sábado, 19 de abril de 2008

O fim do materialismo

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Por isso não é de estranhar que muitos universitários ainda imaginem Einstein como uma espécie surrealista de matemático, e não como descobridor de certas leis cósmicas de imensa importância na silenciosa luta do homem pela compreensão da realidade física. Eles ignoram que a Relatividade, acima de sua importância científica, representa um sistema filosófico fundamental, que aumenta e ilumina as reflexões dos grandes epistemologistas - Locke, Berkeley e Hume.
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Em conseqüência, bem pouca idéia têm do vasto universo, tão misteriosamente ordenado, em que vivem.
Lincoln Barnett*
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O PORTA-AVIÕES mecanicista afundara já no primeiro quartel do século XX, mas a ex-quadrilha marxista-positivista-utilitarista-determinista-dialético-messiânica, atacando no mar das ilusões, tardou em tomar ciência da chocante novidade. Alguns ainda nem acreditam. Não medem esforços, todos empíricos e infrutíferos, ao restabelecimento da arena na qual sempre se refastelaram. O certo, porém, é que o campo alagou. O materialismo é apenas ilusão:
“Além da estrutura atômica da matéria, há uma espécie de estrutura atômica da energia.” (Max Planck, cit. Einstein, 1994: 241)
O pedaço de matéria nada mais é senão uma série de eventos que obedece a certas leis. A concepção de matéria surgiu em uma época em que os filósofos não tinham dúvidas sobre a validade da concepção 'substância'. A matéria era a substância no espaço e no tempo; a mente, a substância que estava só no tempo. A noção de substância tornou-se mais vaga na metafísica no decorrer dos anos, porém sobreviveu na física porque era inóqua - até a relatividade ser inventada. Um pedaço de matéria, que tomávamos como uma entidade persistente única, é na verdade uma cadeia de entidades, como os objetos aparentemente contínuos em um filme.
RUSSELL, Bertrand, Ensaios céticos: 74
É a energia, e não a matéria, a componente universal:
"Nos anos 20, os físicos, liderados por Heisenberg e Bohr, constataram que o mundo não é uma coleção de objetos distintos; pelo contrário, ele parece uma teia de relações entre as diversas partes de um todo unificado." (Capra, 1995: 15).
A ordem é multiforme; portanto, relativa:
“Há infinitos universos paralelos formando ramificações. Em cada um se atualiza uma realidade” (Toffler, e Toffler: 20)
Nos ecossistemas resplandece a teia, a importância dos vínculos, a tendência à associação, até à cooperação entre elementos ligados por diversas razões, mas sem imperiosidade determinística, jamais abdicando os "participantes" da originalidade, das características e respectivas vocações:
"Isto faz dos seres vivos elementos numa vasta rede de inter-relações que abarca a bioesfera de nosso planeta – que em si mesma é um elemento interligado dentro das conexões mais amplas do campo psi que se estende pelo cosmos." (Laszlo: 198).
O conceito de um mundo sutilmente interligado, um oceano cósmico no qual estamos intimamente ligados uns aos outros e à natureza, assimilado por nosso intelecto e abraçado por nosso coração, poderá talvez inspirar novos modos de pensar e de agir que transformem o espectro de uma derrocada global no triunfo de uma renovação global – uma renovação para uma era mais humana e sustentável.
(Idem: 205)
O golpe dogmático não tem mais serventia:
Lester Thurow se utiliza desta imagem potente para invocar cinco forças econômicas que, como afirma, moldam o nosso mundo material, seja ele econômico, seja político. Para ele, essas cinco forças são: o fim do comunismo; mudanças tecnológicas para uma era dominada pela inteligência humana; uma demografia inédita e revolucionária; uma era multipolar que desconhece qualquer tipo de dominância econômica, política, ou militar por qualquer nação.
(Raimar Richers, prefácio de Thurow: 7).
Vence a liberdade, no mundo abstrato dos números, nas letras e na natureza. É vitória por terra, mar e ar:
As considerações econômicas são meramente aquelas pelas quais conciliamos e ajustamos nossos diferentes propósitos, nenhum dos quais, em última instância, é econômico (exceto os do avarento ou do homem para quem ganhar dinheiro se tornou um fim em si mesmo. (Sen: 328).
Um muro sobre o pântano
O descalabro marxiano foi tomado progressista porque suplantava os métodos rigorosamente lineares que imperavam incólumes até a presença mais enfática de arranjos diferenciais. O baluarte Trótski assim o descreveu:
Com base num profundo e abrangente estudo da ciência, Lênin provou que os métodos do materialismo dialético, tal qual formulados por Marx e Engels, eram inteiramente confirmados pelo desenvolvimento do pensamento científico em geral e pela ciência natural em particular.
(
Trotski, Leon, Vladimir Ilitch Lênin, cit. Fadiman, Clifton org., p. 318.)
Stálin confirmou a eficácia do científico método justamente contra Trótski: mandou assassiná-lo!
Walter Lippmann Lippmann, (cit. Popper, K., Sociedade Democrática e Seus Inimigos, p. 88) bem identificou os tipos:
Os coletivistas tem o empenho de progresso, a simpatia pelos pobres, o ardente sentido do injusto, o impulso para os grandes feitos, coisas que tanto vem faltando ao liberalismo nos últimos tempos. Mas sua ciência se baseia num profundo mal-entendido; e suas ações, portanto, são intensamente destrutivas e reacionárias. Assim, os corações dos homens são destroçados, suas mentes divididas e são apresentadas alternativas impossíveis.
