Mundo: todo o corpo continua no próprio estado de repouso ou de movimento uniforme numa reta, a não ser que seja impelido a mudar esse estado por forças que lhe forem aplicadas. A mudança de movimento é proporcional à força motriz aplicada e ocorre na direção da reta em que a força foi aplicada. Para toda ação existe sempre uma reação igual e oposta. (10)
A medição de fenômenos físicos, com intensidade variável, mas de regular constância sobre um eixo epistemológico arbitrado, como se tudo pudesse ser resolvido por aperfeiçoados medidores, passou aplicada em todos os temas relevantes, especialmente nas ciências humanas, e por Hegel.
J.T. Desanti analisa os esforços, tentativa de “emendar os encadeamentos operatórios da matemática com seus encadeamentos conceituais.” (11)

A extensão do dano
A operação redunda em trazer à tona o dark side, o negativo subliminar da trajetória histórica conhecida, à luz de uma virtualidade completamente fantasiada, na moda evolucionista.
Geólogos viam a Terra como produto de ação contínua das forças naturais (só não sabiam quantas, que dirá quais) durante enorme período, enquanto Lamarck apresentava uma coerência evolutiva capaz estabelecer até a Origem das Espécies, de Darwin. A evolução detectada na “força maior” encaixava-se no estudo das ciências humanas e Hegel buscou o sucesso pela mesma escada, deixando-a estendida a Darwin. Na tentativa de afastamento das antigas concepções rigorosamente deterministas, tanto este como aquele caíram vitimas dos próprios desígnios. Ao invés de se aproximarem da moderna concepção de natureza, Hegel, alguns antepassados, contemporâneos e muitos sucessores reforçam o equívoco mecanicista com outro, embora pensado biológico, porém mais nefasto e mais baconiano, porque no sentido da dominação forçada. A crueldade paira preconizada por essa biologia mecanicista: uma psicologia behaviorista, uma história empírica, uma sociologia descritiva, coisificante, e um direito forjado no ar-condicionado, mas totalmente opressor, quando não escamoteador.
O “direito hegeliano” não percebe a razão humana como libertadora espiritual, mas arsenal de violência e opressão, o lamentável estado de natureza preconizado por Hobbes, Jeremy Bentham, e John Austin, nas ciências políticas; e por Bacon e Newton nas chamadas ciências exatas e naturais. Coberto pelo quarteto inglês e pela artilharia francesa de Descartes e Rousseau, Hegel atacou, exitosamente, o direito consuetudinário, taxando o direito natural como estéril e fonte de “enorme confusão”. Não poderia existir outro direito além do positivo, do codificado, do decretado, do ditado à vontade do rei:
O conceito positivo que Hegel tem da Constituição está estritamente ligado com a concepção orgânica do Estado, insistentemente contraposta à teoria atomista predominante, típica dos jusnaturalistas. Não existe para Hegel outro direito, no sentido palavra, além do direito positivo. (12)
Antes de guarnecer, dividir: é lei para empregado contra patrão; ao consumidor contra lojista; para menores frente aos maiores; para credor contra devedor. Como nas guerras só há perdedores, lucra o vendedor de armas:
"Justiça Trabalhista mostra os valores - Porto Alegre, RS, urgente: A Justiça do Trabalho gaúcha garantiu a arrecadação total de R$356,24 milhões para os cofres da União, em 2007." (Correio do Povo, 13/02/2008, p. 18)
Se ela prejudica o setor produtivo, inibe a livre-iniciativa e ilude o assalariado, não vem ao caso. A burocracia festeja.
Marx foi enterrado embaixo do muro que deu causa, e Mussolini pendurado, feito carneiro, numa viga de um posto de gasolina de Milão. Do inferno ouvimos gargalhadas.
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Complete sua pesquisa apreciando
A influência de Hegel
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Notas
1.Scritti politici (Teorica dei governi-elementi di scienza política) vol.II, 633; cit. Rêgo, W.D.L., p. 88/9.
2.Hegel G.W., cit. Cicero, A., p. 73.
3. Danton, Jacques, Discurso na Convenção de 25 de setembro de 1792; cit. Gusdorf, Georges, As revoluções da França e da América, p. 59.
4.Tocqueville, A., 1997, cap. XII, p. 139.
5. "Em seminário internacional do MEC, pensador Edgar Morin fala na educação do futuro: ‘Ensino sem espírito não funciona’”. (Folha do Sul. - Porto Alegre, 24/9/2000, p. 17.)
6. Russell, B., 2001, p. 137.
7. Hegel, G.W.; Descartes, R., cits. Alquié, F., p. 17
8. Descartes, cit. Hegel, G. W., Conferências e escritos filosóficos de Martin Heidegger; Hegel e os gregos, p. 20.
9..Newton, I., cit. Capra, F., 1991, p. 60.
10.Newton, I., cit. Rohden, H., 1993, p.169.
11. Desanti, Jean T.; G.W. Hegel, Des idealites mathematiques. - Seuil, 1968; cits. Descamps, C., p. 93.
12. Hegel, F.W., cit. Bobbio, N., 1991, p. 86.

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