quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Azuis

O biólogo conhecia tudo que era vida; menos a dela. Ela conhecia inúmeras vidas; menos a dele. No entanto, se amavam!


O CLARÃO DO SIAMÊS põe o Sol a correr, envergonhado. Cabelos esvoaçantes, negros como as asas da graúna (essa é velha). Numa palavra, então, estonteantes. Coração de ouro, gigante; passo compassado, voz de veludo. Os CDs quebram a barreira do som. Até disco-voador quer gravar. No disco, ao tempo, à novo sentido, ímpar. Líder nata; pop. Era ella, não há dúvida. Pérola no mar, tempestade no deserto. Completa. Inesquecível. Meiga, carinhosa, esperta. Escorpiã do mais doce-veneno. Inteligente, perspicaz, solidária. Às vezes desconfiada. Certo: não se entra em canoa furada; tampouco em nave arrasada. Rápida como cometa, não permite que alguém cometa o menor dos desatinos. Tomada como lesma? Nunca foi. É a mesma a cuidar do destino, fiel a um passado que insiste em acompanhá-la, tal corrimão de escada-rolante. Não se espante: nela o esforço é menor. Nada de pior, mas como condenar?

Ele já apresentava profundos sulcos, visíveis pelo Endeavour. Se até a inanimada Lua é riscada, como pretender que se passe pela vida sem risco? Muito arriscara. A cada revés, um risco tornado real. Estômago embrulhado por tantas travessuras. Sua cabeça era um planeta a girar ao redor de um sol errante. Perdido na noite, iludido no dia. Enxergava as estrelas, mas não por onde voava. Como o amor que é cego, nunca acertou o alvo. Pela cegueira, não percebem as tolices que cometem.

Bio vagava ao léo, à cata das borbos. Em 11 de setembro vislumbrou os gêmeos. Resplandeciam os verdes-azulados, azuis-esverdeados. Cometa à proa! Terra fora da vista! Splash! E lá se foi o tonto, na cauda do deslumbrante luminoso.
O cometa olhava à frente, para não cometer o erro do caroneiro. O biólogo mirava o passado. Sentia saudades de semelhantes episódios, misturado com receio de perseguição. Não era receio. Era vero. Um esquadrão de borbos lhe ameaçava com vinganças. Iam salpicá-lo de perfumes.
O cometa descortinava o espaço sideral. Nada sentia. O carona nada usufruia, só temia.
Na viagem interestelar o cometa percebeu o peso na cauda. Foi ver, tinha vida! Pronto. Agora era um cometa com alma. Um astro vibrante, único.
Mas era só mais um desalmado. Muito amado, na caça cósmica empenhara tudo que tinha. Desprovido, agora era apenas componente de um rabo-de-foguete. Ainda que fosse cola, não podia chegar a leme. Não era responsável pelo rumo, pela nova trajetória que ambos mergulhavam. Nem o cometa.
Quinhentas horas de diabruras haveria de findar. Eram outros, os quinhentos. Às 19hrs, 12min e 17seg do paralelo Greenwich, exatamente onde aguardava o ponto G, tudo se desfez. A gravidade os engolfou. Pluft, o fantasminha*, sorriu outra vez.
Amor cruel: a vontade é infinita, mas depende da execução; o desejo é ilimitado, mas o ato se atém a parco limite.
Cometas anunciam prenúncios.
No raiar da Primavera, o biólogo se fez poeta.
(Co-piloto: William Shakespeare)
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* Famosa peça infantil criada por Maria Clara Machado

4 comentários:

  1. Viviane,
    Muito grato pelo prestígio e gentil recomendação.

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  2. Olá Cesar,
    Surreal viagem na cauda de um cometa vivo!!! Abraços. P.S. a poesia é contaminante e hoje atinge biólogos e todo os tipos de gente.

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  3. Querida Madalena Barranco,
    Bem-vinda à bordo.

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