Houve quem alertasse:
“Uma comunidade de indivíduos padronizados, sem originalidade pessoal e sem aspirações pessoais, seria uma comunidade inferior, sem possibilidade de desenvolvimento.” (Barzun, Jacques, Sobre a História, cit. Fadiman, Clifton org., p. 8)
A confirmação do pecado científico veio em nosso século, na confissão dos próprios discípulos da “comunidade inferior de indivíduos padronizados” teimosamente implantada. A farsa era incompatível com a verdade:
A Teoria da Relatividade foi condenada, não porque (como na Alemanha Nazista) Einstein fosse judeu, mas por razões igualmente irrelevantes: Marx havia dito que o Universo era infinito e Einstein havia tirado certas idéias de Mach, proscrito por Lênin. Por trás de tudo estava a desconfiança de Stálin de qualquer idéia remota associada a valores burgueses. Ele estava levando adiante aquilo que os comunistas chineses mais tarde chamariam de Revolução Cultural - uma tentativa de mudar, por decreto e uso da polícia, as atitudes humanas fundamentais em relação a uma gama de conhecimentos.
(Johnson, Paul, p. 381)
As razões, todavia, não eram irrelevantes; pelo contrário:
“Moscou, o quartel-general do ateísmo, viu na Teoria da Relatividade incompatibilidade entre ela e o materialismo soviético fundamentado no marxismo.” (Monteiro, Irineu, Einstein, Reflexões Filosóficas, p. 84.)
O cisco caia nos pés dos carrascos bolcheviques, era empurrado para baixo do tapete, mas a máscara científica se dissolvia como açúcar:
Na União Soviética, do tempo de Lenine, se fez grande silêncio sobre a teoria de Einstein, porque os pontífices do Governo haviam declarado que o átomo não podia ser dividido, por ser a base da matéria, e sem matéria não haveria materialismo, um dos pilares do comunismo.
(
Rohden, Huberto, Einstein, O Enigma do Universo, p. 56)
Nesta enxurrada de relatividade tudo se torna complexidade, mas fazer o quê?
Morin (1998, p. 30) amplia a idéia cerne:
“De toda a parte surge a necessidade de um princípio de explicação mais rico do que o princípio de simplificação (separação/redução), que podemos denominar princípio da complexidade.”
Ele lembra o significado: “Complexus = aquilo que é ‘tecido’ junto. Atingir a complexidade significa atingir a binocularidade mental e abandonar o pensamento caolho.” (p. 215).
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O fim da dialética
Anna Lemkow (p. 41) adota o mesmo modo de produção científica. Ela explicita:
Numerosos pares de opostos são um fato da existência: alegria e tristeza, bom e mau, masculino e feminino, positivo e negativo, luz e sombra, acima e abaixo, dentro e fora, sujeito e objeto, fato e teoria, permanência e mudança, universal e particular, ordem e desordem, nascimento e morte, liberdade e necessidade, um e muitos. Mas precisamos fazer nosso pensamento avançar da análise (que toma as coisas isoladas) para a síntese (que põe as coisas juntas). Numa perspectiva não dualista, os opostos são polaridades inseparáveis, mutuamente necessárias e mutuamente definidas.
O caráter da relação polar vista por Locke resplandece no esteio requerido por Pascal, Edgar Morin, Lemkow e por todos modernos físicos – leitmotiv alcançado através de um sistema solidário-integrativo, expressão somada –, algo que inventei expressar como somalética, em vez da preconceituosa “dialética”:
Uma inteligência da complexidade não considerará mais satisfatória a ‘razão suficiente’ e dedutiva de Leibniz e a de seus seguidores – aquela que, sabendo calcular, pretende prescrever – mas clamará, antes de tudo, a ‘compreensão humana de Locke, a que, sabendo ‘que também é preciso a sombra para ver’, tentará descrever ‘trabalhando para o bem pensar’.
(Pascal, Pensées, cit. Morin, 2000: 16).
Manifesta-se o professor Miguel Reale (cit. Nader: 269) sobre a peculiaridade metódica de John Locke, embora este, é bom que de antemão se corrija, não pudesse conhecer a dialética de Hegel, diante da impossibilidade cronológica, embora soubesse da artimanha consagradora de Maquiavel, Hobbes e Platão, o que dá praticamente no mesmo:
A dialética que desenvolveu é a da complementariedade que implica uma pluralidade de perspectivas, que conduzem a sínteses abertas, onde os elementos sociais alcançam sentido quando se relacionam e se complementam. Com ressalva, continua admitindo a dialética hegeliana sob a condição de que os opostos, em lugar de integrarem um processo de síntese superadora, fossem considerados componentes da dialética de complementariedade.
“Einstein deve ser considerado o padrinho da complementariedade” (Abraham Pais, cit. Brian: 83).
Miguel Reale lista outros clássicos que descobriram na complementariedade a chave de acesso ao conhecimento científico:
Eminentes cientistas e filósofos da Ciência como Niels Bohr, Louis Victor de Broglie, Philip Frank, Gaston Bachelard e F. Gonseth sentem a necessidade de recorrer a um novo tipo de dialética, a de complementariedade, para explicar problemas insuscetíveis de solução em termos de lógica axiomática.
(Reale, 1992: 72)
Derrubada a Babel, que tal ir comer um pastel?
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* O universo e o Dr. Einstein. Ilustrações de Anthony Sodaro. Tradução de José Reis. - 2. ed. - São Paulo: Melhoramentos, s/d., p.12;


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