quarta-feira, 5 de março de 2008

O embuste freudiano

A história das ciências emergirá então como a mais reversível de todas as histórias. Ao descobrir o verdadeiro, o homem de ciência barra a passagem de um irracional. GASTON BACHELARD ¹ 
PARA ATINGIR O MERCADO sem rótulo de abstrata, presumivelmente discutível, a Psicologia e sua filha enriquecida  galgaram ao sucesso através do interminável cabo cartesiano-newtoniano: “As imutáveis leis da História descritas por Marx, a luta desesperada pela sobrevivência de Darwin e as tempestuosas forças da sombria psiquê de Freud devem, em alguma medida, sua inspiração à teoria física de Newton.” (2)
Novos artistas se apresentaram às pinceladas do novo projeto. Para a configuração do quadro, estava à disposição o mesmo tinteiro usado para colorir os cenários do Direito, da Economia, da História, da Biologia, da Sociologia e da Psicologia:“Afinal, a psicanálise não seria o primeiro sistema a extorquir fidelidade de modernos intelectuais seculares sem ser nem metodologicamente escrupuloso, escorado em fatos, nem livre de consequências daninhas.” (3)
Os trabalhos inaugurais vieram promovidos por Breuer e Freud, os “curandeiros” capazes de juntar a parafernália mecanicista com pressuposições platônicas e outras mirabolantes capacidades:“Em outras ocasiões, porém, Freud reconheceu a ajuda que recebeu de Jean Martin Charcot, Josef Breuer, Wilhelm Fliess, além de Schopenhauer e Platão, para abrir caminho por essa selva emaranhada.” (4) Por R. D. Laing percebemos que os gurus só lhe  tornaram mais confuso:
Ele possuía seu aparato mental, suas estruturas psíquicas, seus objetos internos, suas forças - mas não tinha a menor idéia de como dois desses aparatos mentais, cada um com sua própria constelação de objetos internos, poderiam se relacionar. Para Freud, eles interagiam de maneira meramente mecânica, como duas bolas de bilhar. Ele não concebia a experiência partilhada pelos seres humanos. (5)
No nascimento da psicanálise, Einstein conjecturava a relatividade.. Freud não o aguardou. Nem precisava. O sucesso, prenunciado pela mãe no nascimento, confirmava-se disseminado e assegurado. Einstein não tinha a mesma potência e a senhora Pauline nada previra sobre o pequeno Albert: “Nem mesmo Einstein impressionou a imaginação e afetou a vida de seus contemporâneos como Freud.” (6)
O famoso discípulo Carl Gustav Jung, todavia, rebelou-se:

Caro professor Freud... Eu mostraria, contudo, que a sua técnica de tratar os discípulos como pacientes é uma asneira. Desse modo o senhor produz ou filhos servis ou fedelhos impudentes. Sou objetivo o bastante para perceber o seu pequeno ardil. O senhor anda por aí farejando todas as ações sintomáticas que ocorrem em sua vizinhança, reduzindo, assim, cada uma ao nível de filhos e filhas, que admitem, envergonhados, a existência de seus erros. Enquanto isso, o senhor permanece no alto, como o pai, em situação privilegiada. Por puro servilismo, ninguém se atreve a puxar o profeta pela barba e a perguntar de uma vez o que o senhor diria a um paciente com tendência a analisar o analista em lugar de si mesmo. Certamente o senhor perguntar-lhe-ia: quem tem a neurose?... Se o senhor se livrasse completamente de seus complexos e parasse de bancar o pai para seus filhos, e, ao invés de visar continuamente os pontos fracos destes, examinasse bem a si próprio, para variar, eu então me corrigiria e erradicaria de um só golpe o vício de hesitar em relação ao senhor
* * *
Psi é a vigésima terceira letra do alfabeto grego e psikhe significa alma. Ao estudo, dificultado pela abstração, o estribilho freudiano ecoava por aplicar os velhos conceitos de separação das partes para o estudo mais pormenorizado, entendido como mais aprimorado, estabelecendo breve relação entre a química promovida pelos neurônios e a mecânica universal, a lógica soberana. Era cada vez mais simples (ou simplório) desvendar os segredos mundanos pela matemática, pela aritmética, pela estatística. No número de acertos, a verdade; quanto mais frequente, mais provada a cientificidade. Entre sensações e estímulos poder-se-ia comprovar, para cada ação, a intensidade da reação correspondente. Os padrões de comportamento poderiam ser reduzidos a equações. Pobre do ser analisado; infeliz dele, correndo de novo adoidado, para a frente e para trás, na corda bamba da dialética estendida: “Os analistas não podem repudiar sua descendência da ciência exata nem sua ligação com representantes dela. Os analistas são, no fundo, mecanicistas e materialistas incorrigíveis.” (7)
Quando se sabe que matéria é apenas energia em repouso (E=MC2), o que lhes resta de útil?
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Reações, reflexos infantis apurados de um contexto sexual preconcebido, a “força” psicológica, denotam, pela poeira, que sua viagem foi mesmo realizada pela estrada velha da obsoleta física. Como Newton, Freud descreve efeitos que impulsionam e defendem; e, como Hegel, usa a contradição destas forças para explicar e justificar ação e reação, excitações exteriores que se chocam com o sistema nervoso, o vetor interno que exige a satisfação das necessidades para seu apaziguamento, constância do jogo maniqueísta do prazer/desprazer, mostrado por Nietzsche como princípio ativo e consciência reativa. (8)
Pierre Janet, em 1925, já não confiava:
A meu ver, parece que o método psicanalítico é, antes de tudo, um método de construção simbólica e arbitrária; mostra como os fatos 'poderiam ser' explicados se a causação sexual das neuroses tivesse sido definitivamente aceita; mas a sua aplicação não pode ser adotada enquanto essa teoria ainda não estiver provada. (9)
Forte conceito emitiu o prêmio Nobel de Medicina (1980) Sir Peter Medawar (10):“A psicanálise é aparentada com o mesmerismo e a frenologia: contém núcleos isolados de verdade, mas é falsa na teoria geral”. E detona o edifício de Freud: “É o mais estupendo embuste intelectual do século XX”.
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Ponte ao Nazi
O famoso discípulo rebelde de Freud, Carl Gustav Jung, preferiu rotas alternativas, mas não pode escapulir das armadilhas racionalistas: “Em seu lugar, como Freud já fizera antes dele, Jung usou a estrutura da física clássica, muito menos apropriada para descrever o funcionamento de órgãos vivos.” (11)
Nesta época, a Teoria da Relatividade já estava de conhecimento público, bem como a famosa equação de Einstein. A Teoria Quântica fazia bodas de prata. Jung bem que delas se aproximou, pelo menos conceitualmente. Todavia, além de demorar um quarto de século para perceber que algo de errado havia na teoria cartesiana, ainda assim emitiu, tão somente, um juízo de futurologia, um sentido de norte, embora não lhe fosse claro quais caminhos poderia dispor. Vale atenção o teor das suas palavras:
Mais cedo ou mais tarde a física nuclear e a psicologia do inconsciente se aproximarão cada vez mais, já que ambas, independentemente uma da outra e a partir de direções opostas, avançam para território transcendente. A psique não pode ser totalmente diferente da matéria, pois como poderia, de outro modo, movimentar a matéria? E a matéria não pode ser alheia a psique, pois de que outro modo poderia a matéria produzir a psique? Psique e matéria existem no mesmo mundo e cada uma compartilha da outra, pois do contrário qualquer ação recíproca seria impossível. Portanto, se a pesquisa pudesse avançar o suficiente, chegaríamos a um acordo final entre os conceitos físicos e psicológicos. Nossas tentativas atuais podem ser arrojadas, mas acredito que estejam no rumo certo. (12)
O rumo estava certo, a freeway à frente: psiquê é energia e matéria. Essa constatação já tinha avançado suficiente. Quiçá por permanecer dedicado a talhar a notável ferramenta ideológica dos tiranos, o tal “inconsciente coletivo”, (13) Jung não olhou para o lado, e para frente só viu o abstrato coletivo. Cabe a pergunta: o que significa, mesmo, este tão decantado espírito? Pois, se não dá para bem defini-lo, deu para experimentá-lo: foi mesmo o versátil e robusto veículo, o tal Volk, convenientemente preparado nas oficinas de Georges Sorel (13), o qual o adornou com palavras, a configuração do próprio “mito”, que tornou-se o elemento coletivo-mobilizador capacitado a transportar as tropas de Mussolini, Hiroíto, Hitler e Stálin. Nosso Getúlio logo embarcou no embuste, e até hoje estamos atolados. A Nav's ALL vai detoná-los.

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Notas
1. Bachelard, Gaston, cit. Quillet, Pierre, Introdução ao Pensamento de Bachelard, p. 45.
2. Zohar, Danah, e Marshall, I. N. p. 16.
3. Crews, Frederick, O gênio da retórica, Folha de São Paulo, 22/10/2000, p. 18.
4. Downs, Robert Bingham, p. 209.
5. Laing, R. D., cit. Capra, Fritjof, Sabedoria Incomum, Conversas com pessoas notáveis, p. 93.
6. Brian , Denis, p.176.
7. Freud, Sigmund, cit. Levin, D. C., Physics and Psychoanalysis: an Epistemológical Study, 1977; cit. Capra, Fritjof, O Ponto de Mutação, p. 171.
8. Nietzsche, F.W., cit. Oliveira, Beneval, Nietzsche, Freud e o Surrealismo, p. 44.
9. Janet, Pierre, cit. Crews, Frederick, O gênio da retórica, Folha de São Paulo, 22/10/2000, p. 20.
10. The Hope of Progress, London, 1972, cit. Johnson, Paul, p. 4. Também em Crews, Frederick, O gênio da retórica. - Folha de São Paulo, 22/10/2000, p. 18. Crew ainda relata: “Peter Medawar ficou famoso ao condenar esse sistema como um estupendo conto-do-vigário intelectual."

11. Jung, Carl, Gustav, cit. Capra, Fritjof, O Ponto de Mutação, p. 353.
12. Jung, Carl Gustav, Aion, CW, Vol 9, 1951.
13
. O Estado de São Paulo, Caderno B, 13/6/1995.
14. Sorel, Georges, Reflexões Sobre a Violência, p. 7.

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